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Disputas em torno da Ritalina: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS. IGOR FIDELIS MAIA. DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco. NATAL 2017.

(2) IGOR FIDELIS MAIA. DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Berenice Alves de Melo Bento. NATAL 2017.

(3) Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI Catalogação da Publicação na Fonte - Biblioteca Central Zila Mamede Maia, Igor Fidelis. Disputas em torno da Ritalina: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco / Igor Fidelis Maia. - 2017. 136 f. : il. Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Natal, RN, 2017. Orientador: Prof.ª Dr.ª Berenice Alves de Melo Bento.. 1. Medicalização - Dissertação. 2. Ritalina – Dissertação. 3. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade – (TDAH) - Dissertação. 4. Comportamento social - Dissertação. I. Bento, Berenice Alves de Melo. II. Título. RN/UFRN/BCZM. CDU 316.62.

(4) IGOR FIDELIS MAIA. DISPUTAS EM TORNO DA RITALINA: uma análise sobre diferentes possibilidades de um fármaco. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais. Orientadora: Profa. Dra. Berenice Alves de Melo Bento. Aprovado em 23 de Março de 2017. BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________ Profa. Dra. Berenice Alves de Melo Bento Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (Orientadora) ______________________________________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gomes Pereira Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) (Examinador Externo) ______________________________________________ Profa. Dra. Ana Karenina de Melo Arraes Amorim Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) (Examinador Externo).

(5) AGRADECIMENTOS Estes últimos dois anos cursando o mestrado foram marcados por momentos de crise, desorientação e de desafio. Terminar uma graduação, já engatar no mestrado e finalizar a dissertação ao mesmo tempo em que tentei seleção para o doutorado foi uma escolha que trouxe muito desgaste e algumas vitórias. Foi bastante difícil dar conta de todas as atribuições satisfatoriamente e só foi possível concluir tudo isso com o apoio constante de algumas pessoas. Agradeço primeiramente à minha família: meu pai, mãe e irmã. Pelo carinho, paciência sem fim e intensa dedicação em me fazer crescer e ser mais feliz. À Andresa, meu grande amor, por me dar forças para encarar a vida, por me fazer pleno, pelo companheirismo cotidiano e pelo diálogo crítico na escrita dessa dissertação. À Cauê por não me deixar ficar triste quanto estamos juntos, ser meu maior estímulo para me tornar uma pessoa melhor e por me ensinar o que é amar sem limites. À minha família de Natal (tias, tio, primas e avó) pelo auxílio sempre disponível e carinho nos momentos difíceis. Minha família de João Pessoa, São Paulo e Portugal, por fazerem de tudo pra me ajudar mesmo estando longe. Aos meus amigos Mariano, Mikelly, Micarla e Tarcísio. Pela rede de apoio que construímos ao longo desses anos. Por me lembrar constantemente dos prazos, compromissos e da necessidade de me dedicar mais. À Landerson por ser tão solícito e me proporcionar outro olhar sobre minha pesquisa. À Marcus por ser um dos meus companheiros de rebeldia na Universidade e a seu pai por ter feito a revisão ortográfica dessa dissertação. À Jota por ter me ensinado a potência de errar. Como também outrxs amigxs que, de perto ou de longe, acompanharam esse percurso dando sempre palavras de apoio e os melhores conselhos. Agradeço aos funcionários do PPGCS, Otânio e Jefferson, por compreender os nossos problemas, serem sempre tão dedicados e pelas conversas cotidianas. Por último, sou muito grato a Berenice por nossa parceria que vem desde a minha graduação. Pelos conselhos pertinentes, leitura minuciosa dos meus textos e por me formar como pesquisador. Agradeço também aos professores Pedro Paulo Gomes Pereira e Ana Karenina de Melo Arraes pela leitura do meu trabalho e pelas contribuições..

(6) RESUMO. Esta dissertação apresenta uma pesquisa histórica e sociológica sobre a capacidade da Ritalina de produzir normalização social. Para tanto, foi feita uma análise da trajetória dessa droga, de discursos proferidos publicamente pelos seus usuários e uma autorreflexão ancorada nos efeitos objetivos da Ritalina no corpo do pesquisador. Há um confrontamento entre o discurso largamente difundido de que esse fármaco produz obediência às normas sociais, e o material empírico que tive contato ao longo da pesquisa. Esse psicofármaco de efeito estimulante é uma das drogas mais consumidas no mundo e também uma das que reúnem o maior número de críticas e controvérsias. Denominado popularmente como a pílula da obediência, está associado diretamente à medicalização de crianças em ambiente escolar e já foi acusado de poder produzir um genocídio do futuro. São diferenciados aqui dois usos dessa droga: o das pessoas que possuem o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e aquele dos que utilizam Ritalina como um ―aprimorador cognitivo‖ que maximiza a concentração em atividades de estudo. A partir de uma investigação com base na história desse fármaco, nas declarações de seus usuários em dois endereços eletrônicos, e na experiência do pesquisador, evidenciou-se uma rede de relações heterogêneas que envolvem o consumo de Ritalina e que insistentemente têm sido caracterizadas como normalizadas ou obedientes. Palavras-chave: Ritalina, TDAH, medicalização..

(7) ABSTRACT. This dissertation presents a historical and sociological research about Ritalin's ability to produce social normalization. Therefore, an analysis was made of the trajectory of this drug, of speeches publicly pronounced by its users and a self-reflection anchored in the objective effects of Ritalin on the researcher's body. There is a comparison between the widely-used speech that this drug produces obedience to social norms, and the empirical material that I had contact throughout the research. This psychotropic drug is one of the most consumed in the world, and also one that brings together the most criticism and controversy. Popularly called as the pill of obedience, is directly associated with medicalization of children at school and has been accused of being able to produce a genocide of the future. Two uses of this drugs are distinguished here: the people who have the diagnosis of Attention Deficit/Hyperactivity Disorder (ADHD), and those who use ritalin as a cognitive enhancer which maximizes the concentration in study activities. From an investigation based on the history of this drug, in the declarations of its users on two electronic addresses, and in the researcher's experience, a network of heterogeneous relations involving the consumption of Ritalin was evidenced, even though insistently have been characterized as normalized or obedient. Keywords: Ritalin, ADHD, medicalization..

(8) LISTA DE SIGLAS. ABDA. Associação Brasileira do Déficit de Atenção. AMA. American Medical Association. APA. American Psychiatry Association. CHADD. Children and Adults with Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder. DSM. Diagnostic and Statistical Manual. GEDA. Grupo de Estudos de Déficit de Atenção. OMS. Organização Mundial de Saúde. TCC. Terapia Cognitivo-Comportamental. TOC. Transtorno Obsessivo Compulsivo. TDAH. Transtorno do Déficit de Atenção e/ou Hiperatividade.

(9) SUMÁRIO. INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA .................................. 21 1.1 Metilfenidato e comportamento infantil ......................................................................... 28 1.2 Discussões em torno da obediência ................................................................................ 37 1.3 Discussões em torno da inteligência ............................................................................... 44 CAPÍTULO 2 – A VIDA VIRTUAL DOS SUJEITOS TDAH .......................................... 53 2.1 O site da Associação Brasileira do Déficit de Atenção .................................................. 55 2.2.A direção do site ............................................................................................................. 65 2.3 O fórum das pessoas com TDAH ................................................................................... 70 2.4 Medicalização e agência ................................................................................................. 77 CAPÍTULO 3 – O USO DE RITALINA COMO “DROGA DA INTELIGÊNCIA” ....... 82 3.1 As ―drogas da inteligência‖ ............................................................................................ 83 3.2 Cerébro Turbinado .......................................................................................................... 85 3.3 Disciplina medicalizada e molecularização da performance cognitiva .......................... 95 CAPÍTULO 4 – RELATO AUTOETNOGRÁFICO ........................................................ 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 120 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 123.

