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4 O Objeto da Política: A Cidade

4.3 A Ditadura da Velocidade e aceleração da vida cotidiana

A cidade é o correlato da estrada. A cidade só existe apenas como uma função de circulação e de circuitos; é um ponto singular sobre os circuitos que o criam e que ele cria.

Deleuze e Guattari,

Ao longo de sua existência, os seres humanos viveram contínuas transformações na forma como experimentam o tempo, cada vez mais acelerado, e o espaço, cada vez mais flexível. Hoje, vivemos o que Bauman, Harvey e Virilio chamam de compressão espaciotemporal: uma aceleração do tempo que torna tudo instantâneo e comprime o espaço, as distâncias.

Harvey (2004, p. 189) considerou que “as concepções do tempo e do espaço são criadas, necessariamente, através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social”. Bauman (1999b) também observou que a mudança do tempo e do espaço é um processo histórico sujeito as intervenções da vida social. São na produção e reprodução das práticas que o ser humano constrói suas percepções sobre tempo e espaço. “O tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente” (HARVEY, 2004, p. 189), por isso, não podem ser vistos como categorias naturais dadas ou livres da interferência das relações humanas.

Kundera (2002, p. 35) contrasta velocidade induzida mecanicamente ao que é produzido pelos nossos próprios corpos:

Ao contrário de um motociclista, o corredor está sempre presente em seu corpo, para sempre obrigado a pensar em suas bolhas, sua exaustão; quando ele é executado ele sente o seu peso, sua idade, mais consciente do que nunca de si mesmo e de seu tempo de vida. Isso muda quando o homem delega a faculdade de velocidade para uma máquina: a partir de então, o seu próprio corpo está fora do processo, e ele dá até uma velocidade que é não-corpórea, imaterial, velocidade pura, apenas velocidade, velocidade êxtase.

Há mais de três décadas, Virilio (1984; 2005, 2010) argumenta que o uso intenso de tecnologias da informação foi desencadeador dessa aceleração do cotidiano. A tecnologia contribui para a percepção de se estar ininterruptamente conectado, de não haver barreiras ou distâncias intransponíveis.

Somos confrontados hoje com a crescente manipulação da realidade através de tecnologias de simulação, com a capacidade de copiar / colar / modificar os nossos símbolos, imagens, discursos, sinais e viver ad infinitum importa, para trazer, em outras palavras, uma forma de clonagem generalizada. Estamos hoje diante de uma sociedade catabólica e extraterritorial que produz e amplifica um ambiente discursivo anabólico (TELLI, 2004, p.91).

As tecnologias e meios de comunicação estimulam a imaginação e permite-nos visitar espaços cibernéticos ricos em textos, imagens e sons. Trazem inúmeros benefícios para computação, compartilhamento de dados, medicina, nanotecnologia, biogenética, etc. O fascínio do homem pela tecnologia é inquestionável. O fetiche por aparelhos de alta tecnologia ainda é componente importante no capitalismo moderno (MELLO, 2010) e isto modifica o modo de viver na contemporaneidade.

Bratton (2006, p. 7) demonstrou que:

A modernidade é um mundo em movimento, expressa em traduções do espaço estratégico em vez de logística, e vice-versa. É uma história de cidades, divisórias, circuitos comerciais, satélites e software; de um cenário político

regido por tecnologias de vigilância, mobilização, fortalecimento e suas administrações interdependentes concorrentes.

Virilio (1984) afirma que as transformações nas formas de apreensão e gestão do tempo são relacionadas à difusão de tecnologias desencadeadas no século XIX. Antes, as estratégias eram a fixidez, as fronteiras, os muros; com a Revolução Industrial a ênfase passou a ser a produção de velocidade. A tendência à secularização do calendário e à rigidez das jornadas de trabalho, são algumas das evidências desse longo processo de afastamento de um tempo regido pela natureza e pelo calendário religioso para um tempo presidido pelas demandas da produção fabril e por novas tecnologias. O século XXI pôs isso ainda mais evidente com as tecnologias de comunicação móveis e a internet, que tornaram ainda mais difusas as relações com o trabalho e o tempo. Neste sentido, Virilio define essa tendência de aceleração do tempo como “revolução dromocrática” (VIRILIO; 1984, p. 51), onde a essência está na fabricação de velocidade.

