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A histeria “adquirida” de katharina – breve ensaio sobre a relação da histeria com a

6. OS CASOS E A PSICOTERAPIA DA HISTERIA NOS ESTUDOS DE FREUD

6.3 A histeria “adquirida” de katharina – breve ensaio sobre a relação da histeria com a

Achamos importante retomar a questão do trauma na apresentação dos casos. Compreendemos que no caso Anna O não fica esclarecida a experiência traumática que resultou no surgimento dos sintomas, mas o que surge é uma descrição de sucessivos episódios que parecem sempre implicar o pai. As oscilações entre os períodos de melhora e piora dos sintomas propiciou que Breuer tocasse na questão da relação da histeria com a paternidade. Ele associava uma progressão ou regressão dos episódios sintomáticos da paciente sempre a alguma situação em que o pai estava implicado. Mas, devemos supor que aqui ainda não havia referência alguma à teoria da sedução pelo pai, como Freud passa a supor adiante. Cogitamos que Breuer não tenha levado sua interpretação a esse ponto, por um lado por considerar a imaturidade sexual de Anna O, e por outro lado por resistir a esta ideia de que há sedução na relação com o pai, ainda que reconhecesse o fator sexual como a maior fonte de excitação patogênica.

A relação de Anna O com o pai foi retratada no aspecto da sua devoção nutrida por ele, principalmente quando estava doente e após sua morte. A descrição do episódio em que Anna O alucinou o pai com o rosto de caveira, nos chamou atenção. Breuer informa sem destacar esse sintoma, em vez disso o situa apenas como um detalhe para falar sobre uma fase de obstrução ocorrida no progresso do tratamento. O assunto em questão era a dificuldade de recordar certas lembranças. Contudo, essa dificuldade parece estar imbricada a esta visão do pai como uma figura assustadora a ponto de levar a paciente à inconsciência. Simbolicamente, supomos que a figura do pai imprimisse uma lembrança ou uma fantasia que devesse ser rechaçada, por isso o susto e o desmaio, no momento de aproximação da cena “insuportável”. Acreditamos que para Breuer, esse insuportável se configure pela morte do pai. Dado o caráter pré-psicanalítico do caso, entendemos que essa temática não foi pensada para além dessa ótica.

No caso katharina é onde se pode perceber uma referência da sedução paterna como representante central da insurgência de sintomas histéricos18. Freud concluiu que Katharina apresentava crise de angústia com sinais de uma “aura” histérica (FREUD, 2006 [1893-95], p.152), ou uma histeria de angústia. Consideramos peculiar este caso porque não segue a

18 A revelação de que se tratava do pai e não do tio como aparece na narrativa, só é apresentada na terceira publicação dos Estudos (1925), numa nota de rodapé que foi acrescentada.

estrutura dos demais, decorre de um encontro fortuito nos Alpes. Pelo ano em que este encontro ocorreu – 1893 - Freud encontrava-se bastante envolvido nos estudos das neuroses. A inclusão desse relato parece se justificar pelo interesse de Freud em “constatar que as neuroses podiam florescer a uma altitude superior a 200 metros”. Sabemos ser impossível dizer se Freud foi apenas irônico nessa colocação ou realmente associava a neurose a uma espécie de “adoecimento” associado à cultura.

Na sequência relatada, essa marca da vicissitude do enquadre clínico em questão, possibilitou que Freud arriscasse um novo modo de aplicar sua terapêutica, uma espécie de interpretação selvagem. Freud expõe:

Deveria eu fazer uma tentativa de análise? Não podia aventurar-me transplantar a hipnose para essas altitudes, mas talvez tivesse sucesso em uma simples conversa. Teria que arriscar um bom palpite. Eu havia constatado com bastante frequência que, nas moças, a angústia era consequência do horror de que as mentes virginais são tomadas ao se defrontarem pela primeira vez com o mundo da sexualidade. (FREUD, 2006 [1895], p.153)

Notamos a convicção de Freud sobre a importância do componente sexual na causa das neuroses neste recorte. Ele antecipa o destino de suas conclusões acerca do referido assunto. No núcleo da queixa de Katharina, supomos que Freud tenha encontrado substratos para confirmar suas hipóteses, a partir do relato de uma experiência na qual a jovem foi telespectadora casual de uma cena erótica envolvendo seu tio. Katharina alegava não compreender o significado daquela visão, mas ao mesmo tempo parecia ter noção da gravidade da cena ao pretender revelar à tia o que havia assistido. A hipótese de Freud é que ela mesma teria sofrido investimentos sedutores por parte do tio (pai) e sendo assim tal experiência se tornara repugnante. Essa repulsa teria se transformado em sintomas conversivos após um período de incubação. Freud vai dizer então que o sintoma histérico a “uma escrita criptográfica que se torna inteligível após a descoberta de algumas inscrições bilíngues. Nesse alfabeto19, estar doente significa repulsa”. (FREUD, 2006 [1983 -95] p.155). Pensamos que o uso da expressão “inscrições bilíngues” tanto pode estar relacionada a duplo sentido da comunicação na histeria, ou seja, a essa difusão pouco direta, um tanto velada e que se ancora em artifícios desviantes do real motivo para a deflagração do