(10) INTRODUÇÃO Esta dissertação apresenta uma pesquisa histórica e sociológica sobre a capacidade da Ritalina de produzir normalização social em seus usuários adultos. Para tanto, foi feita uma análise da trajetória dessa droga, de discursos proferidos virtualmente no portal da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) e no blog ―Cérebro Turbinado‖ 1, além de uma autorreflexão ancorada nos efeitos da Ritalina no corpo do pesquisador. Esse psicofármaco2 de efeito estimulante é um dos mais consumidos no mundo e também um dos que reúne o maior número de críticas e controvérsias. Denominado popularmente como a ―pílula da obediência‖, está associado diretamente à medicalização de crianças em ambiente escolar e já foi acusado de produzir um ―genocídio do futuro‖ 3. Foi realizada então, a partir desse contexto, uma comparação entre o discurso largamente difundido o qual diz que esse fármaco produz obediência às normas sociais, e o material empírico que tive contato ao longo da pesquisa. Este trabalho tem como foco questionar se esse medicamento, cujo nome farmacológico é metilfenidato, pode produzir normalização a partir dos relatos de seus usuários. São diferenciados aqui dois usos dessa droga: o de jovens e adultos que possuem o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e aqueles que utilizam a Ritalina acreditando que ela funciona como um ―aprimorador cognitivo‖ 4, maximizando a concentração em atividades de estudo. No primeiro caso, é comum o discurso de que o TDAH é um transtorno inventado para produzir lucros para a indústria farmacêutica, patologizando comportamentos de crianças que não se ajustam adequadamente ao ambiente escolar, tornando-as, assim, obedientes através do tratamento com Ritalina5. Já para o segundo grupo, há a crítica de que as exigências capitalistas de produtividade têm induzido as pessoas 1. Endereço eletrônico do portal da ABDA: www.tdah.org.br/. Acesso em 12 de fevereiro de 2017. Endereço eletrônico do Cérebro Turbinado: www.cerebroturbinado.com/. Acesso em 12 de fevereiro de 2017. 2 Psicofármacos são considerados aqui enquanto medicamentos que atuam no funcionamento do cérebro e estão associados ao tratamento de doenças mentais. 3 Sobre esse assunto consultar a matéria no portal da Unicamp ―A ritalina e os riscos de um 'genocídio do futuro'‖. Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro. Acesso em 01 de maio de 2016. 4 Aprimorador cognitivo será usado sempre entre aspas para enfatizar que esta é uma categoria utilizada pelos usuários de Ritalina e o trabalho não traz nenhuma conclusão se esse medicamento aprimora ou não a cognição. 5 Essa abordagem será mais detalhada no tópico 1.2. Discussões em torno da obediência.. 10.

(11) a ingerir substâncias como essa para dar conta da competição em ambientes como o trabalho ou a universidade6. Irei detalhar nos próximos capítulos as fontes de onde emanam esses discursos e, a partir dessa contextualização, questionarei se nas duas situações é possível observar a ligação entre o uso da substância e a docilização dos corpos em relação às exigências disciplinares (FOUCAULT, 1975). Foi realizada uma descrição histórica das controvérsias que têm sido produzidas em torno do metilfenidato, contrastando esses dados com o relato dos sujeitos presentes em dois endereços eletrônicos: o portal da Associação Brasileira do Déficit de Atenção e o blog ―Cérebro Turbinado‖. Nesse primeiro sítio, que é referente à principal associação brasileira de portadores do TDAH, é possível encontrar amplo material informativo sobre o transtorno e também um fórum com longas discussões entre os seus leitores. Já o blog é um canal informativo sobre substâncias utilizadas para potencializar atividades cognitivas que, abrangendo o uso da Ritalina, dissemina na rede um rico conteúdo sobre essas práticas e também depoimentos de seus usuários. A partir da análise desses espaços foram feitos os seguintes questionamentos: os efeitos de contenção, apatia ou comportamento zombie like7 são relatados? A ingestão de Ritalina se dá exclusivamente com propósitos de fortalecer a competitividade acadêmica ou laboral de seus usuários? Além desse conteúdo virtual, fez parte da dissertação uma análise autoetnográfica (Ellis & Bochner, 2000) de experiências de uso da Ritalina como ―aprimorador cognitivo‖ que foram vivenciadas pelo pesquisador. Este método tem como propósito conectar os relatos pessoais com suas determinações socioculturais. E isso foi feito através da análise das experiências do pesquisador a partir do referencial teórico que perpassou todo o trabalho. Esse procedimento fez com que fosse possível realizar uma contestação às descrições estereotipadas dos efeitos do metilfenidato e do perfil dos sujeitos com TDAH.. 6. Essa outra abordagem será mais detalhada no tópico 1.3. Discussões em torno da inteligência. O efeito denominado de zombie like é muitas vezes citado como uma demonstração de que a Ritalina produz um estado de letargia em seus consumidores, deixando-os apáticos e suscetíveis a qualquer forma de controle. A pediatra Aparecida Moysés comenta em entrevista: ―Também pode apresentar surtos de insônia, sonolência, piora na atenção e na cognição, surtos psicóticos, alucinações e correm o risco de cometer até o suicídio. São dados registrados no Food and Drug Administration (FDA). São relatos espontâneos feitos por médicos. Não é algo desprezível. Além disso, aparecem outros sintomas como cefaleia, tontura e efeito zombie like, em que a pessoa fica quimicamente contida em si mesma‖. Acesso em: http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2013/08/05/ritalina-e-os-riscos-de-um-genocidio-do-futuro Último acesso: 28 de março de 2016. 7. 11.

(12) Foram utilizados para pensar esse cenário, alguns intelectuais que pesquisam a crescente importância dos dispositivos biotecnológicos na vida social contemporânea. O sociólogo inglês Nikolas Rose, em suas reflexões sobre A Política da Própria Vida (2007), pode ser considerado a principal referência que norteou as discussões dessa dissertação. Embasadas, especialmente, nesse livro, as teorizações de nosso trabalho sobre os diagnósticos psiquiátricos e uso de psicofármacos não foram marcadas pelo discurso fatalista bastante presente em outras análises. Ao invés disso, a obra de Rose nos estimulou a uma consideração mais atenta às variadas implicações dessas tecnologias na atualidade. Além dele é pertinente mencionar os escritos de Paul Preciado8 (2008) sobre o regime farmacopornográfico e as considerações de Paul Rabinow (1999) sobre mudanças contemporâneas nos regimes de saber-poder e na autopercepção dos indivíduos. Essas questões foram consideradas na pesquisa, mas para serem melhor compreendidas demandam uma maior aproximação com o campo. A partir do discurso oficial, sabe-se que o TDAH é considerado pela psiquiatria e outras ciências da saúde como um transtorno neurobiológico fortemente influenciado por fatores genéticos. É caracterizado por um padrão persistente de desatenção, hiperatividade e impulsividade, cuja origem remonte à infância, estando presente em dois ambientes ou mais (casa, escola e trabalho, por exemplo) (APA, 2013). Contudo, apesar de ter sido considerada historicamente uma desordem da infância, uma grande quantidade de estudos sobre TDAH também têm sido focados na população adulta (KOOIJ SJ et al, 2010). Atualmente se tem a compreensão de que os sintomas sentidos nos primeiros anos persistem para o resto da vida (CLEAVE, 2008). O metilfenidato é utilizado como um psicoestimulante para elevar o nível de alerta do sistema nervoso central, produzindo uma maior concentração, coordenação motora e controle dos impulsos. É uma substância controlada, possui semelhanças estruturais com as anfetaminas e só pode ser vendida com retenção de receita. Segundo seus defensores, é o tratamento para TDAH mais amplamente pesquisado, clinicamente efetivo e mais comumente prescrito (NIH, 1998). O acesso legal a essa droga se dá pela avaliação de um médico 8. Em uma carta aberta publicada no início de 2015, Paul Preciado renuncia a seu nome de nascimento. Embora tenha assinado todos os seus livros e alguns artigos como Beatriz, a partir desse momento ele opta por ser reconhecido como Paul. Fonte: http://paroledequeer.blogspot.com.br/2015/01/catalunya-trans-por-paul-bpreciado.html. Acesso em 12 de fevereiro de 2016. 12.

