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6. OS CASOS E A PSICOTERAPIA DA HISTERIA NOS ESTUDOS DE FREUD

6.1 A histeria de Anna O

A doença manifesta em Anna O. levou Breuer a cogitar que o fenômeno histérico seria uma “psicose de natureza peculiar” (FREUD, 2006 [1893-95] p. 58). De fato, foi um caso rico no que concerne ao quadro sintomatológico: distúrbios da visão, psicomotores e da linguagem. Considera-se que este caso seja um dos “mitos fundadores da psicanálise” (ROUDINESCO E PLON, 1990, p. 568). Sugerimos que não somente por ser o primeiro dos casos relatados, mas porque nele a divisão da consciência, se mostra num plano mais visível, mais prático, através da referência ao teatro particular, ou teatro privado, como Maurano (2010) nomeia.

A divisão da consciência em Anna O. foi demonstrada pelos estados psíquicos o “melancólico, mas relativamente normal” (FREUD, 2006 [1893-95], p.59) e o das alucinações somado a um comportamento agressivo e hostil. Breuer chamou de absences - um termo que pode ser traduzido por ausência, falta, distração, abstração, alheamento - os momentos em que Anna O. encontrava-se sob o domínio da segunda consciência14. Este fenômeno psíquico era externalizado como se fosse uma divisão alusiva da própria pessoa, como se emergisse uma dupla personalidade. No relato do caso, consta que a paciente se queixava de ter dois “eus”, um real e um mal (FREUD, 2006 [1893-95], p.60).

No quadro de sintomas, os distúrbios de linguagem abrem o caminho para a discussão sobre a repressão de conteúdos mentais. Tal distúrbio em Anna O foi diagnosticado por um mutismo provisório e depois pela mistura de idiomas numa mesma frase, configurando um quadro de afasia sintática15. O surgimento desses sintomas parecia imposto por uma espécie de inibição a fim de evitar a exposição de um pensamento, sentimento ou lembrança recusada. Percebemos que esta inibição aqui era referida no sentido de uma escolha, como se a pessoa soubesse o que a desagradava em sua recordação e ideia indesejada. Através do método catártico, Breuer valorizou a crença de que em estado hipnótico, era possível “obrigar” a paciente a falar sobre o assunto reprimido.

Pensamos que esta percepção da recusa antecipa que a dificuldade de acesso às lembranças indesejadas não ocorrem somente a nível inconsciente. Alguma barreira nesse processo de rememoração se dá também na consciência, a partir da simbolização que a pessoa

14 Nos Estudos a expressão utilizada é condition seconde (p.67). 15 Incapacidade para dispor as palavras numa sequencia apropriada.

faz levando em conta os aspectos da moralidade, temendo o constrangimento, ou o comprometimento, que a livre expressão de certas ideias poderia causar.

Anna O. apresenta como um dos sintomas uma dificuldade de verbalização relacionada a um distúrbio de linguagem. Distúrbio este que para Roudinesco e Plon (1990, p. 568) está relacionado a uma característica pessoal da paciente no que tange ao seu grau de instrução, ao fato de ela conhecer e ter fluência em outras línguas. Em outras palavras, não acontece por efeito de um procedimento mágico, mas se favorece de elementos constitucionais da própria pessoa. A nosso ver, o ato voluntário de Anna O. em relação ao distúrbio de linguagem, revela uma defesa consciente, uma vez que Breuer tenha constatado que ela não falava em alemão, mas compreendia outra pessoa falando. Na evolução do caso, esses sintomas culminaram numa situação em que Anna O só falava e compreendia o inglês nos diálogos, mas ainda conservava a capacidade de ler em francês e italiano. Chegamos, assim, diante do que compreendemos como uma espécie de recusa à língua materna.

Melman (1992, p.16) define a língua materna como aquela que se sabe, a que “autoriza o locutor a falar como mestre” e também como aquela na qual o jogo de significantes tem um arranjo que permite escutar o desejo do que é impossível. Ele não reduz sua explicação ao fato de a língua materna ser tomada como uma lembrança de quem nos introduziu na linguagem, mas, vai dizer que é a língua na qual a mãe foi interditada.

