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Disciplina medicalizada e molecularização da performance cognitiva

CAPÍTULO I – A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA RITALINA

CAPÍTULO 3 – O USO DE RITALINA COMO “DROGA DA INTELIGÊNCIA”

3.3 Disciplina medicalizada e molecularização da performance cognitiva

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A reportagem pode ser consultada em: https://www.youtube.com/watch?v=lAtKOhuPxr4. Acesso em 29 de dezembro de 2016.

80 Fonte da resposta do blog: http://www.cerebroturbinado.com/2016/06/a-ciencia-que-respalda-os-nootropicos-

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É consenso entre diversos intelectuais trabalhados nessa dissertação que, desde meados da segunda metade do século vinte, estamos vivendo um processo de transformações com fortes implicações para a vida social. Segundo essa produção teórica, é cada vez mais presente o estímulo à medicalização da sociedade, apontando então para questões que anteriormente pertenciam a outros domínios e que passam a ser condicionadas pelas práticas médicas (CONRAD, 1980). Nesse contexto, esses saberes excedem o tratamento de doenças e passam a exercer um papel de matriz comportamental, determinando regras de conduta, cuidados com o corpo e novas maneiras de estar no mundo. As identidades são frequentemente modeladas de acordo com a aparência corporal, e os valores culturais dominantes exercem forte influência nesses processos (CASTIEL, 2013). De acordo com Aguiar (2004, p.133), a medicina passa progressivamente a assumir, na modernidade, o papel de regulação social que foi exercido pela igreja ou pela lei.

Esse processo de medicalização, que segundo alguns autores pode ser situado inicialmente no começo dos anos setenta nos EUA (CASTIEL, 2013), tem sido considerado um tema importante de debate nas ciências sociais. A psiquiatria também é fortemente influenciada por esses processos históricos e, desde 1980, consolida-se enquanto uma disciplina hegemonicamente calcada na biologia. Tal ciência passa a ser cada vez mais capitalizada e se aproxima de indústrias como a farmacêutica, sofrendo modificações a partir da influência dessas empresas. Os psicofármacos, que surgem e começam a ser prescritos na década de cinquenta, inserem-se nesse contexto de hegemonia da medicina e são utilizados em algumas situações para propósitos diferentes do tratamento de transtornos mentais. A psiquiatria se populariza como uma forma de intervenção molecular no funcionamento da mente, ajustando os níveis de humor de acordo com as situações nas quais as pessoas se envolvem.

Da mesma forma que as cirurgias plásticas, dietas nutricionais ou outras práticas de cuidado com o corpo passam a gerir aspectos cotidianos e a psiquiatria acompanha esse processo. Dessa forma, ela extrapola o espaço do hospício e passa a ser disseminada na sociedade em geral, por vezes tendo como alvo comportamentos que não são necessariamente considerados patológicos. A utilização corrente de psicofármacos ilustra esse crescimento da psiquiatria, tendo em vista que ocorre tanto a disseminação desses medicamentos em diferentes ambientes, quanto uma diversificação dos propósitos para utilizá-los. A presença dessas substâncias pode ser vista atualmente em presídios, asilos para idosos e escolas, como

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também em outros ambientes que passam a utilizar essas intervenções moleculares. De acordo com Rose, em uma conferência sobre o futuro da psicofarmacologia (2014):

Em certo sentido, a psicofarmacologia se tornou um estilo de vida. Em mais e mais circunstâncias, mais e mais pessoas, em mais e mais regiões, (as pessoas) estão rotineiramente modulando, afetando, manejando, os seus humores, seus desejos, seus sentimentos de felicidade ou tristeza, manejando isso através de drogas. E várias práticas não psiquiátricas têm se tornando altamente dependentes do uso dessas drogas. Em asilos para idosos existem níveis muito altos de prescrição de drogas anti-psicóticas. Eu acredito que quase todas as pessoas aceitam que essas drogas são prescritas nesses asilos, por razões de controle, mais do que por razões terapêuticas. (Tradução livre) 81.

Sobre o uso de psicoativos na atualidade, e em especial os fármacos produzidos pela indústria farmacêutica, é interessante mencionar as produções de Paul Preciado. Esse filósofo afirma que o capitalismo atualmente se caracteriza por um regime fármacopornográfico. No seu livro Testo Yonqui (2008), Preciado percebe uma descontinuidade no capitalismo a partir de meados dos anos 70, em que a indústria fordista do automóvel passa por um processo de deslocamento da centralidade econômica e subjetiva. Uma nova governamentalidade do ser vivo surge e fornece as condições de possibilidade de transição para outra fase do capitalismo. Nesse contexto, dispositivos de produção e controle da subjetividade se articulam em processos de governo biomolecular (fármacopoder) e semiótico-técnico (pornopoder), dando sentido à definição feita pelo autor de um regime farmacoponográfico.