(13) especializado em psiquiatria ou neurologia que procura verificar se o paciente atende às expectativas do diagnóstico para conceder as receitas. Há uma intensa produção discursiva que aponta o TDAH como um exemplo pertinente de como a psiquiatria e os psicofármacos podem ser utilizados de forma problemática. Emanando de diversas fontes, como livros, matérias em jornais e revistas, vídeos ou artigos científicos, críticas bastante severas têm sido produzidas em torno do assunto. Dados que demonstram um enorme crescimento na quantidade de pessoas diagnosticadas e nas vendas desse medicamento conduziu muitos à interpretação de que o déficit de atenção é uma condição inventada para produzir lucros para a indústria farmacêutica9. Ao mesmo tempo, há o argumento de que o seu uso em crianças se dá com o intuito de produzir um maior ajustamento ao contexto escolar, para que elas deixem de lado as brincadeiras e mantenham o foco nas atividades de estudo. A pediatra Maria Aparecida Affonso Moysés, ao ser entrevistada por um portal da UNICAMP, fez a declaração alarmante de que o alto índice de utilização da Ritalina na sociedade pode produzir um ―genocídio do futuro‖. Ela justifica isso pelo fato de que as crianças que estão sendo medicadas são as que fazem questionamentos com frequência e que sentem necessidade de modificar as regras. Segundo a médica, são essas pessoas que fazem com que a sociedade se transforme, portanto, atacar às suas potências criativas é obstruir o aprimoramento das condições de vida do presente. É um lugar comum nesse conjunto de críticas a nomeação da Ritalina enquanto a ―droga da obediência‖. Para além do uso legitimado, há também algumas pessoas que relatam a administração de comprimidos de metilfenidato para maximizar a capacidade de concentração ao estudar. São geralmente indivíduos que estão se preparando para fazer concursos e usam a substância para aumentar as horas de dedicação. Há uma série de notícias na rede que abordam esse fato em tom de novidade e de forma alarmista, como em ―concurseiros usam Ritalina para turbinar o cérebro‖ ou ―concurseiros usam Ritalina para prestar exames‖. 10. .. 9. Esses dados e algumas interpretações sobre eles serão analisados no tópico 1.2 Discussões em torno da obediência. 10 São exemplos desse caso: - http://noticias.r7.com/educacao/noticias/estudantes-usam-remedio-para-turbinar-cerebro-20090927.html - http://www.gabaritofinal.com.br/2014/08/ritalina-droga-dos-concurseiros-conheca.html.. 13.

(14) Nesse contexto são também frequentes textos que apontam os perigos dessa utilização indevida, desacreditando o potencial da substância nesse papel inusitado e descrevendo uma série de efeitos colaterais que o uso sem orientação médica pode ocasionar11. Nessas abordagens, há um cenário de disputa em torno da possibilidade da Ritalina ser considerada a ―pílula da inteligência‖. Em suma, o metilfenidato não é uma substância apática. O seu surgimento e disseminação produziu tensões significativas na utilização de psicofármacos, primeiramente nos Estados Unidos, mas depois estendendo-se a vários outros países. Da mesma forma que outros medicamentos psiquiátricos como a fluoxetina (Prozac), foi produzido um amplo conjunto de discussões em torno do metilfenidato. Esses discursos heterogêneos com frequência se mantêm numa oposição entre os que conferem a essas substâncias uma enorme importância e aqueles que denunciam o uso delas como um dos males da contemporaneidade. Em suas múltiplas abordagens, foi possível observar que há nas últimas décadas uma intensa produção discursiva em torno da Ritalina. O que os críticos denominam de forma difusa de efeito normalizador produzido pela Ritalina foi definido aqui através do conceito foucaultiano de disciplina. Esse teórico francês aborda as técnicas do poder disciplinar principalmente em seu livro Vigiar e Punir (1975). Nesse texto, há o detalhamento de operações que intercruzam saberes e poderes e estabelecem vínculos entre os corpos e as exigências sociais de tempo e espaço. Essa concepção teórica afirma que os indivíduos são produtos desses regimes de poder, em que as instituições sociais produzem os sujeitos de forma a torná-los dóceis e úteis. Essas considerações podem ser relacionadas à patologização dos comportamentos infantis que perturbam o funcionamento regular da escola. Ou o uso de medicamentos para diminuir as distrações e maximizar o foco no âmbito do trabalho, aumentando a produtividade e eficácia de empresas ou corporações. A partir dessas considerações, utilizarei um recorte etário e focarei apenas pessoas com mais de dezoito anos de idade. Essa escolha se dá pelo fato de que a discussão em torno do TDAH geralmente é centrada no período da infância, com poucos enfoques em outras fases da vida. Essa circunscrição me conduz mais facilmente a pensar as distinções morais que se estabelecem entre diferentes substâncias psicoativas que são geralmente consumidas na 11. Uma notícia que ilustra essa abordagem: http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,estudo-da-unifesp-derrubamito-de-que-ritalina-turbina-cerebros-saudaveis-imp-,974204.. 14.

(15) fase adulta. Um exemplo prático dessa consideração está no fato de que médicos estadunidenses, como David Bearman e Claudia Jensen12, apontam a maconha medicinal como uma alternativa terapêutica para o déficit de atenção e enfrentam dificuldades ao prescrevê-la para seus pacientes. Para dar conta dessas discussões de forma satisfatória, essa dissertação foi dividida em quatro capítulos. No primeiro, há uma reflexão com base na reconstituição histórica da Ritalina, discutindo, dessa forma, sua criação em laboratórios suíços e suas primeiras utilizações clínicas, acompanhando, para tanto, anúncios veiculados nesse período que promoviam o seu consumo. A partir da revisão bibliográfica, foi possível observar que esse processo foi marcado pela construção progressiva da ligação entre o metilfenidato e o TDAH enquanto um fato científico, chegando à atualidade, marcada pelo excesso de prescrições e pela formação de bioidentidades13 (LIMA, 2005) nos portadores do transtorno. O segundo é focado sobre o conteúdo do portal eletrônico da ABDA e nas interações entre portadores de TDAH em um fórum presente nesse site. Esta associação é bastante atuante no meio virtual, difundindo informações sobre a perspectiva psiquiátrica do transtorno e defendendo tal abordagem das críticas que ela recebe. Paralelo a esse material informativo, há um espaço de discussão em que os participantes dialogam informalmente sobre a influência do transtorno em suas vidas. Embora grande parte das vezes utilizem um linguajar próprio ao discurso psiquiátrico, essas pessoas não necessariamente se demonstram completamente conformadas aos ditames médicos. A partir do contato com esses sujeitos e do site, foi possível problematizar a concepção psiquiátrica do transtorno e ter uma melhor noção de como os sujeitos diagnosticados se relacionam com o saber médico. Já no terceiro momento, foi produzida uma análise dos textos sobre medicamentos potencializadores da cognição veiculados pelo blog ―Cérebro Turbinado‖. Nesses artigos, que abrangem também a Ritalina, foi possível verificar declarações que aderiam a critérios capitalistas de produtividade e competitividade, sendo assim, na maior parte das vezes, o consumo de psicofármacos associado a essas determinações sociais. Porém, essa prática não 12. Para ter acesso a declarações desses dois médicos: http://www.truthonpot.com/2013/04/01/medical-marijuanaand-adhd-the-facts/. 13 De acordo com Lima (2005, p.14), estamos vivenciando na atualidade a passagem de uma cultura marcada pelo sujeito psicológico, cuja identidade referia-se ao desenvolvimento dos aspectos emocionais e afetivos, para o momento das bioidentidades, em que as subjetividades se ancoram nos padrões biológicos e predicados corporais.. 15.

