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4 O Objeto da Política: A Cidade

4.2 A sociedade Moderna e as escalas não-humanas

Antigamente as forças dominantes eram a separação e a especialização; agora fala-se de simultaneidade, multiplicidade, incerteza, teoria do caos, redes, pontos nodais, interação, hibrido, ambivalência, esquizofrenia espaço de fluxos, cyborgs, e assim por diante.

Van Toorn

Entendemos que a Cidade Moderna é um modelo resultado de processos históricos e revoluções de diversas áreas que culminaram em pensamento, cultura e modos de vida que chamaremos aqui de modernidade.

A modernidade teve como eventos decisivos para seu surgimento o Renascimento, a Reforma Protestante e a Revolução Industrial. Mas sem dúvida, esta última teve influência determinante para a sociedade moderna que conhecemos, possibilitando a mudança do centro econômico do campo para a cidade (HESPANHOL; HESPANHOL, 2006). Foi a partir da Revolução Industrial que as cidades começaram a ganhar importância. Transformações ocorreram e a cidade contemporânea passa a ser uma sociedade urbana dominada pela tecnologia, pelo mercado e pela aceleração da vida cotidiana.

Estas revoluções também permitiram uma combustão na área da ciência, com a proliferação de pensadores, cientistas e filósofos, tais como: Copérnico, Galileu, Descartes e

Newton. A partir de então tivemos uma verdadeira revolução científica, reposicionando o homem e sua visão do mundo e de cultura. Com estas mudanças, a modernidade anunciou o fim do sagrado e da crença em Deus e na salvação pelo espírito, inaugurando o fenômeno do “desencantamento” (SCOTT, 1997) do homem com o metafísico.

Segundo Shinn (2008), a modernidade, seguindo seus princípios norteadores, incorpora duas tradições: a corrente “emancipatória”, marcada pela Revolução Francesa, o estabelecimento do Estado Nação, a formação das fronteiras e exaltação do individualismo; que posteriormente permitiram as demandas emancipatórias dos movimentos sociais como os de 1968 na França (os resultados desta corrente são tratados na seção III deste trabalho). A segunda corrente denominada “tecnológica”, culminante das ideologias e epistemologias modernas, principalmente do cenário iluminista do mito do progresso, desenvolveu-se paralelamente ao componente emancipatório e será aprofundada nesta seção.

A tecnologia impera na modernidade de três formas principais: primeiro, ela impõe uma arregimentação do indivíduo por meio da disciplina e do trabalho especializado, dividido em tarefas e funções. Segundo, a ideologia do progresso científico, introduzida por August Comte, culmina com a busca incontrolável do progresso técnico em todas as áreas da sociedade. Terceiro, o imperativo tecnológico reduz a margem de liberdade dos indivíduos. Embora tenham sido conquistados muitos direitos e deveres individuais, na modernidade, a liberdade individual é reduzida pela força da universalidade homogeneizadora, determinismo e pela ideia de racionalidade absoluta (SCOTT, 1997; SHINN, 2008).

O pensamento moderno foi criado e reproduzido no meio urbano ao mesmo tempo em que determinou sua estrutura, sua estética, sua cultura e seus modelos de vida. Segundo Habermas (1990, p.160), o pensamento moderno promoveu uma verdadeira reviravolta ontológica e epistemológica, instalando a dimensão antropocêntrica-subjetivante, centrada no sujeito cognoscente. A metafísica da modernidade coloca “[...] a razão como fonte das ideias formadoras do mundo e a história como meio através da qual o espírito realiza sua síntese [...]”. A modernidade prometeu que o homem alcançaria a liberdade, a racionalidade absoluta, que usaria a tecnologia como facilitadora para atingir maior qualidade de vida, que o progresso técnico e científico possibilitaria o desenvolvimento social e humano. No entanto, as promessas não foram totalmente cumpridas e as insuficiências da modernidade logo se revelaram. A bomba atômica e a possibilidade concreta do holocausto nuclear destruíram as pretensões da racionalidade científica e do projeto moderno de sociedade. Desde o século XIX, os paradigmas da modernidade vêm sendo contestados e já no início do século XX discursos dissonantes

começam a aparecer, dando início ao que autores como Jamerson (1984), Anderson (1999), Harvey (1999) e Lyotard (2008) chamam de pós-modernidade.

