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7. OS NOVOS ESTUDOS SOBRE A HISTERIA CHARLES MELMAN

7.6 Histeria e escrita como via de inscrição

Pensamos que a busca pela restauração desse lugar perdido seria o que justifica a histeria. Maranhão (2011, p. 34) diz algo pertinente nesse sentido, ao supor que o sintoma histérico funciona como uma denúncia da inexistência de uma identidade feminina. A

afirmação coincide também com o que Melman (1985) diz sobre Freud ter tomado o sintoma na histeria como algo que pede um deciframento - mais do que uma simples leitura, um deciframento, posto que a linguagem seja estranha; linguagem de um sujeito que está em posição difícil ou mesmo impossível de ser definida, bordejada, delineada. O sintoma histérico se configura como uma língua estrangeira. O que tem de estrangeiro nessa comunicação está vinculado à condição de sujeito exilado, própria da menina que perdeu seu trono, própria da mulher que não assume uma posição fixada, um lugar reconhecido.

Interessante esta acepção do sintoma na histeria como uma linguagem, pois nos remete a uma associação com o que Melman (2003) diz da constituição subjetiva da mulher se dar também pela via da escrita. Então, por que não perceber o sintoma como uma tentativa de inscrição? Melman expõe essa ideia no livro “As novas formas clínicas no início do terceiro milênio” (2003). Este livro é resultado de um seminário ocorrido em Curitiba-PR no ano de 2002. Num dado momento, Melman foi interpelado com a seguinte consideração de A. Jerusalinsky: “Não estou seguro de que hoje a maior frequência seja de escutar a mulher reclamar ser tratada como sujeito...” (Jerusalinsky in MELMAN, 2003, p.25) dando sequência a esta colocação, explica-se: “(...) a mulher é mais sintônica com a atual tendência do discurso de situar o sujeito diante de uma produção supletiva, do objeto como assegurador do laço, a mulher parece estar mais inclinada ser tratada como sujeito e como objeto.” (Idem). Diante disso, Melman se posicionou dizendo: “Alfredo, você tem razão. É verdade que nós nos engajamos efetivamente nesse estilo. Porém percebam o seguinte: vemos cada vez mais escritoras (...) o que a mulher vai buscar nessa escrita?” (MELMAN, 2003, p.26). Sendo assim, percebemos que o autor acredita que esta seria uma das maneiras que a mulher encontra para criar uma subjetividade feminina, uma forma de se registrar, de revelar um ponto de vista onde da feminilidade se mostre e seja reconhecida.

Esta linha de compreensão do sintoma comparando-o a escrita no que concerne a uma tentativa de inscrição da subjetividade própria da posição feminina, associada à histeria como uma espécie de denúncia dessa atopia, nos proporcionou alguns desdobramentos.

Este ponto da nossa leitura nos reportou a um livro chamado “Minha ficção daria uma vida” (2010) de Ruth Silviano Brandão24, no qual ela escreve uma espécie de relato autobiográfico com um estilo muito peculiar, estilo que apreendemos como algo muito

24 Doutora em estudos literários pela UFMG. Trabalha com as interfaces entre literatura e psicanálise, e a construção de personagens femininas.

próprio da escrita engendrada na posição feminina. Simplificando, seria uma escrita feminina25. A nosso ver, a escrita feminina é aquela que traz à tona uma espécie de inquietação e o desejo de buscar um lugar; ao mesmo tempo é aquela que revela uma incompletude. Esses são elementos que aparecem tanto na forma quanto no conteúdo da escrita. Na forma, podemos dizer que seria uma escrita que não produz um pensamento objetivo, que em geral não se encerra com o ponto final, de modo objetivo; mas se mostra reticente e revela-se bastante polissêmica. Grosso modo, seria análoga ao que caracteriza a escrita literária – é a escrita maleável, não rígida, que cria uma realidade ficcional na qual a linha que separa a realidade da ficção parece muito tênue. Assim, no texto da Silviano Brandão, acima referido, supomos estar diante de uma escrita que pode ser compreendida como escrita feminina.

O campo no qual a escritora cria é a literatura, o que a nosso ver proporciona uma aproximação da escrita com as questões que a psicanálise se propõe tocar. Neste livro nos deparamos com os pilares do nosso estudo sobre a histeria. Observamos certa referência à desconstrução e principalmente à psicanálise, além de que o texto possui um estilo de criação, uma invenção criativa da vida que vai se constituindo através da própria escrita. Este livro, lido em tal contexto – o da leitura dos Novos estudos sobre a Histeria – se tornou expressão de semelhança entre a histeria e a escrita na busca por constituir uma subjetividade feminina, relacionada, sobretudo, a questão do lugar da mulher, que parece percorrer um lugar indefinido, uma terra sem chão. Brandão (2010, p.14) precipita uma interligação entre a escrita e a subjetividade feminina, entre a escrita e o fato de ser mulher: “esqueci de dizer que sou mulher, mas penso que já o notaram, pelas concordâncias que a escrita vai fazendo.”