O direcionamento dado ao desenvolvimento e aos usos das tecnologias da informação, dos modos de produção, dos meios de transporte, das práticas de gerenciamento empresarial, das formas de se relacionar em sociedade, afeta o modo como experimentamos o tempo e o espaço, da mesma maneira com que este direcionamento é afetado pelas diferentes modalidades de experimentar essas categorias (FREZZA ET AL, 2009, p.489).

Nas cidades, as tecnologias de transportes permitem trocas e deslocamentos cada vez mais rápidos. No entanto, Virilio (2005) argumenta que o fato não torna as trocas melhores, apenas mais curtas e rápidas. Esta crença é resultado da ilusão de que com a simples redução das distâncias teremos acesso a tudo, viveremos melhor e seremos mais felizes. Na verdade, não passa de um sonho vendido nos momentos iniciais da expansão capitalista e da conquista do direito à livre circulação que, agora, tornou-se uma tirania do movimento (VIRILIO, 1984, p. 70- 72).

Toda tecnologia, por mais simples que seja, traz consigo seu acidente (VIRILIO, 2005), ou seja, toda tecnologia inclui também uma dimensão negativa que, na atualidade, tem alcance global devido ao sistema capitalista. David Harvey alegou que "o capitalismo é necessariamente crescimento orientado, tecnologicamente dinâmico, e propenso a crises" (1993, p. 6). Através da tecnologia, o capitalismo promete “libertar a humanidade da ignorância e irracionalidade" (ROSENAU, 1992, p. 5). A história nos contou que nem sempre essa liberdade foi conquistada, pelo contrário, muitas vezes essas tecnologias possibilitam gigantescas desigualdades sociais (URRY, 2007b). O problema não é somente o uso da tecnologia, mas antes o de “que se é usado por ela” (VIRILIO, 1984, p.78). Por isso, é mais comum se enfatizar apenas os supostos benefícios gerados pelas novas tecnologias, censurando-se suas consequências negativas.

As novas tecnologias permitem um determinado tipo de acidente que não é mais local ou situado, como a queda de um avião ou um naufrágio de um navio, mas um acidente que afeta imediatamente o mundo inteiro. Isto é bastante evidente quando falamos da Internet e sua vocação mundial. Virilio (2000) define a Internet como um acidente em potencial, que pode proporcionar uma catástrofe global que ocorre em todos os lugares ao mesmo tempo. Para o autor, a Internet é uma institucionalização da tecnologia que produziu a nossa "sociedade do espetáculo", na qual há uma destruição gradual da esfera cívica existente dentro das cidades contemporâneas.

E isso está acontecendo no momento preciso em que as tecnologias de informação e comunicação estão garantindo que "o homem sedentário está em toda parte em casa, e nômade, em nenhum lugar" (VIRILIO, 2010b, p. 3). Como consequência disso, nasce um novo indivíduo, marcado pelo sedentarismo. As tecnologias de transporte portátil e de alta velocidade permitem criar um ser que encarna um solitário, caseiro, desarraigado, indivíduo que é muito mais orientado a objetos e, normalmente, desorientado do mundo (VIRILIO, 2010a).

Bauman (1999b) alerta que as cidades contemporâneas não passam de ajuntamentos de pessoas estranhas umas às outras, que não tiveram nenhuma afinidade prévia e provavelmente nunca terão. No que tange as transformações em curso, sejam de aceleração do tempo e uso indiscriminado de tecnologias, uma parte integrante de tal processo é a progressiva segregação espacial, separação e exclusão, cuja consequência mais alarmante é a ruptura de comunicação entre a chamada elite extraterritorial, cada vez mais global, e o restante da população, cada vez mais local.

Há uma separação nítida entre aqueles que detém o poder do uso da tecnologia e os excluídos desse processo, sejam por questões culturais, educacionais ou financeiras. A propagação de políticas dedicadas à inclusão digital, indica que há uma nova forma de opressão nas sociedades contemporâneas – tecnologismo (MELLO, 2010). Isso acontece, provavelmente, na maioria dos casos, devido à forma como a tecnologia se espalhou na sociedade: um continuum espaço-velocidade real em que nem todo mundo tem o poder (MASSEY, 1993) ou a vontade de participar.

Tornando-se a medida na qual a vida urbana é organizada, a velocidade, então, dividi a humanidade em populações esperançosas – capitalizadas o suficiente para continuar a projetá-la infinitamente – e populações desesperadas – são os imobilizados pela inferioridade de suas ferramentas técnicas, ignorantes quanto aos signos tecnológicos e subsistentes num velho, lento e finito mundo (MELLO, 2010).