Nesse regime, há uma molecularização do biopoder (PELBART, 2015, p.24), e são centrais transformações como a da depressão em Prozac, a masculinidade em testosterona e a ereção em Viagra. Ao mesmo tempo, também podemos pensar que a performance ativa dos ambientes competitivos desse sistema é materializada em substâncias químicas, como as ―drogas da inteligência‖ e os nootrópicos. Nesse sentido, a sociedade contemporânea está habitada por subjetividades que se definem pelas substâncias que dominam seus metabolismos, assim, podemos falar de sujeitos Prozac, sujeitos cannabis, sujeitos cocaína,

81 Original: ―In a certain sense, psichopharmacology has become a way of life. […] In more and more

circumstances, more and more people, in more and more regions, are routinely modulating, shaping, affecting, managing, their moods, their desires, their feelings of happiness or sadness, managing this through drugs. And many non psychiatry practices have also become highly dependent on the use of these drugs. In homes for the elderly there are very high levels of prescript8ion of anti-psychotic drugs. I think almost everybody accepts that those drugs are prescribed in those homes for the elderly for reasons of control rather than for reasons of therapy‖. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=VF83oKPVYKM. Acesso em 01 de janeiro de 2016.

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sujeitos álcool, sujeitos Ritalina, sujeitos cortisona, sujeitos silicone, sujeitos heterovaginais, sujeitos dupla-penetração, sujeitos Viagra etc. (PRECIADO, 2008, p.33).

Embora o consumo de estimulantes para atividades intelectuais possa parecer algo inusitado, diante desse contexto que viemos apresentando, torna-se mais fácil compreender como essas práticas podem vir à tona. Esse consumo desenfreado dos fármacos interage na produção da vida coletiva e pode estar relacionado com as estruturas de poder e o reforçamento das normas sociais. Ainda de acordo com Preciado, é possível fazer um paralelo com o uso dessas substâncias e a ―descrição de Foucault dos dispositivos disciplinares ortopédicos e arquitetônicos do panóptico ou da prisão‖ (2008). Nesse sentido, a partir de uma reflexão sobre a pílula contraceptiva, esse autor afirma que medicamentos como Prozac, Viagra ou a Ritalina, são panópticos comestíveis. São infiltrações das técnicas de controle social que fazem dos corpos suportes e efeitos de um programa político.

Segundo as teorizações foucaultianas sobre o regime disciplinar e a produção dos sujeitos através desse esquadrinhamento espacial e temporal, é através do controle minucioso das operações do corpo e da sujeição de suas forças que se impõe uma relação de docilidade- utilidade (FOUCAULT, 2013). Essa anatomia política aumenta as forças do corpo em termos de utilidade, e diminui essas mesmas forças em termos políticos de obediência, portanto produz um elo entre uma aptidão acentuada e uma dominação aumentada (2013, p.134). Foucault afirma ainda que, sob o efeito do funcionamento desse regime, são produzidos nos sujeitos corpos dóceis.

Fazendo uma leitura das ―drogas da inteligência‖ a partir dessas contribuições de Foucault, parece haver uma ressonância entre a produção de corpos dóceis e o uso de Ritalina, ao menos de acordo com o que foi visto no blog ―Cérebro turbinado‖. Podemos ver através dele como medicamentos como a Ritalina são utilizados em resposta a exigências sociais de produtividade. Portanto, propiciam aos usuários atingir conformidade em relação a essas demandas.

Porém, Paul Preciado ressalta que a relação entre corpo e poder não deve ser pensada de acordo com o modelo dialético de dominação e liberdade, em um movimento unidirecional em que um poder exterior infiltra o corpo dos indivíduos (2008, p.136). Mas, esse controle pode se dar de forma mais democrática e privatizada, e é frequente que não seja o poder que atue desde fora e de uma maneira não consensual, mas o próprio corpo que deseje esse poder.

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Para compreender como essas questões ocorrem no uso do metilfenidato como ―aprimorador cognitivo‖, é possível recorrer às pesquisas que abordam diretamente os usuários dessa substância. Em suas pesquisas sobre indivíduos que praticam o consumo desse medicamento psiquiátrico, Denise Barros (2014) pôde aproximar-se dos usos e sentidos atribuídos ao consumo desse fármaco pelos sujeitos que foram pesquisados. É possível observar nesse trabalho uma contraposição ao relato estereotipado dos usuários de Ritalina, que os descreve por vezes como pessoas domesticadas e em estado de letargia, ou em outros momentos como indivíduos preguiçosos que buscam subterfúgios para evitar altas cargas de estudo. Assim como os portadores de TDAH, o uso do medicamento trouxe para esses sujeitos uma sensação de autonomia e maior margem de controle sobre suas decisões. Os efeitos obtidos através da droga maximizavam os níveis de atenção e facilitavam a realização de tarefas consideradas importantes, propiciando uma sensação de potência e percepção de serem um pouco mais ―senhores da própria casa‖. A realização dessas atividades, anteriormente consideradas bastante dificultosas, facilitou o processo de alcançar uma meta desejada que, por vezes, era inclusive o sonho da vida de alguns entrevistados.

Assim, as motivações mencionadas nesse estudo estão em consonância com o que foi relatado no blog ―Cérebro turbinado‖, estando, portanto, diretamente relacionadas ao aumento da produtividade em atividades cognitivas. Tais sujeitos buscam turbinar suas capacidades cognitivas para maximizar as suas competitividades, atingindo um desempenho superior ao de concorrentes em provas, concursos ou vestibulares. Entretanto, de forma curiosa, foi relatado ainda que a ingestão dessas substâncias estava relacionada com uma insistência na aprovação para cargos públicos, onde poderiam escapar especialmente desta intensa competição e também das incertezas do mercado de trabalho. Portanto, de acordo com o que foi discutido nesse tópico, a afirmação de que o uso de Ritalina produz necessariamente obediência é imprecisa, e escapa de compreender as nuances que caracterizam as relações complexas em volta desse fármaco.

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