(16) foi pensada apenas em termos de uma docilização dos corpos em relação às exigências disciplinares, mas como um estilo de vida farmacológico que pode até mesmo proporcionar mais autonomia a seus usuários. Por último, há a descrição e análise de uma experiência pessoal do pesquisador sobre o consumo do metilfenidato para potencializar atividades cognitivas. Esse relato foi utilizado como uma forma de questionar concepções estanques do efeito do metilfenidato e percepções estereotipadas do perfil dos sujeitos com TDAH. Portanto, a partir das questões comentadas acima, este trabalho procura responder à seguinte questão: é possível que a experiência em torno dessa droga, cada vez mais consumida e discutida, seja descrita apenas como produtora de obediência? Porém, antes de iniciarmos estes capítulos serão recuperadas as principais etapas de confecção da pesquisa.. A construção da pesquisa. Fui aprovado no mestrado de Ciências Sociais com um pré-projeto de pesquisa que tinha por foco analisar as relações entre o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders –DSM) da Associação de Psiquiatria Americana (APA) e as práticas de poder-saber sobre a vida no capitalismo contemporâneo. Eu tinha a intenção de fazer uma análise documental da edição atual desse manual (DSM-5, 2013), atentando também para as mudanças que ocorreram entre as suas edições. As questões que eu planejava observar eram alterações entre essas edições (como as que tornavam os diagnósticos mais fluídos e incluíam mais pessoas), as mudanças na abordagem teórica ou o aumento no número das categorias. Entendia que os efeitos produzidos por esse manual de psiquiatria estão relacionados com o que Foucault entende como biopolítica (2009), pois pensei o DSM enquanto um objeto cultural mais amplo (ZORZANELLI, 2012), que reproduz valores do contexto em que está inserido e, ao mesmo tempo, dissemina noções sobre o que é normal e anormal ou doença e saúde. Isso pode ser visto no fato de que sua concepção de transtorno mental possui influência até mesmo na formulação de políticas públicas, e estas regulam as intervenções corporais nos 16.

(17) sujeitos e os esquadrinha enquanto população. O polo da anatomopolítica (FOUCAULT, 1975) poderia ser observado na capacidade do manual definir se determinada condição pode ter acesso a serviços médicos ou não14, restringindo o alcance de tecnologias sobre o corpo dos indivíduos. E ainda o polo da biopolítica, na função estatística que o manual exerce, produzindo dados sobre a quantidade de pessoas diagnosticadas e possibilitando intervenções posteriores15. Após o projeto passar pela arguição da banca, fui alertado da abrangência dessa pesquisa que tinha como foco um manual de mais de novecentas páginas. Já estava tendo alguns diálogos com minha orientadora, Berenice Bento, para reformular a pesquisa e pensávamos na possibilidade de focar em apenas um transtorno, já que, dessa forma, o número de páginas a serem analisadas seria consideravelmente menor. Ciente de que o trabalho proposto no pré-projeto dificilmente seria exequível, fiz preferência por focar em apenas uma categoria que é o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Mais precisamente, escolhi estudar um psicofármaco específico e a rede de relações que estão ao seu redor. Dessa forma, desloquei-me do DSM como um objeto central para analisar uma série de fatores exteriores, como a indústria farmacêutica, a história da farmacologia, as associações de portadores de TDAH, os grupos de biohackers ou usuários de medicamentos psiquiátricos sem prescrição médica. Isso ocorreu apenas no final do primeiro ano de mestrado e um dos fatores importantes para a decisão foi o fato de que consegui ter acesso à Ritalina e iria poder consumi-la. Após ter tido contato com o medicamento e sentido a intensidade de seus efeitos, tive uma noção diferente do que já havia pensado sobre a discussão TDAH-Ritalina. A. 14. A presença da transexualidade no manual possibilita em países como os EUA que as companhias de seguro reembolsem as terapias hormonais e em casos bastante raros as cirurgias. 15. Sobre os dois polos da biopolítica: ―Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos — tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anatomopolítica do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população‖. (FOUCAULT, 1976, p.125).. 17.

(18) utilidade prática desse psicoativo me permitia dar conta de algumas obrigações de forma bastante satisfatória e me fez pensar que não necessariamente essa substância deveria ser concebida de forma negativa. Além disso, bastante influenciado por pesquisadores como Norman Zinberg (1984), perguntava-me se seria possível esse psicoativo ser sempre prejudicial, mesmo variando os contextos sociais, os indivíduos que os consomem ou a forma como a substância se apresenta. Em meio a essas experiências e reflexões, o percurso do mestrado prosseguia e cresciam as exigências de que a dissertação fosse tomando forma. Uma dessas etapas foi a disciplina de Seminário de Dissertação, em que era exigido a exposição sobre o desenvolvimento da pesquisa e se haviam mudanças desde o pré-projeto. No PPGCS, é uma etapa denominada informalmente de pré-qualificação e é preciso no final da disciplina apresentar o projeto de pesquisa definitivo do mestrado para uma banca de avaliação. No começo do curso, fiz uma apresentação sobre a minha pesquisa, porém nesse estágio ela ainda tratava sobre o DSM. Foi só no momento final do seminário que escrevi um texto sobre a Ritalina e tentei delinear as primeiras reflexões, já definindo a problemática central e que iria entrevistar os usuários com e sem TDAH. Essa arguição foi um dos primeiros momentos de reflexão mais aprofundada sobre esse tema de pesquisa recém definido e houve importantes contribuições. Nessa banca, fui criticado por um dos avaliadores pela abrangência do trabalho, que tinha como objetivo entrevistar dois grupos de usuários. Ele argumentou que cada uma das modalidades de uso desse medicamento implicava discussões diferenciadas e que seria bastante complicado dar conta de forma satisfatória da amplitude dos debates. Outro membro da banca afirmou que a Ritalina poderia produzir uma inteligência específica que poderia ser descrita como ―careta‖, neutra ou obediente. Outra pessoa presente ressaltou a necessidade de problematizar questões mais abrangentes, como o próprio modo de produção capitalista e a influência da indústria farmacêutica. Nesse sentido, esse medicamento estaria relacionado com práticas produtivistas e com fins de controle. Essas primeiras contribuições foram importantes nesse momento e me auxiliaram a refletir sobre outras formas de consumo que não fossem marcadas por essa lógica. Portanto, insisti nas distinções entre os usos de Ritalina com e sem TDAH e decidi investigar se seria possível essa utilização produzir algo diferente de relações obedientes e conformadas às expectativas sociais. 18.

