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2 O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DO POVO ORIGINÁRIO: BREVE

2.3 A EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: SEUS CAMINHOS

2.3.1 A Educação Física no contexto da Escola Cacique Iniguaçú

Neste tópico, minha pretensão é apresentar o cotidiano das aulas de Educação Física no contexto da E.E.I.E.F.M. Cacique Iniguaçú. Para tanto, utilizo-me da fala do professor Anderson Padilha57, bem como das informações presentes no questionário aplicado aos alunos do 6º ano (Ver Apêndice). Para melhor identificação atribuem-se letras de forma aleatória aos instrumentos, com o objetivo de ilustrar a quem pertence as respostas, sem, no entanto, fazer a identificação nominal.

Como exposto no capítulo um, a escolha pela primeira série dos anos finais do ensino fundamental se deu por ser através dela que nas escolas estaduais da Paraíba acontece o primeiro contato formal com um professor específico da área de Educação Física, visto que na primeira fase quem ministra as aulas deste componente não necessariamente é um docente graduado na área, sendo essa a realidade da escola de referência.

Os componentes curriculares Arte e Educação Física poderão ser ministrados pelo professor polivalente ou por um professor com Licenciatura na disciplina (Resolução nº 07/2010 - CNE/ CEB, art. 31). As aulas de Ed. Física serão ministradas em forma de atividades recreativas e, caso sejam ministradas por professor de Ed. Física, este deverá planejá-las com o professor da turma, em atendimento às necessidades de aprendizagem dos estudantes (PARAÍBA, 2019, p. 131). (Negrito nosso)

57 Anderson Padilha é professor de Educação Física da referida escola desde 2014. É indígena da etnia Potiguara.

No sexto ano do ensino fundamental, a Educação Física tem dois módulos-aula (Ver Figura 18), de modo que as aulas acontecem no contraturno, ou seja, a Educação Física ocorre no período da manhã, enquanto as demais disciplinas ocorrem à tarde. Segundo o professor Anderson Padilha, esta condição é um dos elementos que dificulta o trabalho pedagógico dentro do componente.

Como é no contraturno, muitos trabalham em casa, nos afazeres domésticos, ou seja, cata marisco, siri, vão para a roça, essas coisas, mas também tem aqueles que dão o ‘migué’58, mas nós temos que acreditar, pois primeiro vem a palavra deles, então

buscamos ajudar de alguma forma. (Entrevista realizada em fevereiro de 2019)59

Figura 19 – Matriz Curricular para o ensino fundamental do 6º ao 9º ano regular nas

Escolas Estaduais da Paraíba

Fonte: Paraíba (2019, p. 132).

As aulas acontecem nas terças-feiras, das 7h30min às 8h50min, em espaço externo à escola. São sempre práticas (Ver Figura 19), envolvendo diversos temas relacionados a conteúdos eurocêntricos, a exemplo, o futebol. A falta de estrutura adequada (quadra coberta) e de materiais apropriados também dificulta o trabalho de Educação Física na escola, segundo o professor Anderson.

58 Expressão que quer dizer enganar, enrolar.

Figura 20 – Aula prática de Educação Física da E.E.I.E.F.M. Cacique Iniguaçú – março de 201860

Fonte: Acervo do pesquisador

De acordo com o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, a Educação Física é um elemento importante dentro da proposta curricular da instituição, pois nela reside uma condição singular de aproximação com realidade dos educandos.

O ser humano, desde suas origens, produziu cultura. Sua história é uma história de cultura, na medida em que tudo o que faz está inserido num contexto cultural, produzindo e reproduzindo cultura. O conceito de cultura é aqui entendido como produto da sociedade, da coletividade à qual os indivíduos pertencem, antecedendo- os e transcendendo-os. Espera-se que nas aulas os alunos participem de atividades corporais, estabelecendo relações equilibradas e construtivas com os outros, reconhecendo e respeitando características físicas e de desempenho de si próprio e dos outros, sem discriminar por características pessoais, físicas, sexuais ou sociais. (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, ESCOLA CACIQUE INIGUAÇU, 2019, p. 28).

Para Borges (2002, p. 1), a Educação Física na escola “é um segmento da educação que utiliza as atividades físicas, orientadas por um processo didático e pedagógico, na perspectiva do desenvolvimento integral do homem”. Segundo Costa (2002, p. 1-2), à Educação Física atribuem-se alguns objetivos dentro do espaço escolar, são eles:

1. Socialização e Interação dos alunos; 2. Estimular a criatividade dos alunos;

3. Desenvolvimento orgânico e funcional dos educandos;

4. Desenvolver a aprendizagem de gestos e movimentos fundamentais das diferentes formas de atividades físicas e desportivas.

Nesse sentido, o PPP da escola responde ao seguinte questionamento: por que ensinar Educação Física na escola indígena?