O termo pós-modernidade carece ainda de definições claras, mas, de maneira geral, pode- se entendê-lo como a ruptura com os princípios culturais, estéticos, econômicos e sociais da modernidade. O filósofo Jean-François Lyotard, em A Condição Pós-Moderna, caracteriza a pós- modernidade como uma decorrência da morte das "grandes narrativas" totalizantes. Lyotard entendeu a modernidade como uma condição cultural caracterizada pela mudança constante na perseguição do progresso. Pós-modernidade, então, representaria a culminação desse processo em que a mudança constante se tornou o status quo e a noção de progresso obsoleta (LYOTARD, 2008).

Jameson (1984), outro expoente pensador da pós-modernidade, argumenta que as características da cultura da pós-modernidade apresentam três elementos: a mudança constante e a multiplicidade dos indivíduos levando a perda de profundidade; a perda do entendimento linear e progressivo da histórica modificando as noções de espaço e tempo; e a emoção como centralidade, abrindo caminho para novas identidades. Na contemporaneidade, a modernidade transita, em seu fechamento e esgotamento, para a pós-modernidade. Ou seja, nos tempos atuais, vivemos realidades modernas e pós-modernas. Os princípios culturais desses dois movimentos estão influenciando e moldando o modo de vida das pessoas.

Nesta seção vamos aprofundar a discussão da influência do discurso moderno na vida urbana e na estrutura e estética das cidades. Estamos preocupados em entender de que forma os princípios da modernidade como, por exemplo, a racionalidade, o progresso, determinismo e a exaltação da ciência e da técnica permitiram e facilitaram o cenário de crise urbana que vivem as cidades atualmente. Com isso, não queremos argumentar que a crise urbana é o efeito simples e direto da modernidade, mas resultado, como diria Laclau e Mouffe (2015), de um complexo emaranhado de princípios, discursos, contingências, causalidades e articulações de forças hegemônicas e antagônicas que resultaram no que entendemos hoje por sociedade contemporânea.

Os problemas urbanos da cidade contemporânea são vários e bem diversificados. As grandes cidades sofrem principalmente com as poluições, engarrafamentos, violência, desemprego, desigualdade social. A falta de segurança tem sido um dos principais motivos que preocupam a população urbana, esse processo está diretamente associado aos outros problemas citados. As causas desses problemas são inúmeras e multifacetadas (BAUMAN, 2003; 2008).

A urbanização, muitas vezes, é descontrolada e sem planejamento algum, principalmente em países emergentes ou do “Terceiro Mundo”, como é o caso do Brasil. A urbanização acelerada

sem planejamento tem como consequências problemas de ordem ambiental e social. O inchaço das cidades, provocado pelo acúmulo de pessoas e a falta de uma infraestrutura adequada, gera transtornos para a população. Moradia, infraestrutura, transporte, energia, saúde, educação e emprego são alguns dos desafios das megacidades.

A globalização, a cultura da velocidade, a reestruturação econômica e as políticas neoliberais implementadas por instituições nacionais e supranacionais mudaram a matriz institucional-territorial da governança urbana (NOVY; MAYER, 2009) e mudaram, principalmente, a escala na qual a cidade é projetada.

A escala é um conceito histórico, varia com o tempo e de acordo com os conceitos culturais, sociais, econômicos, técnicos, etc., de cada época e lugar. A relação que o homem estabelece entre ele e o espaço no qual se move depende da sensibilidade do indivíduo que valora dita relação. Se o elemento que serve de padrão varia, a escala variará com ele. Para alcançar novas escalas e novos parâmetros, os governos e cidades antigas, muitas vezes, abrem mão de seu patrimônio histórico: edifícios antigos são abandonados ou deteriorados, depois derrubados para a construção de um novo edifício.

O termo “Patrimônio Histórico” atualmente designa um “bem destinado a usufruto de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se agregam por seu passado comum” (CHOAY, 2011, p. 11). Mas, a discussão sobre história, memória, patrimônio, passado é complexa e nenhuma destas palavras tem um sentido único. A atitude externa que habitualmente se tem com relação ao passado mostra o quanto a sua preservação – como produção simbólica e material – é dissociada de sua significação coletiva, e o quanto está longe de expressar as experiências sociais. Esta “história” apresenta-se sem referências ao presente e sem ligações significativas com as constantes modificações da cidade e das formas de vida que ela comporta.