(19) As preocupações do primeiro examinador eram bastante razoáveis, tendo em vista que no semestre seguinte tive que cursar ainda algumas disciplinas e não consegui dar conta de fazer as entrevistas. Nesse período, havia a exigência de escrever o texto para a qualificação e me restringi, nessa tarefa, a desenvolver a problemática e escrever ainda um capítulo focado na história da Ritalina. Por ainda estar envolvido no último semestre com outras disciplinas, percebi que não haveria tempo disponível para realizar as entrevistas, fazer a transcrição das falas e analisar esses dados. Percebendo a importância da internet nesse cenário, e com o intuito de tornar o projeto exequível, decidi aplicar um questionário em grupos de Facebook, mas encontrei algumas dificuldades. Busquei contato com um dos maiores grupos dessa rede social de portadores adultos do TDAH. Havia, nesse espaço, uma frequência diária de postagens e discussões entre os membros, que, inclusive, respondiam algumas das questões que eu estava interessado em debater. Além disso, havia boa receptividade a trabalhos científicos sobre TDAH, já que quando alguns pesquisadores divulgavam questionários ou solicitavam colaboradores para entrevistas, várias pessoas demonstravam interesse em ajudar. Por causa disso, acreditei que não teria muitos problemas para aplicar o questionário e pensei que seria propício também utilizar algumas das discussões que já haviam acontecido no grupo. Porém, a minha proposta foi rigidamente rejeitada pela moderação e com respaldo dos outros membros. Antes de entrar em contato direto com o grupo, mandei uma mensagem privada para a moderadora mais ativa, demonstrando o interesse de fazer a pesquisa. Frisei para ela que não citaria o nome das pessoas, podendo borrar os seus nomes ou usar nominações fictícias para garantir anonimato. Mencionei ainda que, após a aprovação dela, iria entrar em contato com o grupo para requisitar a autorização individualmente, e me identifiquei no final como mestrando da UFRN em ciências sociais. Após algumas horas, ela me respondeu negando a possibilidade de autorizar a pesquisa por não saber se as pessoas gostariam de ser expostas, e que isso seria problemático já que o grupo é bastante amplo e algumas pessoas poderiam reconhecer os comentários das outras. Assim que li esse seu retorno, escrevi um texto detalhando mais os procedimentos da pesquisa, prometi falar individualmente com todas as pessoas que teriam suas falas utilizadas e que poderia cumprir qualquer exigência que elas estabelecessem. Mencionei ainda que, se não fosse possível usar o conteúdo em si do grupo,. 19.

(20) gostaria de poder postar ao menos um questionário. Porém, não obtive mais nenhuma resposta. Logo após a nossa discussão, essa moderadora postou um comunicado no grupo demonstrando a importância de ter cuidado com as pesquisas realizadas nesse espaço e que qualquer trabalho científico feito sem autorização seria excluído e o autor banido imediatamente. Ela argumentou ainda que não se sabe a intenção das pessoas que estão por trás desses trabalhos e já houve casos de uma delas que quis usar o conteúdo do grupo para dizer que a medicação não traz benefício o suficiente. Todos os comentários louvaram essa decisão e concordaram com essas precauções, argumentando que essa proteção era sensata. Essa reação mostra que há forte rejeição à perspectiva que desacredita a existência do TDAH e que tece críticas a medicamentos como a Ritalina. Foi possível observar isso mais claramente ainda no fato de que matérias com esse conteúdo também eram proibidas. Assim acredito ainda que a recusa a minha proposta de pesquisa se deu baseada na área do conhecimento em que ela se localiza. Inserir-se na área de Ciências Sociais parecia, aos olhos dos membros desse grupo, apontar para uma necessária negação do TDAH e/ou para fortes críticas ao uso da Ritalina. Contudo, essa perspectiva não é sem razão haja vista uma série de trabalhos científicos na área das Ciências Humanas que caminham justamente nessa direção. Portanto, embora essa experiência tenha me desestimulado um pouco, ter sido rejeitado me proporcionou a noção de que muitos sujeitos TDAH, seja no fórum da ABDA ou nesse espaço do Facebook, consideram desrespeitosos os questionamentos à materialidade do transtorno e ao caráter terapêutico dos estimulantes. Isso me deixou bastante sensível quanto aos dramas dos TDAH e tornou-me reticente a esse tipo de produção, especialmente das Ciências Humanas, que frequentemente se posiciona sem considerar adequadamente os próprios sujeitos. Nesse sentido, a partir do ocorrido no grupo do Facebook, eu passei a reler essa produção teórica. Também por causa desse evento, a nova estratégia de pesquisa consistiu em me deter num material empírico que já vinha tendo contato ao longo da pesquisa, mas que não era o foco central: os discursos que circulavam em dois endereços eletrônicos que, de certa forma, representam os usuários de Ritalina com e sem TDAH.. 20.

(21) CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA. Embora as discussões e polêmicas em torno da Ritalina tenham se intensificado a partir dos anos noventa e tomado consistência em meados dos anos 2000 até a atualidade, esse medicamento possui uma trajetória que remonta ao final da primeira metade do Século XX. Para ter uma noção mais precisa de como esse cenário marcado pelo excesso de diagnósticos e prescrições se constituiu, pode ser elucidativo investigar as condições históricas que possibilitaram o momento atual. Tal procedimento metodológico pode ser adequado para uma contraposição aos discursos do saber médico sobre esse psicofármaco, como, por exemplo, o de que a sua utilização foi desde sempre para o tratamento de TDAH16. Uma referência importante para nos aproximarmos da trajetória do metilfenidato é o texto Not Just Naughty: 50 Years of Stimulant Drug Advertising de Ilina Singh (2007), pesquisadora dos aspectos sociais e éticos da neurociência e psiquiatria. Nesse artigo, percebemos que alguns caminhos para descrever de onde uma droga psiquiátrica veio, segundo Singh (2007), podem ser traçados a partir do acompanhamento da sua criação a nível molecular em laboratórios, da emergência da substância no território da clínica ou, até mesmo, nos seus anúncios e propagandas direcionadas para médicos e o público em geral 17. Nesse capítulo, tentarei delinear alguns aspectos da história da Ritalina tendo como base esses três âmbitos mencionados pela autora. Singh posiciona os anúncios como uma parte importante desse processo, tendo em vista que há uma escassez de informações sendo divulgadas pela Novartis18 acerca de sua história.. 16. Essa afirmação pode ser encontrada no artigo sobre o Metilfenidato da Wikipédia em inglês. De acordo com o texto: ―Foi autorizado pela primeira vez pela FDA em 1955 para o tratamento do que era então conhecido como hiperatividade‖. Em tradução livre. ―It was first licensed by the U.S. Food and Drug Administration (FDA) in 1955 for treating what was then known as hyperactivity‖. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Methylphenidate#cite_note-131. 17 No Brasil e na maior parte do mundo, a propaganda de medicamentos controlados é proibida para o público em geral, sendo restrita apenas aos profissionais de saúde que podem receitá-los. Porém, a publicidade desses medicamentos é permitida nos Estados Unidos e na Nova Zelândia. 18 ―Novartis foi criada em 1996 a partir da fusão da Ciba-Geigy e Sandoz Laboratories, ambas empresas suíças com longas histórias. Ciba-Geiby foi formada em 1970 a partir da fusão de J.R. Geigy LTD (fundada na Basileia em 1758) e CIBA (Fundada na Basileia em 1859). Combinando a história dos dois sócios fundidos, a história completa da empresa alcança 250 anos‖. Em tradução livre. ―Novartis was created in 1996 from the merger of Ciba-Geigy and Sandoz Laboratories, both Swiss companies with long histories. Ciba-Geigy was formed in 1970 by the merger of J. R. Geigy Ltd (founded in Basel in 1758) and CIBA (founded in Basel in 1859). Combining. 21.