60 A participação das meninas nas aulas sempre é muito baixa. Devido a muita ajudarem nos afazeres

Para favorecer ao aluno condições que possa confrontar as atividades realizadas, e contribuir para a formação de um indivíduo autônomo, capaz de atuar criticamente e transformar o contexto em que vive. Contribuir ao aluno se perceber enquanto sujeito pertencente a uma determinada classe social, para que as transformações que o mesmo ajude a imprimir na sociedade venham ao encontro das necessidades do grupo ao qual pertence. Bem como, garantir aos alunos o direito de conhecer mais profundamente os esportes, as danças, as lutas, as ginásticas, enfim, as práticas pertencentes ao universo corporal presentes em seu cotidiano (PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, ESCOLA CACIQUE INIGUAÇU, 2019, p. 29).

Uma das questões abordadas no questionário61 respondido pelos alunos versa sobre o que eles pensam a respeito das aulas de Educação Física e se esta disciplina é importante na sua formação. No universo de 22 alunos, 21 responderam que sim, considerando a Educação Física como importante para nossa formação, a exemplo da aluna C, 12 anos de idade, indígena, que justificou dizendo: “é bom porque a gente aprende mais coisas aprende a interagir mais e mais”. O aluno A, de 14 anos, indígena, foi o único a responder não achar importante as aulas, justificando sua resposta da seguinte forma: “fica correndo pelo campo cança as pernas, fica cançada”.

A Educação Física tem uma contribuição muito específica para com a escola e a sociedade, somando na formação de cidadãos capazes de refletir sua condição na prática social e assim poder contribuir para o processo de inclusão social, desde que sua prática esteja pautada em aspectos para além da esportivização e mecanização, buscando assim uma postura de criticidade sobre quais conhecimento serão validados no seu cotidiano pedagógico. Para isso, deve-se entender que “o conhecimento é um dos modos de aproximação do mundo pelo homem, e esta se dá através da atividade humana” (GEBARA et al., 1993, p. 212).

Sendo assim, perguntei aos alunos qual seria o objetivo das aulas de Educação Física, as respostas seguem no Quadro 4.

Quadro 4 – Opinião dos alunos sobre os objetivos das aulas de Educação Física

RESPOSTAS

Apenas brincar Cuidar da saúde Apender um esporte

Ficar junto com os amigos

Nenhum 5 16 1

Fonte: Elaborado pelo pesquisador

O olhar dos alunos sobre o cotidiano das aulas de Educação Física é ratificado nas palavras do professor Anderson Padilha: “eles não participam muito das aulas, e ela é bem

61 Cf. Apêndices

baixa, mas nos tempos dos jogos escolares, a frequência aumenta, eles querem fazer determinados tipos de esporte, como o futebol”. Esta fala não só reproduz uma realidade da escola indígena em questão, mas também se aproxima das realidades da Educação Física em outros estabelecimentos escolares na Paraíba. Na verdade, acredito que, na prática, a Educação Física, através do fazer docente, ainda não deixou de lado o seu caráter esportivista, o que também se deve à formação que nós professores recebemos na graduação.

Figura 151 – Aula prática de Educação Física EEIEFM Cacique Iniguaçú – Jogo de estafeta – março de 2018

Fonte: Acervo do pesquisador

Soares et al. (1992, p. 61) fazem referência à Educação Física “como uma disciplina que trata, pedagogicamente, na escola, do conhecimento de uma área denominada de cultura corporal”, entendendo a cultura corporal como os saberes referentes ao corpo nas suas diferentes formas de manifestação, ou seja, no jogo ou na dança, no esporte ou na ginástica.

Soares et al. (1992), na obra Metodologia do Ensino de Educação Física, defendem uma pedagogia crítico-superadora, segundo a qual os conhecimentos que são tratados no currículo devem promover a justiça social. Esta concepção permeia a fala de Anderson Padilha, ao ser questionado sobre qual vertente pedagógica está alicerçada a presença da Educação Física na Escola Cacique Iniguaçú: “[...] a gente tenta trabalha com a Crítico- superadora... certo... mas a gente vai se adequando aqui e ali... e tenta implementar alguma coisa parecida”. No meu entendimento, não existe prática pedagógica única, o fazer docente é permeado por uma diversidade de contextos, é neste sentido de possibilidades que a dinâmica acontece durante o processo de planejamento da aula e, principalmente, durante a aula.

O currículo escolar é um campo de disputa de poder, onde são validados determinados conhecimentos. Para Goodson (2013b), currículo é a forma de organizar o conhecimento e saber e como este saber será transmitido. Na conversa com o professor Anderson Padilha, ele explicou como era construído o currículo da Educação Física e quais conhecimentos eram validados: “O currículo é construído no PPP da escola... A gente trabalha no sexto ano os

jogos... brincadeiras... esportes e conhecimentos sobre o corpo” (Entrevista realizada em fevereiro de 2019).