Paoli (1992) aconselha determo-nos nos pressupostos em torno de concepções como “preservação” e “construção do passado”. Nesses termos, a autora acredita haver dois pensamentos distintos: de um lado, os que sustentam o pouco significado que têm o passado e seu registro diante daquilo que constitui o moderno e a modernidade, pela busca constante do novo. Nesse raciocínio, passado e história parecem virar o “antigo”, sua preservação deve, portanto, seguir critérios exclusivamente estéticos ou aqueles ditados pela racionalidade do mercado, já que a experiência coletiva e pessoal do presente deve ser remetida par o futuro. De outro lado, há uma atitude oposta – a de gostar do passado, de qualquer coisa que pareça “antigo”. Tal atitude, que parece oposta à primeira, está fundada implicitamente nas mesmas premissas: a

de não se reconhecer ou importar com a inscrição do significado coletivo no “legado” do passado (PAOLI, 1992).

Afasta-se o sentido da história da memória social ou, em outros termos, aposta-se que não há memória popular e/ou alternativa à do poder que seja suficientemente valiosa (ou documentada) para poder ser recriada. Esta escolha, segundo Paoli (1992), tem caracterizado a maior parte das políticas de preservação no Brasil e decreta a insuficiência e até a ilegalidade da memória social ou popular. Acrescenta ainda que só é possível construir uma política de preservação com a retomada das experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da população para se reencontrem com a dimensão histórica. Por isto, é necessário ter claro que o espaço da cidadania, que permite a produção de uma história e de uma política democrática de patrimônio histórico, deve ser mais que preservado, incentivado.

O reconhecimento do direito ao passado está, portanto, ligado intrinsecamente ao significado presente da generalização da cidadania por uma sociedade que evitou até agora fazer emergir o conflito e a criatividade como critérios para a consciência de um passado comum. Capaz de constituir uma cultura que não repudie sua própria historicidade, mas que possa dar-se conta dela pela participação nos valores simbólicos da cidade (PAOLI, 1992).

Esta desvalorização da história deu-se devido a sociedade moderna, ao longo do seu processo de industrialização, modificar o padrão de construção de suas habitações e espaços públicos. A arquitetura e o urbanismo, de modo geral, afastaram-se de seus princípios básicos para satisfazer requisitos que, muitas vezes, não têm relação direta com a habitabilidade e com as pessoas que vivem nas cidades. Gehl (2014) argumenta que o planejamento das cidades modernas pensa primeiro nas formas do edifício, no skyline, na cidade vista do avião e esquece das pessoas, negligenciando a dimensão humana. Para o autor faltam estudos e visão dos urbanistas para o “ground floor”, para o nível da rua, do chão, para a escala ao nível dos olhos humanos. Em seu livro “Cidade para pessoas”, Gehl (2014) alerta que é a primeira vez na história da humanidade que cidades não são construídas como aglomerações e espaços coletivos, mas como edificações individuais.

Além disso, o distanciamento da escala humana no desenvolvimento urbano cresceu ainda mais quando o carro passou a ser prioridade na vida urbana. Gehl (2014) aponta para o efeito negativo que o carro proporciona a um espaço público de qualidade, na medida em que espreme o espaço para o pedestre e acelera o cotidiano das cidades. Como exemplo de cidade tecnocrática que entendemos como Cidade Moderna, o autor cita a cidade de Brasília como símbolo do urbanismo moderno: na época de sua construção não se pensava nas pessoas e em como o modelo de cidade pode influenciar na qualidade de vida das mesmas. A realidade das

cidades modernas contemporâneas não está muito longe de Brasília (construída nos anos cinquenta), pelo contrário, está marcada por grandes edifícios e ruas planejadas para carros. Está marcada pela técnica que, quando não utilizada pensando primeiro nas necessidades humanas, favorece o desenvolvimento de cidades máquinas onde a prioridade é a reprodução do capital econômico e dromológico.