(22) O metilfenidato foi sintetizado pela primeira vez em 1944, na Suíça, pelo químico Leandro Panizzon, da antiga empresa CIBA (atualmente, Novartis S/A). Esse acontecimento é precedido por um conjunto de trabalhos de outro cientista dessa mesma companhia, Max Hartmann, que desde o começo do Século XX manipulava compostos químicos derivados da piperidina. Ele descobriu a possibilidade de alguns desses compostos serem usados enquanto tratamentos para doenças como a diátese do ácido diurético e, em 1924, o estudo dessas substâncias também resultou na síntese de nikethamide, um estimulante que altera o ciclo respiratório e que posteriormente foi deixado de lado por ser considerado perigoso. O metilfenidato, que também é um derivado da piperidina, apareceu posteriormente a esse conjunto de pesquisas. Foi somente em 1950 que, ao lado de Max Hartmann, Panizzon aprimorou a síntese dessa substância e conseguiu uma patente dos EUA para começar os testes em humanos e a preparação do medicamento. Como acontece com muitos psicotrópicos, as suas invenções não resultam de um estudo para a cura de uma doença específica, já que geralmente em sua descoberta molecular os usos mantêm-se em aberto (DUPANLOUT, 2009). O nome de Ritalina foi criado nesse período e fazia referência a um apelido da esposa de Panizzon, que utilizava a substância como um estimulante antes de suas partidas de tênis. Quatro anos depois, o medicamento é aprovado para tratamento de desordens psicológicas sob esse nome fantasia de Ritalina e passa a ser comercializado na Suíça e Alemanha. Em 1956, ocorreu a aprovação da Food and Drug Administration (FDA) e o medicamento chegou aos Estados Unidos, fazendo grande sucesso. Nesse período, a Ritalina era indicada para diversas condições e considerada útil para a maioria dos diagnósticos psiquiátricos (SINGH, p.134). Seu uso era prescrito para sintomas como depressão, cansaço e letargia, principalmente em pacientes de meia idade e idosos. Desde o início da comercialização nos EUA até os anos setenta, é frequente nos anúncios do medicamento a sugestão de uso para pessoas com fadiga crônica, pacientes com depressão, auxílio para a verbalização na psicoterapia e até mesmo sujeitos esquizofrênicos. Nesse conjunto de propagandas, nenhuma criança é retratada. Apenas adultos na meia-idade ou velhice, frequentemente com ares de cansaço ou tristeza, mas podendo apresentar, em outro. the histories of the merger partners, the company's effective history spans 250 years‖. Fonte: https://www.novartis.com/about-us/who-we-are/company-history. Acesso em 12 de fevereiro de 2017.. 22.

(23) quadro do anúncio, sorrisos largos e aparência de satisfação. Slogans frequentes nesse contexto são Ritalin Sparks Energy ou Helps Brighten the Day19 e várias vezes há um texto que promete o alívio da fadiga crônica e aprimoramento do espírito e da performance. É nesse contexto que a CIBA anuncia a entrada do Ritonic no mercado. Esse tônico consistia num coquetel de metilfenidato, hormônios e vitaminas. Seu uso estava relacionado à melhora do humor, aumento da vitalidade e da condição nutricional de seus usuários, que eram os pacientes geriátricos, de meia idade e que haviam passado pela menopausa (MENHARD, p.35). No anúncio sobre o Ritonic foram referenciados estudos que conduziram testes em asilos de idosos e que verificaram os seus riscos e benefícios (BARE, W. 1960; BACHRACH, S. 195720; NATENSHON, A. L. 1958). Os resultados desses três estudos são bastante otimistas e relatam que a grande parte dos participantes melhorou nitidamente seus sentimentos de bem-estar e vitalidade, deixando de apresentar sintomas de fraqueza, lassitude ou cansaço. No estudo de Wesley W. Bare há ainda um agradecimento à Ciba Pharmaceutical Products pelas doses usadas na pesquisa. Porém, mesmo com essas publicações, o Ritonic foi retirado do mercado pela FDA com a justificativa de que não havia provas substanciais de que o tônico fosse tão efetivo como alegavam.. 19. ―Ritalina faísca energia‖ e ―Ajuda a iluminar o dia‖, em tradução livre. No anúncio do Ritonic havia a informação de que esse artigo estava para ser publicado. Não encontrei nenhuma informação sobre ele na internet. 20. 23.

(24) Figura 01 - Anúncio de 1959 da CIBA. FONTE: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/ritonic.html (Editada pelo pesquisador. Para consultar a original, ver Anexo A).. Outro uso veiculado na época se trata de uma injeção de metilfenidato indicada para induzir pacientes de psicoterapia à fala. A chamada Parenteral Ritalin teria como propósito ajudar os seus consumidores a verbalizar e torná-los mais cooperativos num curto espaço de tempo, que poderia ser tão pequeno quanto cinco minutos, segundo o seu anúncio. Essa utilização parece estar relacionada a um período em que a psicanálise ainda ocupava uma posição privilegiada na psiquiatria, e que as terapias com drogas deveriam disputar o lugar com as já tradicionais. É curioso como nesse período de transição na psiquiatria, onde a psicanálise perdeu sua hegemonia para uma vertente biológica (RUSSO & VENANCIO, 2006), esses dois paradigmas, que hoje entendemos como nitidamente opostos, imiscuíam-se em algumas situações. Em um anúncio de 1959, há a declaração de que a Ritalina injetável promove a verbalização do material reprimido e subconsciente21. Outro cartaz, de 1956,. 21. A Ritalina Parenteral o torna mais acessível à psicoterapia por promover a verbalização do material subconsciente reprimido. Tradução livre de ―Parenteral Ritalin renders him more accessible to psychotherapy by promoting verbalization of repressed and subconscious material‖. Fonte: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/kidritdrunk.html. Acesso em 01 de janeiro de 2017.. 24.

(25) utiliza um linguajar psicanalítico, prometendo a sua eficácia no tratamento de depressão leve a moderada em neuróticos e psicóticos22. Sobre outros usos da Ritalina parenteral, há outra propaganda, também de 1959, que a indica para o pós-operatório de cirurgias que envolviam barbitúricos como anestésicos, diminuindo o efeito desses sedativos e facilitando a recuperação 23. As injeções de Ritalina foram retiradas do mercado em 1988, talvez devido ao potencial de abuso que uma dosagem tão forte pode provocar, assim como especula Ilina Singh:. Só podemos imaginar o que uma injeção de anfetamina faria em um paciente num consultório médico; essa forma de Ritalina parece ter sido retirada do mercado muito rapidamente, por razões que só podemos especular. Por um lado, o potencial de abuso seria alto. Por médicos, pacientes ou ambos? 24. (SINGH, 2007, p.136, em tradução livre) .. Entretanto, não havia uma associação com risco ou abuso em torno da droga, mas, pelo contrário, havia uma insistente produção discursiva que retratava a Ritalina como um medicamento inofensivo, que não poderia causar problema (WEBER, 2000). Em manuais de química dos anos sessenta, ela era agrupada na classe dos tônicos, ao lado da cafeína, geleia real e do extrato de malte. E em outra publicação dos anos cinquenta há a afirmação que ―A Ritalina age com mais doçura e por mais tempo que a cafeína e as anfetaminas e não leva ao costume‖ (DUPANLOUT, 2009). Já havia nessa época o emprego relacionado a emagrecimento, melhoria da performance atlética e como automedicação para melhorar o desempenho intelectual (ITABORAHY, 2009, p.62). Existiam também propagandas que afirmavam a possibilidade de utilização por pessoas saudáveis: ―(...) segundo a recomendação 22. Ritalina é um estimulante cortical suave e mais seguro, que é particularmente útil para o tratamento de depressões suaves e moderadas em pacientes neuróticos e psicóticos. Tradução livre de ―Ritalin is a mild, safer cortical stimulant which is particularly ‗efficacious in the treatment of mild to moderate depressions in neurotic and psychotic pacients‘‖ Fonte: http://prescriptiondrugs.procon.org/view.resource.php?resourceID=005745. Acesso em 01 de janeiro de 2017; 23 Administrada imediatamente após a cirurgia, Ritalina parenteral rapidamente desperta os pacientes anestesiados, diminuindo os efeitos de barbitúricos, complicações pós-operatórias e minimizando a necessidade de estender o uso de internação. Tradução livre de ―Administered immediately after surgery, parenteral Ritalin quickly arouses your anesthetized patients decreasing barbiturate effects and postoperative complications and minimizing the need for extended recovery-room care‖. Fonte: https://www.amphetamines.org/methylphenidate/ritalin.html. Acesso em 01 de janeiro de 2017. 24 One can only imagine what a shot of amphetamine would do to a patient in the doctor´s office; this form of Ritalin appears to have been taken off the market very quickly, for reasons about which we can only speculate. For one, abuse potential would be high. By doctors or patients or both?. 25.