O acesso às novas tecnologias e a capacidade de lidar com elas tem sido, além de uma experiência dolorosa para a sociedade, também tem sido essencialmente “político” (DUFFY, 2009). Isto porque, a maioria destas tecnologias são incompatíveis com democracia clássica. Mello (2010) explica que a democracia clássica se baseia na solidariedade e não na solidão; na participação ativa e reflexiva, e não em ações derivadas de aptidão tecnológica e condicionamento. Dessa forma, não há democracia quando se trata de tecnologias em tempo real. “A temporalidade da democracia com a sua consulta pública está ameaçada devido à falta de tempo e interesse. A tirania do tempo real levou a democracia ‘clássica’ para o abismo” (MELLO, 2010, p. 32).

Os efeitos da ditadura das tecnologias da velocidade no corpo político tem sido uma grande preocupação para Virilio desde seus primeiros escritos (1977, 1978). Foi seu objetivo mostrar como a lógica da aceleração investe constantemente em vetores tecnológicos, promove um assalto real sobre a vida humana. Isso pode gerar uma divisão social, onde, de um lado, são as elites dromocraticas, que valorizam a mobilidade, acima de tudo, porque eles sabem que a ocupar e controlar um território é ter uma posição dominante. Eles acabam dominando a maioria dos sistemas técnicos. E se a desterritorialização progressiva produzida pela velocidade significa, para as elites, uma intensificação de seu domínio, para as massas significa desenraizamento, a destruição de seu habitat, a privação da identidade, da exclusão, mas, acima de tudo, a perda de movimento (MELLO, 2010).

Além disso, a questão não é mais, apenas, econômica. A riqueza não é, necessariamente, sinal de privilégio e de garantia de ser parte desta nova classe de velocidade elitista. Virilio (2006) deixa claro que algumas elites econômicas não acompanham os signos da tecnologia, enquanto alguns proletários podem dominar. Em que isto implica? Na substituição da luta de classes pela luta de corpos tecnológicos que lutam segundo sua eficiência dinâmica.

Uma primeira consequência da realidade social moderna é que o tempo objetivo e social da modernidade está dando lugar a temporalidades subjetivas e personalizadas (VIRILIO, 1984). A segunda grande consequência trazida pelo tempo instantâneo é a desconfiança no futuro que significa que ninguém tem tempo para esperar e todos buscam a gratificação imediata dos seus atos (BAUMAM, 2001). A terceira consequência é que os trajetos espaciotemporais dos sujeitos deixaram de estar sincronizados e articulados entre si, dando origem a uma acentuada variação entre os diferentes tempos individuais, na medida em que estes são, cada vez menos, organizados de forma coletiva, social ou familiar (VIRILIO, 2005; GRAHAM & MARVIN, 2001; HARVEY, 2004; SASSEN, 2005). Uma quarta consequência é a segregação entre aqueles que podem ou

não se movimentar nas cidades, promovida pelo uso pouco democrático das tecnologias (URRY, 2007b).

Segundo Virilio, muitos analistas econômicos das grandes cidades ainda estão presos dentro de investigações da lógica da acumulação econômica metropolitana. Eles ainda estão enredados dentro do reino do quantitativo. Em contraste, Virilio, acredita que nós entramos na Idade da Aceleração e, consequentemente da técnica, que substitui a da acumulação econômica. Para ele é a aceleração, por exemplo, uma das causas principais da atual crise econômica global. Pois o capital não é apenas acumulação, mas também aceleração. Isso ocorre porque a velocidade da luz, a instantaneidade, ubiquidade, e o imediatismo de ondas eletromagnéticas acelerou a acumulação. A atual crise econômica global é assim não só uma crise econômica, mas também uma crise de capital (ARMITAGE, 2009).

Aceleração, portanto, deve ser colocada no centro das nossas preocupações, porque ela está agora no coração da acumulação de riqueza nas cidades, da acumulação de conhecimentos, e a própria realidade de todas as nossas vidas sociais que estão cada vez mais impulsionadas pela implacável interatividade. Hoje, estamos diante de um grande fenômeno histórico que, por exemplo, o marxismo nunca previu: que a economia política da aceleração tem vindo a substituir a economia política da acumulação. Assim, o que é muito importante neste momento é a construção de uma economia política da velocidade (VIRILIO apud ARMITAGE, 2009, p. 3).