fenômeno histérico, por vezes se convertendo em sintoma; ou pode ser um modo de dizer que no processo de comunicação haverá sempre, no mínimo, duas versões de análise da narrativa, a da paciente e a do clínico. A continuação do relato demonstra bem isso. As perguntas que Freud fez a katharina pareciam apontar suas próprias suspeitas. De repente soaram como se tivessem a função de induzir a uma conclusão comum entre ambos; digamos que fosse uma esperança. Uma colocação de Freud nesse sentido viria corroborar esta impressão ao dizer: “Eu também não tinha nenhuma ideia. Mas disse-lhe que continuasse e me contasse qualquer coisa que lhe ocorresse, na confiante expectativa de que ela viesse a pensar exatamente no que eu precisava para explicar o caso.” (FREUD, 2006 [1983-85], p.155). É possível dizer então, que a decifração do sintoma histérico parte de dois referenciais e que o tratamento intenciona a construção de uma narrativa que dê sentido os sintomas. O que também suscita uma reflexão: se ao invés de haver um significado preexistente e oculto, este significado fosse elaborado, construído na relação.

Freud concluiu que o caso katharina seria mais um exemplo de “histeria adquirida” porque, como Rodrigué (1995, p.293) também observou, a jovem não apresentava condição neuropata, além de ser um caso de histeria que ocorreu em período pré-edipiano da personalidade. Freud percebeu semelhanças com o caso Lucy (caso 3 dos Estudos) no que diz respeito ao armazenamento da experiência traumática, diante da qual a repulsa foi instantânea, mas os sintomas surgiram num período posterior. A distinção entre os dois casos mencionados é que em Lucy o armazenamento da experiência soava como uma vontade do ego, enquanto que em katharina ocorreu o inverso, o isolamento se deveu a ignorância do ego desprovido de recursos ao nível do desenvolvimento para reconhecer um acontecimento traumático. Diante disso, entendemos que o sintoma se instala com ou sem a autorização do ego, a lembrança é recalcada mesmo sem o consentimento do ego, mas o trauma só se inscreve na medida em que haja o reconhecimento do significado da experiência. Isto é, quando o ego já é capaz de estabelecer o que é aceitável ou não. Desse modo, o trauma não se dá instantaneamente, está relacionado ao processo de significação.

Encontramos um artigo no qual a autora apresenta uma reflexão muito próxima da nossa, no que tange essa concepção sobre o trauma se dá a posteriori. Na opinião de Baratto (2009, p. 78), isso representa um avanço teórico que se dá dentro dos Estudos, reflete a sagacidade de Freud em concluir que o trauma não é engendrado no momento do ato concreto, do vivido, mas na interpretação e no sentido que a pessoa vai dar ao acontecimento.

A autora também compreende que a ênfase dada à lembrança ao invés do fato, originou o conceito de fantasma. E acrescenta que “na coletânea de textos que compõem os Estudos..., Freud utiliza a expressão fantasma para demonstrar a importância da atividade fantasmática na formação dos sintomas histéricos, sob a forma de devaneios, sonhos diurnos, romances que o sujeito constrói no estado de vigília”. (FREUD, 2006 [1893-95] p. 78 – grifo nosso). No entanto, na nossa leitura não nos damos conta de que a palavra fantasma tenha sido

mencionada nos Estudos sobre a histeria.

Lançamos mão de um questionamento interessante que Freud expõe no caso Katharina, lançado a partir dessa discussão. Assim ele escreve:

Gostaria, neste ponto, de externar a dúvida de se uma divisão da consciência devida à ignorância é realmente diferente de uma que se deva à rejeição consciente, e se mesmo os adolescentes não possuem conhecimento sexual com muito mais frequência do que se supõe ou do que eles mesmos acreditem. (FREUD, 2006 [1895], p.159)

Pensamos que esta dúvida de Freud, insere justamente o desafio dessa substituição da lembrança pela fantasia na concepção teórica a respeito do trauma. Até que ponto as lembranças de experiências traumáticas não são criadas, inventadas e em vez de ser fruto da recordação. Ainda que o fato fosse real, a atualização através da lembrança teria o colorido da imaginação produzida pela a energia pulsional.

6.4 Miss Lucy e Elisabeth – As histerias que possibilitaram os primeiros passos em