(26) da época [anos 50], os sujeitos saudáveis também podiam aproveitar da Ritalina: ‗quando você quiser estar em plena forma no dia seguinte de ter passado uma noite acordado, refletindo‘.‖ (Weber, 2000 apud ITAPORAHY, 2009). Havia claramente uma ligação entre o uso da substância e o aprimoramento do estilo de vida ou aparência em seus usuários (SINGH, 2007). Por mais que posteriormente haja a construção do estreitamento entre o metilfenidato e doenças objetivas com fundamentação científica, nesse primeiro momento as indicações são bastantes vagas e imprecisas. Ao invés da descrição de efeitos precisos como ―[...] melhora a atenção e a concentração, além de reduzir comportamento impulsivo [...]‖ (vide bula da Ritalina no Anexo B), vemos com frequência frases como ―aprimoramento do comportamento e da maneabilidade25‖. Por exemplo, no anúncio abaixo, de 1957, vemos a indicação para o aprimoramento (improve) dos espíritos e performance26. Mas também, no mesmo texto, a Ritalina é indicada para os apáticos (apathetic) e mal-humorados (moody).. 25. ―[...] improvement in behaviour and manegeability‖. Fonte da imagem: http://static4.businessinsider.com/image/52af54e5eab8ea322643dd6a960/ritalin%20depression.jpg. Acesso em 01 de janeiro de 2017. 26. 26.

(27) Figura 02 - Anúncio de 1957 da CIBA Fonte: http://static4.businessinsider.com/image/52af54e5eab8ea322643dd6a960/ritalin%20depression.jpg. Acesso em 01 de janeiro de 2017.. O uso cosmético (KRAMER, 1994) desse psicofármaco, ou seja, sem ligação direta com um transtorno psiquiátrico, não se deu pela subversão das orientações do dispositivo médico. Foi determinado por este. É possível observar essas questões claramente nas suas promessas de energizante para o espírito (―boosts the spirit‖), alívio para a fadiga física (―relieves physical fatigue‖), além do estimulante para idosos apáticos ou mal-humorados e até mesmo numa das primeiras utilizações de sua história: a ação tonificante do comprimido para as partidas de tênis de Margarite, esposa do primeiro cientista a sintetizar o metilfenidato. Portanto essa droga que hoje em dia é classificada ao lado da cocaína pela Drug Enforcement Administration (DEA)27 e que portá-la sem prescrição médica em países como o. 27. Informações da DEA sobre o metilfenidato podem ser vistas em:. 27.

(28) Reino Unido pode levar a uma prisão de cinco anos ou mais28, já foi consumida sem muito controle e sem nenhuma associação com o TDAH. A mesma forma de consumo que era sugerida nas propagandas da Novartis nos anos cinquenta, hoje em dia é condenada e implica em punição jurídica dos usuários em vários países. De acordo com Dupanlout (2009, p.122), é ―o decreto médico [que] traça a fronteira entre um melhoramento químico de si legítimo e ilegítimo29‖. A construção da aliança entre a Ritalina e o TDAH enquanto um fato científico precisaria ainda de alguns anos para ser consolidada. Esse processo não aconteceu de forma repentina, como a partir de alguma descoberta ou fruto de uma pesquisa específica, mas demandou o envolvimento ativo de diversos atores que não necessariamente fazem parte do mundo da ciência.. 1.1 Metilfenidato e comportamento infantil. Apenas em 1963, quase dez anos após as primeiras vendas, a CIBA anuncia que a Ritalina também pode ser prescrita para crianças com problemas de comportamento (MENHARD, 2006, p.35). Ao mesmo tempo, essa não era a sua principal utilização como é possível perceber nos anúncios dessa década, que não retratam crianças. Durante os anos 60, pesquisadores começaram a pensar na Ritalina como um tratamento para a síndrome da criança hiperativa, reação hipercinética, desordem do impulso hipercinético ou hiperatividade, nomenclaturas antigas para TDAH. (MENHARD, 2006, p.36). Segundo Dupanloup (2004), entre os anos 50 e 70 foram publicados nos EUA centenas de estudos sobre que efeitos gerais ou específicos os estimulantes podem ter nos comportamentos infantis 30. Principalmente entre 1957 e 1964 foram publicadas várias pesquisas sobre o uso de metilfenidato em crianças com distúrbios de comportamento.. https://www.dea.gov/druginfo/concern_meth.shtml. 28 A legislação do Reino Unido sobre essa questão pode ser vista em: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1971/38/schedule/2. 29 No original: ―Le décret médical trace la frontière entre une amélioration chimique de soi légitime et illégitme‖. 30 ―Entre 1950 e 1970, segundo Loney (1980, 267), são publicados nos Estados Unidos centenas de estudos sobre o efeito gerais e específicos dos estimulantes (principalmente a Ritalina e a Dexedrina) no comportamento infantil‖ (p.128) (Tradução livre). Original: ―Entre 1950 et 1970, selon Loney (1980, 267), des centaines d‘études portant sur les effets généraux ou spécifiques que ces stimulants (principalement la Ritaline et la Dexedrine) peuvent avoir sur les comportements infantiles sont publiées aux USA‖ (p.128). 28.

(29) Porém,. o. uso. de. estimulantes. para. controlar. crianças. com. problemas. comportamentais é uma prática que antecede a Ritalina em algumas décadas, com seus primeiros experimentos datando o final dos anos trinta. Um estudo pioneiro foi o do psiquiatra Charley Bradley (1937), que administrou sulfato de benzedrina em crianças com problemas comportamentais num hospital chamado Emma Pendleton Bradley Home em Rohde Island, nos Estados Unidos. Quando ocupou o cargo de diretor desse instituto, Bradley conduziu uma série de estudos acerca dos cérebros das crianças, sendo que alguns dos exames realizados deixavam os seus pacientes com fortes dores de cabeça. Tentando aliviar esses efeitos colaterais, Bradley prescreveu a benzedrina e percebeu efeitos inesperados. A droga não aliviou as dores como era pensado, mas fez com que a escola se tornasse mais fácil para as crianças, havendo relatos das professoras e enfermeiras de que elas melhoraram tanto no comportamento quanto no desempenho escolar. Após a ingestão dos comprimidos, elas mesmas começaram a chamar o medicamento de ―pílulas aritméticas‖ como referência ao melhoramento nos estudos (STROHL, 2011). Nessa época, tranquilizantes menores e antidepressivos eram as drogas mais utilizadas para problemas de comportamento em crianças. Existem algumas propagandas de tranquilizantes no American Journal of Psychiatry nas décadas de cinquenta e sessenta, e já nesse período esses fármacos podiam ser prescritos para esse tipo de diagnóstico. Segundo Singh:. Crianças ansiosas, crianças hiperativas e crianças emocionalmente perturbadas foram entidades clínicas bem estabelecidas no final dos anos cinquenta. Distúrbio emocional tem sido desde muito tempo uma descrição clínica ambígua de uma criança com grande variedade de sintomas comportamentais, cuja etiologia era 31 largamente desconhecida. (SINGH, 2007, p.137, tradução livre) .. 31. ―Anxious children, hyperactive children, and emotionally disturbed children were well estabilished clinical entities by the late 1950´s […] Emotional disturbance had long been an ambiguous clinical description of a child with a wide variety of behavioral symptoms whose etiology was largely unknown‖. 29.

