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5 A HISTERIA EM FREUD

5.4 A dupla consciência na histeria

Freud e Breuer apostaram nessa possibilidade de um saber que ultrapassa a consciência ao perceberem que algumas lembranças só são recuperadas sob o efeito da hipnose: “... a lembrança do trauma psíquico atuante não se encontra na memória normal da consciência, mas em sua memória ao ser hipnotizado” (FREUD, 2006 [1893-95], p. 47).

Seguindo esta ideia retomam a concepção de Charcot da “double conscience” na histeria, sendo que diferente de Charcot consideram que esta condição se aplica a todo tipo de fenômeno histérico e não só aos casos clássicos dos grandes ataques histéricos.

Do grande ataque histérico, os autores desistiram de esmiuçar todas as fases descritas por Charcot, e se ativeram à fase das attitudes passionnelles visto ser nessa etapa que as reproduções alucinatórias aparecem, quando ocorre a divisão mental. Nesse aspecto somos tentados a supor que a noção inconsciente insurge nesse momento, contudo, ainda não é dessa divisão que se trata, embora já se tenha falado em sugestão inconsciente e representações inconscientes. Aqui, nos Estudos, a divisão da consciência sugere a existência de duas instâncias, o consciente e o pré-consciente ou subconsciente, nesse caso mais especificamente chamam de estados hipnóides.

No terceiro capítulo dos Estudos há um tópico dedicado a questão da divisão mental, no qual Breuer apresenta a diferença entre o que seria a divisão mental e o que seria a divisão da consciência descrita por Binet e Janet. De acordo com Breuer, nos casos relatados por Janet as partes divididas são autodeterminantes, não se influenciam mutuamente, e é possível demonstrar as funções psíquicas na parte dividida; representa uma segunda consciência. Como se, ora a pessoa estivesse sob o domínio de uma parte da consciência ora a outra assumisse tal posição. Já nos casos de divisão mental dos quais os Estudos dão conta “a parte dividia da mente é ‘lançada nas trevas’10, como os Titãs aprisionados na cratera do Etna, que podem abalar a terra, mais jamais emergirem à luz do dia” (FREUD, 2006 [1893-95], p.248). Breuer parecia não acreditar ser possível acessar os conteúdos aprisionados. Talvez, nessa crença o Inconsciente freudiano tenha começado a nascer11.

Mas, Breuer menciona um aspecto interessante para justificar a distinção entre as hipóteses dos pesquisadores franceses (Janet e Binet) das hipóteses levantadas por ele e por

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Citação do Fausto, parte I, cena 4.

11 Antes de Freud, o inconsciente já era mencionado em outros campos do saber, na literatura, nas artes, etc. O termo inconsciente é polissêmico e não foi inventado por Freud. Desde a antiguidade que o funcionamento da consciência interessa aos pensadores. A partir do pensamento de Descartes é atribuído à consciência o domínio do funcionamento psíquico, visto que estivesse do lado da razão. A subversão desse pensamento começa a se configurar no século XIX com a filosofia alemã, sobretudo a filosofia de Nietzsche (1844-1900) e Schopenhauer (1788-1860) que passam a considerar no homem o lado obscuro da alma ou psiqué, e a referência é de que este lado era submetido ao inconsciente. Possivelmente, este pensamento influenciou Freud na invenção de seu Inconsciente11. O início da formulação desse constructo está imbricado com a noção da dupla consciência. Pode- se dizer que a dupla consciência e os estados hipnóides são os primórdios da ideia freudiana de inconsciente.11 (Roudinesco e Plon, 1998, p.376).

Freud - as ideias derivam a partir do que é observado. Melhor dizendo, Janet tratava de pacientes histéricos oligofrênicos12 internados em hospitais psiquiátricos, enquanto Breuer e Freud tratavam de pacientes histéricos instruídos. Aliás, nos escritos de Breuer sempre surge uma descrição da personalidade de “seus” histéricos, e realmente o perfil traçado não condiz com pessoas incapacitadas, mentalmente enfraquecidas, doentes. Na verdade, ele insiste em traçar o perfil desses histéricos como pessoas vivazes e dotadas de grande vigor intelectual.

Freud e Breuer se ocuparam da proposição – a mente se divide - e da demonstração de que isso ocorre na histeria, assim como também em situações não patológicas. De fato, observamos que patologia e seus derivados são termos que pouco aparecem nos Estudos. Supomos que isso ocorra devido à natureza do objeto, pelo fato de não ser tão passível a enquadres de classificação patológica. Talvez por isso, pela impossibilidade de retenção descritiva meramente patológica despontem no texto tantos adjetivos para designar a histeria: histeria comum, histeria traumática, histeria disposicional, histeria adquirida; e referente aos sintomas: sintomas crônicos, agudos; sem falar na expressão “personalidade histérica” que a nosso ver remete tanto à disposição funcional do aparelho psíquico quanto à idiossincrasia das pessoas histéricas.

Sendo assim, as explicações sobre a histeria perpassam condições de normalidade, ou seja, foram procurados no funcionamento psíquico normal elementos que corroborassem as explicações para compreender o processo desencadeante da histeria. Mesmo no artigo sobre as considerações teóricas, de Breuer, essa comparação é notada. O que viria a diferenciar os processos psíquicos normais dos que levam à histeria é uma questão quantitativa, caracterizando a anormalidade – “é verdade que essas reações afetivas normais são características da histeria. Mas também ocorrem independentemente dessa doença.” (FREUD, 2006 [1893-95], p. 225).

Na descrição sobre a predisposição inata, composição presente nos Estudos, bem como não artigo sobre o Esquecimento – Mecanismo Psíquico do esquecimento (1898) - encontramos uma referência ao quantitativo para explicar a perda da memória rotineira, cotidiana (natural) e a perda da memória na histeria. Na verdade, Freud (2006 [1898], p.281) considera que o mecanismo psíquico que leva ao esquecimento é idêntico nas pessoas ‘normais’, e nos neuróticos, inclusive em termos de quantidade de recalcamento e esforço

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para esquecer. O que viria diferenciar era que o esquecimento do histérico (neurótico) acontecia também por força de certa volição, a isto Freud deu o nome de “resistência”:

Metade do segredo da amnésia histérica é desvendado ao dizermos que as pessoas histéricas não sabem o que não querem saber; e o tratamento psicanalítico que se esforça por preencher tais lacunas da memória no decorrer de seu trabalho, leva-nos à descoberta de que a tarefa de resgatar essas lembranças perdidas enfrenta certa resistência... (FREUD, 2006 [1898] p. 281 – grifo do autor).