As escalas não-humanas nas quais sustentam-se as cidades modernas, formadas por redes de transportes e telecomunicações cada vez mais acelerados, forçam o mundo a operar sob condições instantâneas que têm um impacto real sobre geografia, história e no sentido de tempo e espaço reais que conhecemos. O final da geografia está em jogo devido a diminuição das distâncias e aceleração do tempo que ultrapassam as fronteiras físicas. A instantaneidade da aceleração também sinaliza o fim da história, não no sentido de Francis Fukuyama, mas no sentido do fim da escala histórica e espacial natural das coisas terrenas, tais como um sentido centrado no ser humano de distância. Ou seja, o ser humano não é mais referência para a estrutura urbana.

Não há crença comum sobre o futuro da civilização ocidental. O que sabemos, seguindo as ideias de Virilio (2006, 1984), é de uma revolução dromocrática que estabelece a ditadura do movimento, de um progresso dromológico que estabelece a velocidade como um valor supremo, e de uma sociedade dromocrática que introduz um sistema de dominação exercida por meio do controle de movimento. Porém, o mais preocupante de tudo é a mudança no pensamento político mundial causada por esta ditadura.

O planejamento urbano moderno, com sua busca por eficiência e uso de tecnologia, é o oposto dos centros antigos das cidades, com suas pequenas praças, calçadas e ruas desenvolvidas pensando no pedestre. Os planejadores da Cidade Moderna têm como principal objetivo projetar ruas para acomodar o crescente fluxo de automóveis. Essas ruas, Le Corbusier denominava de “máquina para o tráfego” e a cidade seria “uma fábrica para a produção de tráfego” (BERMAN, 1986, 167). Os centros passaram a ser lugares de fluxo da atividade econômica.

Diversos são os conceitos para significar esse tipo de cidade. São modelos/tipos de cidade que demonstram diversas características presentes no que entendemos por Cidade Moderna:

Metrópoles, Flexcities (modelo pós-fordista), Cosmopolis, Exopolis, Metropolarities, Simcities

(SOJA, 1996; 2000), Flowcities (HEALEY, 2002), Globalcities (SASSEN, 2005),

Digitalcities/Virtualcities (TELLI, 2004), Cities of the Beyond (VIRILIO, 2009).

São muitas mudanças que as tecnologias da informação e comunicação realizaram na vida nas cidades. Tudo passou a ser desenhado em termos de velocidade e fluxo - tudo se move muito rápido. Nesse estágio, as inovações podem mudar, mas a fenomenologia da velocidade e fluxo permanece a mesma ou aumenta o que acarreta a dominação da lógica de espaços de/para fluxos e induz dualidades e exclusões sociais, territoriais que ignoram e marginalizam pessoas e lugares. O sistema político passa a ser dependente da manipulação de mensagens e símbolos. Segundo Castells (1994), os meios de comunicação são o campo de batalha para o controle político, pelo menos em sistemas dromocráticos. A realidade é cada vez mais mediada pela mídia, porque eles são de fato a realidade virtual da maioria da população.

O grande problema dos modelos de cidades criados desde a Revolução Industrial está na ausência total da dimensão humana. As escalas deixaram de ter como base as pessoas para utilizar a técnica como alicerce para todo planejamento e ação do ambiente urbano de maneira geral.

Henri Lefebvre em “O Direito à Cidade” demonstra que a cidade e o urbano dependem do valor de uso, do modo como são utilizados pelos seus habitantes. No entanto, diz o mesmo, “o valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana” (LEFEBVRE, 2001, p. 14).

Na cidade de escalas técnicas e velozes, as desigualdades sociais são derivadas de espaço- velocidade. Como ensina Urry (2000), as cidades são o resultado de formas extremamente desiguais de acesso à tecnologia. Formas pouco democráticas. Mas se a tecnologia é tão poderosa, por que não podemos aplicar os mesmos padrões democráticos para ela que se aplicam a outras instituições políticas? Deleuze e Guattari (1987) sugeriram que essa possibilidade de mudança passa pelas responsabilidades dos Estados. Eles estão, necessariamente, envolvidos na regulação de todos os numerosos espaços de fluxo e controle criados pelas revoluções modernas

que introduziram a ditadura do movimento. Espaços foram colonizados pela velocidade, especificamente através de novas tecnologias que produzem rápida circulação da informação e da superação de distâncias.

4.4 O papel dos atores econômicos na governança: O sistema neoliberal