(30) Figura 03 - Equanil Equanil era um ansiolítico e está sendo indicado nesse anúncio de 1959 para ―a criança que é diferente‖. No texto há a afirmação de que pode ―ajudar a criança – e seus pais – a aproveitar uma vida mais normal‖. Fonte: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/different.html, acesso em 01 de janeiro de 2017.. Assim, Bradley apontou pela primeira vez a possibilidade de estimulantes servirem para o mesmo propósito que outros psicofármacos, porém seu estudo foi ignorado por cerca de vinte e cinco anos pelo fato de tranquilizantes possuírem uma resposta mais precisa e reproduzível (STROHL, 2011). Quando pôde ser recuperado, provou-se como um importante precursor das pesquisas sobre anfetaminas (como o metilfenidato) e seu uso em condições como o TDAH. Foi somente em 1957 que Maurice W. Laufer, sucessor de Bradley no instituto de Rohde Island, retomou esses estudos e recomendou explicitamente o uso de Ritalina para crianças com síndrome hipercinética (DUPANLOUT, 2009). Nos anos que sucedem essas duas publicações, há uma vasta produção de artigos e pesquisas sendo realizadas que investigam os transtornos de comportamento em crianças (as nomenclaturas adequadas, etiologias, formas de diagnóstico) e se aprofundam no tratamento com estimulantes. Até o final dos anos sessenta, esses transtornos eram descritos por pelo menos 38 terminologias diferentes, como ―síndrome hipercinética‖, ―hiperatividade‖, ―disfunção cerebral mínima‖, ―lesão cerebral mínima‖, etc. Essa proliferação de estudos pode ser explicada pela aprovação da entrada da Ritalina nos EUA e pelo consecutivo interesse da. 30.

(31) CIBA em encontrar novas utilizações para seu produto. Sobre esse assunto o psiquiatra Lawrence H. Diller afirma que:. A pesquisa sobre Ritalina abasteceu várias bolsas e carreiras acadêmicas nos anos sessenta. E diferentemente da anfetamina, a Ritalina estava sobre a patente da CibaGeigy. Essa fórmula em particular não poderia ser copiada por outros fabricantes, portanto a empresa gastou dinheiro em propaganda e a promoveu para a profissão 32 médica e financiou mais estudos que suportavam esse uso. . (DILLER, 1998, tradução livre).. Esse conjunto de pesquisas culmina com a publicação, em 1966, pelo serviço público de saúde dos Estados Unidos, do documento intitulado “Minimal Brain Dysfunction (MBD) in Children: Terminology and Identification” de autoria de Samuel Clements. Esse texto de trinta páginas parecia ter como intenção unir um conjunto de referências sobre MBD e fundamentar cientificamente essa doença enquanto uma entidade diagnóstica. São citados cento e vinte e quatro artigos que foram escritos desde 1921 a 1964 e havia uma tentativa de construir uma classificação mais homogênea e precisa desse transtorno. O documento descreve duas abordagens diferentes acerca dos transtornos infantis representados pela oposição entre organicidade e ambiente. O primeiro está relacionado com variações genéticas, irregularidades bioquímicas ou anormalidades no sistema nervoso central. A segunda corrente considera as relações interpessoais dos indivíduos, fatores socioeconômicos e culturais e traumas psicológicos. Há nesse texto uma bipolarização entre a psiquiatria psicanalítica e a biológica, que no período ainda estava em embate, com preponderância da psicanálise. Embora haja a tentativa de conciliação entre as duas perspectivas, é perceptível em outros trechos a tomada de posição pelo tratamento medicamentoso e pela teoria biológica. É citada, por exemplo, a insatisfação dos médicos com abordagens puramente psicogênicas e explicações interpessoais para qualquer comportamento desorganizado (CLEMENTS, 1966, p.1). Há também a reclamação de que a organicidade é considerada na sintomatologia, mas frequentemente ignorada na definição do diagnóstico e no tratamento (CLEMENTS, 1966, 32. Ritalin research fueled many grants and academic careers in the 1960´s. And unlike amphetamine, Ritalin was under Ciba-Geigy´s patent. This particular formulation could not be copied by other manufacturers, and therefore the company spent money to advertise and promote it to the medical profession – and to fund more studies that supported its use.. 31.

(32) p.6). Esse relatório teve efeitos importantes na legitimação do transtorno, passando a ser referenciado em alguns anúncios da Ritalina, que apontavam o reconhecimento estatal de sua existência33. O impacto alcançou a publicação da segunda edição do DSM (1968), que incluiu pela primeira vez a categoria de Reação Hipercinética da Infância. Porém, a escolha dessa nomenclatura foi marcada pela adesão à corrente teórica da psicanálise através do termo Reação. Diferentemente dessas outras publicações que se baseavam numa causalidade orgânica, o texto do DSM dava margem para a avaliação em fatores psicológicos e ambientais (LIMA, 2005, p.72). Havia até mesmo a afirmação que se o comportamento fosse causado por fatores cerebrais, deveria ser classificado em outro diagnóstico34. A terminologia de disfunção cerebral mínima não se encaixava bem nesse raciocínio, tendo em vista que localizava etiologicamente o cérebro para explicar o comportamento desviante das crianças. Ao mesmo tempo, os oficiais do sistema público de saúde estadunidense passam a fazer campanhas sobre o MDB entre o público médico e geral, distribuindo panfletos e exibindo pequenos filmes sobre como reconhecer, avaliar e tratar essa doença (SINGH, 2007). Os anúncios da Ciba desse período, no final dos anos 60, sofrem mudanças e passam a retratar pela primeira vez crianças. Os textos e imagens dessas propagandas estão centrados, a partir de então, a convencer os médicos da necessidade do diagnóstico. Eles parecem ter um conteúdo educativo e se contrapor ao discurso que defende a MDB como um mito da medicina, como é possível ver na imagem abaixo.. 33. Como em um anúncio de 1971: ―Essa síndrome – hoje facilmente diagnosticada através das histórias dos pacientes, sinais neurológicos e testes psicométricos – tem sido classificada por um painel de especialistas reunidos pelo Departamento de Saúde, Educação e Bem Estar dos Estados Unidos como Disfunção Cerebral Mínima, ou DCM‖. (Em tradução livre) Original: ―This Syndrome – now readily diagnosed through patient histories, neurologic signs, and psychometric testing – has been classified by an expert panel convened by the United States Department of Health, Education, and Welfare as Minimal Brain Dysfunction, or MDB‖. Fonte do anúncio: http://www.bonkersinstitute.org/medshow/myth.html. Acesso em 01 de Janeiro de 2017. 34 ―Se esse comportamento é causado por um dano cerebral orgânico, deve ser diagnosticado apropriadamente sob uma síndrome orgânica cerebral e não psicótica‖. (Em tradução livre) Original: ―If this behavior is caused by organic brain damage, it should be diagnosed under the appropriate non-psychotic organic brain syndrome‖ (APA, 1968, p.50).. 32.

Referências

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