De acordo com concepção de Melman (1990, p.18) temos a esperança de que levantando o recalque a reintegração da língua possibilite o sujeito a dizer tudo de seu desejo. De modo que a histérica viria contradizer essa lógica ao romper com a ideia de inconsciente estruturado como uma língua fechada, ao criar seu diabolismo - “Somente a histérica pode fazer crer que ela é habitada por um demônio ou por um Deus que se exprime em suas entranhas”. (MELMAN, 1992, p.36). Então, na falta desse tal diabolismo, o mutismo histérico ou a substituição do idioma configuraria uma recusa em falar na língua do opressor. (MELMAN, 1992, p.18).

No decorrer do relato, Breuer também abre um parêntese para contar um detalhe no quadro sintomatológico da paciente. Ele descreve que Anna O entrava em estado de clouds – palavra usada para designar um sono profundo – durante a tarde. Este comportamento ganhava ressonância em sua neurose a partir da experiência de cuidar do seu pai enfermo, devido ao comportamento padrão de ficar a noite acordada velando o doente e dormir durante

o dia. Em sequência ao curto período de clouds, ainda em estado de sonolência, era acometida por uma agitação e narrava alguma história, geralmente triste. Breuer anuncia que a se tratava da criação, imaginação, e não de uma situação real. Esta experiência de narrativa acalmava Anna O. e ocorria pelo estado de auto-hipnose. As histórias narradas continham uma ligação com o processo de adoecimento do pai, a situação nuclear era sempre de “uma moça ansiosamente sentada à cabeceira de um doente” (FREUD, 2006, p.64).

O caso Anna O. é famoso entre outros aspectos também porque cunhou a expressão da talking cure e chimney-sweeping – termos que a própria paciente utilizou para denominar o método terapêutico. A importância desse fato implica na consolidação do método catártico, criado por Breuer, no cenário de uma significativa relação estabelecida entre os dois personagens em cena. Mesmo os Estudos sendo um texto originário e até pré-psicanalítico (MAURANO, 2010), percebemos que a transferência já aparece como campo dinâmico e/ou dispositivo para que ocorra o tratamento. Constatamos isso de em alguns trechos no relato do vigente caso:

Quando me achava presente, esse estado era de euforia, mas minha ausência era altamente desagradável e caracterizada por angústia e excitação...; (...) Nesse intervalo não fora efetuada nenhuma “cura pela fala” porque foi impossível persuadi-la a confiar o que tinha a dizer a qualquer pessoa senão eu - nem mesmo do Dr. B. 16a quem, sob outros aspectos havia se afeiçoado. (FREUD, 2006 [1893-95], p.66 e 67)

O editor inglês explica numa nota de rodapé (FREUD, 2006 [1983-95], p.75) que em menções posteriores de Freud sobre o caso Anna O, ele concluiu haver a presença de uma forte transferência positiva não analisada da paciente em relação a Breuer, transferência de natureza inconfundivelmente sexual. Inclusive, este seria o motivo, na opinião de Freud, pelo qual Breuer resistiu à publicação do caso e consequentemente abandonou suas pesquisas sobre a histeria.

Recorremos ao texto de Freud sobre A dinâmica da Transferência (1912) para dizer que ele aponta a transferência como a mais poderosa forma de resistir a um processo de análise. Em seguida, num texto de 1914 – Observações sobre o amor transferencial, Freud propôs uma explicação para os casos nos quais, frente à manifestação de conteúdos amorosos

da paciente em direção ao médico17, ocorre a interrupção do tratamento, ou por abandono da paciente ou pelo manejo malogrado desse sentimento por parte do analista. Para Freud, este fenômeno é frequente e deve ser encarado, pelo médico, como algo que decorre da situação analítica, de modo que não tenha motivos para receber tal sentimento como uma conquista devido a seus atributos pessoais. A recomendação é que o médico não deveria nem corresponder a esse “amor” tampouco afastar-se dele, mas, antes, tentar enxergá-lo como um fenômeno irreal e dominá-lo para remontar às origens inconscientes sobre a vida erótica da paciente.

