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O papel dos atores econômicos na governança: O sistema neoliberal e a formação da cidade mercadoria

4 O Objeto da Política: A Cidade

4.4 O papel dos atores econômicos na governança: O sistema neoliberal e a formação da cidade mercadoria

Estamos diante de um paradoxo. As cidades-regiões, tradicionais lócus do desenvolvimento, hoje representam também arenas estratégicas no processo de desenvolvimento e de reestruturação produtiva, mas existe um vácuo institucional quanto ao planejamento e a gestão destes territórios.

Jeroen Klink.

As cidades expressam, das mais variadas formas e dimensões, a organização social de seus sujeitos. Expressam os hábitos culturais e o sistema produtivo ao qual elas estão inseridas. Nas sociedades capitalistas, as cidades são os lugares de comando desse sistema, o lugar de produção e reprodução do sistema capitalista. Esse sistema só é possível por causa das cidades. Segundo Oliveira e Barreira (2011, p.1), “elas são os nós da rede produtiva contemporânea, donas de uma estrutura de transmissão de informações e produção de conhecimentos jamais tidos na história da humanidade”. A cidade contemporânea é fruto da modernidade e de seus padrões estéticos, morais e econômicos e é, sobretudo, reflexo da hegemônica força da economia sobre as demais dimensões culturais e sociais.

Ao longo da história, as cidades se constituíram como espaços de hegemonia religiosa e política, mas, principalmente depois do advento da Revolução Industrial, passaram a ser um espaço essencial para a existência do sistema capitalista e assumiram de vez o lugar do mercado. No decorrer dos anos, os atores econômicos foram exercendo, gradativamente, ainda mais influência na governança das cidades. No Brasil, esta influência cresceu em importância, a partir dos anos noventa sob o teto do neoliberalismo, que prescreve a participação do setor privado como requisito para uma boa gestão pública. Esta ideia está imbricada na maioria dos modelos de empreendedorismo urbano das cidades brasileiras que passam a ser protagonistas de experiências centradas na junção entre público e privado na gestão de seus territórios (LEAL, 2012).

As práticas de gestão urbana, introduzidas no Brasil no final dos anos noventa se pautaram por princípios de governança expressos na visão das cidades como lócus de empresarialismo urbano (HARVEY, 1996). Segundo Castells e Borja (1996), esta visão acredita que as cidades

são instrumentos eficazes para dar respostas às crises e para atender às aspirações de sua inserção econômica no contexto global, tornando-as palco para a emergência de novas expressões de lideranças e de gerência administrativa.

Quando a conjuntura econômica negativa, como ajuste inflacionário e crise fiscal, acontece e repercute sobre os governos locais e municípios de uma cidade isso aguça ainda mais o sentimento de crise, o que estimula acordos, por parte de dirigentes governamentais e municipais, com paradigmas que podem ser considerados um processo de venda das cidades (LEAL, 2012).

Essas mudanças na gestão pública visando adotar esse modelo de “empreendedorismo urbano” configuraram transformações profundas nas formas tradicionais de relacionamento entre a administração pública e o setor privado. Na forma clássica de governança havia uma separação clara entre o papel do Estado e do mercado, no qual o primeiro aparecia como contratante e o segundo como contratado. Já no modelo novo de governança pública atual, a interpenetração entre o público e o privado se estabelece sem a presença reguladora do Estado, através dos benefícios das isenções fiscais, do marketing, e da apropriação de espaços das cidades. Segundo Leal (2012), essa configuração de governança tem implicado na presença dos interesses econômicos dentro do aparelho de Estado, na sua crescente privatização, e na diminuição dos espaços de interesse público em detrimento de sua função social.

Não estamos pretendo dizer que o domínio econômico na governança pública é uma novidade na administração pública brasileira e começou nos anos noventa. Pelo contrário, a penetração dos interesses dos agentes econômicos e a representação de seus atores nos espaços públicos não se constituem como um fato novo na patrimonialista cultura política do Estado brasileiro. As elites tradicionais sempre exerceram influência nos assuntos administrativos e sempre exerceram cargos públicos nas três esferas governamentais. O que mudou a partir da abertura dos mercados nos anos 90, com os avanços tecnológicos e a reestruturação produtiva foi a inclusão de outras formas de articulação entre Estado e mercado. Segundo Leal (2012, p. 64),