Nos Estudos sobre a Histeria (1895), Freud nos induz a acreditar que a natureza do seu objeto de estudo, a histeria, pedia um jeito de escrever específico, como o que traz um traço de incompletude, uma espécie de abstração; elementos que compõe a escrita literária. Na ocasião, Freud parecia ter se lamentado, ao comparar seus relatos de caso a contos, mas também pode ser coerente supor que desde então tem se configurado esta paridade da histeria com a escrita e este algo que se inscreve reticentemente.

25 Maria Cristina Poli, em seu artigo – Uma escrita feminina: a obra de Clarice Lispector (2009) apresenta uma possível explicação para a expressão escrita feminina, numa concepção psicanalítica. Para Poli (2009) o estilo feminino de escrita trata de “operar com as categorias psicanalíticas de castração, privação e estranho.”.

A maneira como Brandão (2010) narra sua vida é como se escrevesse uma história de ficção (em muitos momentos até confunde o leitor). O estilo desta escrita induz a dois sentidos: a de que a escrita imprime a vida em sua objetividade e concretude e também a de que a escrita também inventa a vida. A escritora mescla fantasia e realidade de modo que nos parece difícil a distinção. Este mesmo procedimento a histérica, em Freud, teve, a ponto de confundi-lo sobre a sedução paterna, por exemplo.

Escrevendo ou fazendo um sintoma, o sujeito expõe metaforicamente vozes que não são dizíveis, mas ecoam. Poderíamos dizer que são reminiscências, elementos que formam a outra cena, como ocorre na histeria. E os produtos desses ecos são as arestas da subjetividade. Quando Melman (2008) fala que as mulheres escrevem muito mais hoje em dia, não implica que somente desse modo, por meio da escrita, elas saiam da posição de objeto e subsistam enquanto sujeito. Nessa colocação reconhecemos duas outras perspectivas: a primeira seria a de que ele estivesse falando, alegando que no que concerne a época, hoje em dia parece mais fácil utilizar a escrita como meio de se posicionar, se formos pensar em comparação com a época das histéricas de Freud. A segunda perspectiva tem a ver exatamente com essa ideia de que a escrita serve como via para sustentar a palavra, admitir um lugar que não seja tão indefinido como o é na posição feminina, além de comunicar as vozes inconscientes, tal como parece fazer sintomas histéricos. “Então escrever é uma tentativa de escutar os rumores que me habitam ou de vê-los tomarem forma de letras e servirem-me de oráculo, como tantas vezes aconteceu, sem que eu percebesse, no momento que acontecia.” (BRANDÃO, 2010, p. 24).

A narrativa de Brandão, ainda delata um pouco este lugar de submissão no qual o feminino se inscreve, independente da época, até porque a explicação para isto está nos argumentos de Freud sobre a castração e seus efeitos subjetivos. Melman nos Novos estudos sobre a histeria (1985) pensa a questão da feminilidade quando escreve sobre o recalque e mais especificamente sobre o recalque na mulher. Novamente, ele menciona as modificações introduzidas após o texto “Além do princípio do prazer (1920)”. As modificações que ele destaca seriam: o recalque não é mais atribuído ao eu (no texto está escrito Ich), mas ao sobre- eu 26; e a angústia não é considerada apenas como resultante do recalque, ela também o cria, como se fosse para proteger. (MELMAN, 1985, p.50)

A instauração da feminilidade, para Freud, acontece pelo recalque da atividade fálica na mulher, recalque este que, no entanto, deve ser limitado. O recalcamento de tendências sexuais e a renúncia a uma parte da atividade feminina, após a descoberta da castração é exato que aconteça, mas o que vai direcionar a uma feminilidade patológica ou “normal” é a medida do recalque. Melhor dizendo, tal recalque jamais deixa de ocorrer, mas não pode ser exagerado, nem mínimo, é preciso que haja certo equilíbrio; seria o grau de recalcamento da atividade fálica que comandaria o destino da mulher. (MELMAN, 1985, p.52)

Um questionamento surge daí: como saber a medida certa para este recalcamento ser bem sucedido? Melman (1985, p.53) vai lembrar que se esse recalcamento sendo limitado, também pode resultar na “assunção de um falicismo maior, mesmo que com aparência de ‘passividade’.” Esta opinião é um tanto complexa, mas pensamos que se justifica justamente porque os limites existem para domar excessos (conteúdos recalcados, talvez), e estes excessos que escapam é como se atuassem na surdina para sempre lembrar que, neste caso, a feminilidade é um estatuto inventado, que acontece as custas de muito esforço. Dito isto, pensamos que o recalque teria a dupla função de promover a possibilidade de instauração de uma identidade, de uma posição subjetiva, posto que balize a angústia da castração, mas também vai denotar que se trata de uma pseudomontagem27.

Antes de buscar alguma compreensão acerca da incidência do recalque na instauração da feminilidade, Melman (1985) explica o processo do recalcamento. Diante das suas colocações, compreendemos que há duas forças contrárias na função do recalque, uma de repulsão e outra de atração. Quer dizer que o que é recortado da consciência por efeito do recalque depende da atração de um recalque prévio (o originário). Este recalque originário é o que conserva a pulsão, que é aquilo que vai designar o que do conteúdo rejeitado da consciência pode conectar-se a ele a posteriori.