O método de cura instituído a partir do caso Anna O, direcionou a uma nova postura, uma nova ética - o método analítico. Um método subversivo, visto que o saber está do lado da paciente, ainda que inacessível. Subversivo também porque implica que o médico abdique do seu desejo, cedendo seu lugar frente à histérica, que é convidada a falar para possibilitar alguma compreensão sobre seu sintoma, do qual ela, supostamente, tem total domínio. (MAURANO, 2010, p.44). O valor atribuído à verbalização da paciente é visível no texto, pelas expressões: “sintomas removidos pela fala”; “escoamento pela fala”. Breuer chegou a ratificar que o sintoma era permanentemente eliminado depois de o fato originário, a ocasião que desencadeou o trauma, ter sido reconhecida e expelida através da fala.

Em Ramos (2008, p.143-148), encontramos a afirmação de que a Psicanálise nasce no momento em que a relação com a histérica é retirada do “discurso do mestre” (o discurso do poder – aquele de Charcot) e colocada no “discurso do analista”. Quando a histeria pôde ser considerada como doença da expressão, termo de Shoenberg – psiquiatra e psicoterapeuta londrino. Para este autor, Freud “lia” o sintoma, tratando-o como comunicação simbólica. (RAMOS, 2008, p.145)

6. 2 A histeria de Emmy Von N. – O malogro da hipnose

A primeira vez que Freud aplicou o método catártico no tratamento completo de uma neurose histérica foi descrito no caso Emmy Von. N. Tratava-se de uma senhora de 40 anos, viúva que apresentava traços de humor deprimido e tinha como queixa principal, ou sintoma

conversivo, toda a sorte de dores (gástricas, óssea, musculares, etc). Na opinião de Freud, era uma mulher gravemente neurótica.

Encontramos no Caso Emmy a introdução de tópicos inaugurais para o desenvolvimento da psicanálise. Introduz, por exemplo, a ideia de que as lembranças pertencem a uma época remota, isto é, à infância (FREUD, 2006 [1893-95] p. 69); também introduz a noção de resistência, pois ainda que utilizasse a hipnose e a sugestão, Freud começou a perceber certa dificuldade em prosseguir por este caminho. O que nos fez perceber uma contradição, posto que ao passo que este caso é reconhecido como o primeiro de aplicação completa do método catártico é nele que se inicia o processo de descrédito da eficácia do método.

Emmy se enquadrava no perfil de uma pessoa predisposta à histeria, mas diferente de Anna O não era suscetível à hipnose, não era sugestionável. Acreditamos que descrença de Freud nos efeitos da hipnose, bem como a hipótese de que há uma força atuando para impedir a liberação dos conteúdos reprimidos, de modo a fazer com que o sintoma persista, pode ser sintetizada nesse trecho, cujo contexto em que foi escrito infere que a paciente fizera um relato falso da história:

Evidentemente, que o fator erótico dessa pequena aventura é que a levava a fazer um relato falso da mesma. Isso em ensinou que uma história incompleta sob hipnose não produz nenhum efeito terapêutico. Acostumei- me a considerar incompleta qualquer história que não trouxesse nenhuma melhora e aos poucos tornei-me capaz de ler nos rostos dos pacientes se eles não estariam ocultando uma parte essencial de suas confissões. (FREUD, 2006, [1893-95], p.110)

Freud insistiu, como dissemos anteriormente no uso da hipnose até o fim do tratamento de Emmy, contudo a impressão que nos dá com base nessa experiência de Freud é que havia um acordo secreto e silencioso entre os dois quanto à utilização dessa técnica. Acreditamos que a eficácia da hipnose simbolize o pacto de cumplicidade que se dá na relação transferencial. Foi mais pela transferência estabelecida que a hipnose pareceu surtir algum efeito, do que na realidade tenha acontecido.

6.3 A histeria “adquirida” de katharina – breve ensaio sobre a relação da histeria com a