O currículo não é constituído de conhecimentos válidos, mas de conhecimentos considerados válidos socialmente (SILVA, 2013, p. 8), ou seja, considerar os conhecimentos que comporão o arcabouço do conhecimento escolar perpassa por uma série decisões, didáticas, políticas ou sociais. Neste sentido, aponto a necessidade da construção de um currículo que dialogue com os saberes socialmente construídos e os saberes tradicionais do Povo Potiguara, possuindo como balizador o pensamento de Tomaz Tadeu da Silva (2013):

Diferentes currículos produzem diferentes pessoas, mas naturalmente essas diferenças não são diferenças meramente diferenças individuais, mas diferenças ligadas à classe, à raça, ao gênero. [...] É preciso reconhecer que a inclusão ou exclusão no currículo tem conexões com a inclusão ou exclusão na sociedade (SILVA, 2013, p. 10).

Usufruir de possibilidades que promovam uma dinâmica no cotidiano escolar, inter- relacionando conceitos e conhecimentos, permite um caminhar sobre as questões que permeiam o cotidiano da comunidade indígena, aproximando a realidade local circunstanciada na vida diária dos Potiguara, com práticas institucionais de educação diferenciada.

Dentro dessa perspectiva apresento a concepção do professor Anderson Padilha sobre como ele percebe currículo da Educação Física como possibilidade de (re)significação da cultura corporal Potiguara.

Acredito que o currículo ele pode afirmar nossa cultura... ele traz os elementos da cultura indígena... era pra ser utilizado de forma para afirmar esta prática... Por que através do currículo a gente pode se auto afirmar e realmente conhecer algumas atividades que as vezes a gente deixa de lado e praticar mais nossa cultura, não é só falar. (Entrevista realizada em fevereiro de 2019)

A exposição me fez refletir sobre o contexto da educação escolar indígena como premissa para ser explorada, no sentido de mecanismo para o fortalecimento das raízes indígenas. O horizonte no qual a escola Cacique Iniguaçú está inserida, ou seja, no centro da aldeia Tramataia, faz com que se interprete a importância da educação escolar para a comunidade. O público que a escola acolhe é composto de índios e não-índios, que vivem na aldeia ou em aldeia próximas, com isso, quero enfatizar a importância da interculturalidade se fazer presente nesse processo. A tradição, os costumes, os jogos, as brincadeiras, bem como as danças indígenas, que fazem parte da cultura Potiguara, devem estar presentes no currículo

prescrito, mas, principalmente, no currículo real, ou seja, na sala de aula. Sendo assim, Candau (2014) recorda que

A educação intercultural parte da afirmação da diferença como riqueza. Promove processos sistemáticos de diálogo entre diversos sujeitos – individuais e coletivos – saberes e práticas na perspectiva da afirmação da justiça – social, econômica, cognitiva e cultural – assim como da construção de relações igualitárias entre outros grupos socioculturais e da democratização da sociedade, através de políticas que articulem direitos da igualdade e da diferença (CANDAU, 2014, p. 1).

Os alunos, por sua vez, expõem a importância da Educação Física nesse processo, quando ela se deixa imergir nas relações socioculturais, ampliando seu leque de possibilidades. A aluna B, 11 anos, indígena, afirma que “[...] é importante aprender mais sobre a cultura indígena”. O aluno D, 11 anos, indígena, expõe que “com o exercício lembra que existe brincadeira indígenas”. A aluna H, 12 anos, não-indígena, reconhece essa importância, sobretudo, por não ser indígena: “importante, porque não sou indígena, é bom pra conhecer”. Já o aluno U, 13 anos, indígena, aponta: “porque nos tem que precisa demais da nossa cultura”.

O gestor Daniel Silva, ao ser questionado sobre a relação do currículo da Educação Física e sua importância da (re)significação da cultura corporal do Povo Potiguara, ressalta:

Sim. Porque nosso povo desde nossos antepassados eles se movimentam, através de jogos, várias outras atividades que eram feitas. E a Educação Física ela pode tá vivenciando e revitalizando todas estas atividades e práticas que eram trabalhadas, que eram feitas pelos nossos antepassados. (Entrevista realizada em fevereiro de 2019)

O que sinto com essas palavras é um desejo latente de uma convivência direta com a cultura indígena e o ambiente escolar. A Educação Física pode e deve absolver estes anseios praticando o exercício da reflexão a partir da decolonialidade e interculturalidade, aconchegando os contextos que se inserem na prática escolar cotidiana. Assim, convém ampliar o conceito de cultura corporal para, então, apresentar uma sugestão metodológica que possa ajudar expandir as perspectivas didático-pedagógicas das aulas de Educação Física.

2.4 A CULTURA CORPORAL: ELEMENTOS PARA REPENSAR O COTIDIANO DA