[...] as chamadas elites modernas passaram a se fazer representar por intermédio do capital imobiliário, do industrial, vinculado ao capital internacional, dos segmentos financeiros e bancários, das grandes corporações do comércio moderno e dos serviços especializados. A emergência dessas elites não eliminou a convivência pacifica do Estado com as antigas frações da burguesia nacional- tradicional, mas ao contrário possibilitou a articulação de alianças que iriam favorecer, mais ainda, o poder de pressão dos grupos hegemônicos. A capacidade de influência desses novos atores econômicos sobre a direção. Como dito antes, a tradicional forma administrativa modernista-funcionalista de planejamento, dominante até a década de 1970, começou a ser desmontada pela ideologia

neoliberal. Neste novo contexto, emerge o chamado “planejamento estratégico”, cuja critica fundamental foi construída no Brasil por autores como Carlos Vainer (2000; 2001). Na contramão do tradicional planejamento físico-territorial, o novo modelo de planejamento passa a enfatizar a implementação dos chamados grandes projetos de desenvolvimento urbano como vetores privilegiados e “estruturantes” do desenvolvimento. São exemplos recentes as obras para a Copa do Mundo Brasil 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro 2016.

Operações emblemáticas, voltadas para a construções monumentais e espetaculares e para a projeção da imagem urbana, tais iniciativas vêm, quase sempre, acompanhadas das parcerias público-privadas, da concessão de vantagens fiscais e da privatização dos espaços urbanos (MASCARENHAS, 2014). Os grandes projetos de desenvolvimento urbano sintetizam as novas formas de fazer e refazer as cidades do capitalismo contemporâneo. A lógica do mercado, nesse contexto, é alimentada pelas agências multilaterais e pelos consultores internacionais, e passa a dominar o debate, o discurso e a prática das administrações urbanas.

Esta nova gestão estratégica pressupõe não apenas a presença de um governo local, mas uma coalizão de forças globais e locais denominada de governança urbana, que, segundo Mascarenhas (2014), tem como premissa a atuação conjunta do governo local, da iniciativa privada e da sociedade civil. A premissa implícita deste discurso, segundo Souza (2006, p.129), é a de que: “o que é bom para as empresas e faz a prosperidade econômica aumentar também acaba sendo bom para a população em geral”. Dessa forma, o papel do Estado é de pactuar e construir acordos e negócios que permitam a promoção da imagem da cidade.

Uma cidade empresa/mercadoria está sempre em busca de negócios. Sempre em competição com as demais cidades da sua região e do seu país. Conduzida sempre como uma empresa, com comandos claros de quem detém o capital, a cidade deve sempre estar unida para competir, por isso, as campanhas de marketing urbano promovem a unidade entre os citadinos e a eliminação dos conflitos. Como se não houvessem diferenças sociais e econômicas profundas na composição da cidade.

Cada vez mais a lógica da gestão empresarial se faz presente na governança das cidades. Produtividade e competitividade tornaram-se as principais qualidades a serem buscadas pelas cidades. Instituições e agências locais e internacionais como Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e consultores internacionais incentivam a competitividade entre as cidades.

Segue-se um trecho de documento do Banco Mundial, em que se sugere o que as cidades devem fazer: “ [...] competir pelo investimento de capital, tecnologia e capacidade empresarial; competir para atrair novas indústrias e negócios; ser competitivas nos preços e qualidades dos

serviços; competir para atrair mão-de-obra qualificada [...]” (WORLD COMPETITIVE CITIES CONGRESS, 1998 apud VAINER, 2003, p.2). O raciocínio, como já se afirmou aqui, é simples e claro: se a cidade é um grande negócio, ela deve ser conduzida pelos que entendem de negócios. O que fica claro é que as formas de governança das cidades impulsionadas pelos processos de democratização do país não retiraram de cena a influência das elites econômicas, muito menos conseguiram resolver os problemas estruturais da pobreza e da desigualdade urbana e todas as suas consequências. Ainda que os impactos decorrentes das atuações dos atores econômicos não atuem de forma direta e igualmente distribuídos, podem interferir no processo de articulação de sistemas urbanos nacionais e regionais, produzindo desafios sociais e econômicos diferenciados, para as cidades que os compõem. (SINGER, 1977; SASSEN, 1991, 1998). É neste sentido que as questões relativas às temáticas da gestão e governança urbana subordinam-se ao pilar econômico, assimilando as determinações que por ele lhes são impostas. O problema não está no poder privado em si, mas no pensamento hegemônico de transformar a cidade em, unicamente, um objeto de consumo privado, acessível exclusivamente a uma parcela da população mais favorecida economicamente e com maior proeminência política/social. As correntes que formam o urbanismo crítico (trataremos o termo com maiores detalhes no próximo capítulo), identificadas com a crítica ao ideário neoliberal, expõem esse conflito típico dos excluídos que lutam pelo direito a criar e fazer parte dos espaços urbanos. Este conflito pode ser traduzido na fórmula “direito à cidade” versus “cidade mercadoria”.