As cidades foram sempre os lugares onde a tecnologia prosperou. A tecnologia, em sua maioria, não nasceu no campo ou nas montanhas, pelo contrário, sua maior parte nasceu nas cidades, nos trabalhos de artesãos e artistas. Depois da Segunda Guerra Mundial as tecnologias e a indústria desenvolveram-se nas grandes cidades e suas periferias. Hoje as tecnologias de comunicação e informação como a internet, os smartphones e computadores dominam os centros urbanos e ofuscam o espaço real da cidade de maneira nunca antes imaginada. Como dito antes, as escalas nas quais são construídas as cidades há muito tempo deixaram de ser humanas. Movimentações e relações físicas dos humanos já não são critérios para planejamento e construção de habitações e espaços urbanos. Como mencionado, as sociedades modernas têm como critério principal a técnica.

As cidades que conhecemos hoje são meios para a comunicação, mas seus espaços públicos estão desaparecendo. Telli (2004) sugere que há um padrão circular: a medida em que há a diminuição dos espaços de convivência e a retirada das pessoas das ruas há também uma maior desintegração física do ambiente, o que aumentará a atração dos mundos virtuais. Caracterização da “cidade invisível” (BOYER, 1996). Estas observações levam à conclusão de que, muitas vezes, há pouca ou nenhuma diferença entre o chamado "mundo real" e o "mundo virtual" (OSTWALD 1997).

Explorações e estudos recentes sobre as cidades tecnologizadas indicam diferentes propósitos para a sua existência. A melhor tecnologia de hoje poderia estar morta amanhã. Contudo, é necessário tempo e estabilidade técnica para desenvolver e prosperar. Há diversas tecnologias disponíveis hoje para construir as cidades digitais do futuro. Será que podemos ser esperançosos e pensar que essas novas tecnologias incidirão em sistemas que facilitem a criação de lugares virtuais que são altamente usáveis e sociáveis?

Segundo Telli (2004), o ciberespaço como um todo permite-nos não só teorizar sobre as arquiteturas possíveis para cidade, informados pelo melhor do pensamento atual, mas para realmente construir esses espaços e transformá-los em um tipo completamente novo de domínio público. Quando tijolos se tornam pixels, as tecnologias de arquitetura tornam-se informacionais. Porém, para não cair na falácia de que, apenas, o aumento das tecnologias irá permitir uma cidade mais justa, Le Corbusier enfraquece o fato de que a saúde da cidade é a sua

capacidade de velocidade. Sua abordagem é semelhante à de Virilio, ambos argumentam ser a cidade contemporânea resumida a um sistema projetado elaborado de transporte. O centro da cidade não tem mais valor simbólico (sem catedral ou monumento cívico, sem nenhuma manifestação cultural). O centro serve apenas para as pessoas em movimento. Onde tudo está em movimento, a velocidade torna-se a única constante (TELLI, 2004).

É preciso atentar-se para não cair em outra falácia: a da técnica ou da tecnologia terem a responsabilidade pela destruição da humanidade, pois este equívoco é fruto daqueles que superestimam os resultados tecnológicos quando os avaliam sob somente uma visão: uns põem a tecnologia como salvadora da humanidade e outros a consideram a causa dos grandes problemas da sociedade. Segundo Lévy (1993), a tecnologia nunca foi boa nem má, é simplesmente tecnologia. Uma ferramenta que pode auxiliar ou destruir a humanidade.

No entanto, é mais fácil refletir sobre o uso de tecnologias existentes porque as demandas que as inovações tecnológicas implicam só se tornam claras depois que elas são introduzidas na vida cotidiana. Isto impede a imaginação dos possíveis efeitos de futuras tecnologias, impede a criação de soluções para os problemas contemporâneos causados pelo uso do aparato tecnológico pelo homem. Outro motivo que dificulta a reflexão é a natureza secreta e altamente complexa de algumas tecnologias. Muitos deles são originários de complexos de investigação militar ou industriais ultrassecretos.

Virilio (apud ARMITAGE, 2009) defende que chegamos ao limite crítico com respeito as cidades. Isto porque, hoje o tempo real das tecnologias ultrapassa o espaço real e físico das cidades. A principal consequência disto é a produção de não-lugares, onde tudo é padronizado, pasteurizado. Esta ditadura produz locais estéreis, sem vida. Segundo Augé (2010), o não-lugar configura-se como lugares transitórios que não possuem significado suficiente para serem definidos como “um lugar”. O não-lugar é o lugar comum da Cidade Moderna.