A ideia do espaço urbano como mercadoria é onipresente, tanto nos meios de comunicação como no plano político e na vida cotidiana. “A mercadotecnia da cidade, vender a cidade, converteu-se em uma das funções básicas dos governos locais [...]” (BORJA; FORN, 1996, p. 33). Bava (2014) esclarece que a privatização, a mercantilização e a segregação são elementos inerentes ao modo contemporâneo de concepção da cidade:

A vida nas cidades se transformou numa mercadoria. O espaço público se fragmentou, se privatizou, a segregação se impôs. Bairro rico de um lado, com todos os tipos de serviços públicos disponíveis, shoppings, espaços de lazer, polícia privada garantindo a segurança. Bairros pobres e favelas de outro, ocupações com habitações precárias autoconstruídas, sem esgoto e muitas vezes sem água potável, com a eletricidade vinda de ligações clandestinas, em áreas de risco sujeitas a deslizamentos e inundações, sem equipamentos de educação e saúde, sem transporte público adequado, acossados por uma polícia que criminaliza a pobreza (BAVA, 2014).

Para Maricato (2014, p. 20) quando determinado espaço urbano é visto como mero produto, o resultado é a segregação urbana, com violação de direitos, sobretudo, o chamado “direito à cidade”, que é entendido pela autora como uma forma superior dos direitos.

A mercantilização se aplica efetivamente a determinados “pedaços” do tecido urbano, ou seja, as partes mais valorizadas, justamente por que ao grande capital somente interessa determinados espaços, e não o conjunto da cidade. Tais espaços “atraentes” são aqueles que apresentam potencial de alta rentabilidade, de grandes negócios, e tal potencial deriva de várias condições: estímulo de políticas públicas (linhas de crédito especiais, subsídios etc.), a existência de bairros ou zonas em obsolescência que são indicadas para requalificação urbana e outros contextos nos quais se abre oportunidades diversas aos investidores. Sánchez (2010, p. 20) afirma que a mercantilização da cidade opera em dois sentidos:

Os espaços capturados pelas relações de produção capitalista, que são incorporados aos processos de reestruturação urbana em curso, podem se destinar à produção ou propriamente ao consumo do espaço. No primeiro caso, por intermédio de obras de infraestrutura, operações logísticas de otimização de fluxos produtivos e obras de modernização tecnológica que agregam densidade técnica aos lugares para atração de empresas multinacionais; no segundo, por meio de operações vinculadas ao turismo e ao lazer, operações imobiliárias e, finalmente, operações voltadas ao consumo da cidade, estimuladas pela publicidade.

Dessa forma, o modelo urbano característico das cidades que praticam esse tipo de gestão e cujo os atores econômicos tem papel central é um modelo que dá prioridade a grandes edifícios, grandes vias de circulação e operações imobiliárias especulativas, frente a qualidade de vida das pessoas em seus bairros. Esses planos urbanísticos, projetados segundo critérios econômicos de zonificação, potencializam as diferenças entre centro e periferia, entre área nobre e área pobre, propiciando que alguns bairros fiquem segregados e incomunicados.

Além dos diversos problemas causados por essa lógica de gestão das cidades junto ao capital financeiro, há outros problemas típicos de algumas realidades da administração pública brasileira: a corrupção – que permite a especulação e, principalmente, superfaturamentos – e a influência das oligarquias políticas e econômicas que favorecem determinados grupos, locais e regiões em detrimento de outros. Com relação a cidade do Recife, lócus de nossa pesquisa, Leal (2012) esclarece que o papel dos atores econômicos na governança dessa cidade não pode ser percebido sem que se considerem as vinculações das elites locais com as frações do capital nacional e internacional. Observando, sobretudo, as características de sua formação urbana que permitem melhor visualizar os conflitos originados pela marca indissociável da presença dos segmentos tradicionais nas articulações com o Estado.

A necessidade de habitação gerada pelo aumento da população também faz que se construa mal e rapidamente o que propicia, por um lado, a especulação dos terrenos por parte dos proprietários, e por outro, as más condições de equipamentos públicos e habitações construídas

nos bairros. Ocorre que os proprietários dos terrenos buscam construir o máximo que podem, rápido e mal, sem atender as questões sociais como a falta de espaço público, serviços e equipamentos. Em paralelo a isso, as prefeituras e governos, de maneira geral, preocupam-se mais com a imagem da cidade que atende as necessidades das pessoas que a visitam, deixando de lado os problemas estruturais da periferia urbana.

5 Cidades Possíveis: Propostas para o Direito à