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A interculturalidade crítica e a pedagogia decolonial: ferramentas para a prática

1.3 A DECOLONIALIDADE: ASPECTOS PARA PENSAR A CULTURA CORPORAL

1.3.1 A interculturalidade crítica e a pedagogia decolonial: ferramentas para a prática

A decolonidade implica em uma mudança de paradigma, é voltar-se para outro prisma. Como ferramenta para que esta mudança ocorra no ambiente escolar, a pedagogia decolonial e, de forma mais profunda, a interculturalidade crítica se tornam “armas” primordiais para o enfrentamento das questões eurocêntricas enraizadas nos currículos escolares.

Tal premissa liga-se a este trabalho como forma singular de ressignificação da cultura corporal como conteúdo da Educação Física na escola indígena. Em vista disso, incorporo tais conceitos a este texto, como forma de subsidiar possibilidades de mudanças no entendimento sobre a visão que se tem acerca do papel da escola e, principalmente, da Educação Física dentro da mesma.

Refletir sobre o outro enquanto ser humano, que traz consigo diversos conceitos e experiências, implica entender que os conceitos imersos em nós se relacionam com os do outro, nascendo, assim, novas culturas e novos conhecimentos. Nesse sentido, a interculturalidade preceitua que o olhar para o outro parte do entendimento do diálogo acerca das manifestações conceituais e culturais trazidas a partir do envolvimento entre o humano. Tal como enfatiza Ferreira Neto (1997), a descoberta da humanidade do outro pode implicar ou não na aceitação da pluralidade cultural. De outra forma, Novak, Novak e Rocha (2012, p. 31) acrescentam:

Ao abordamos o curso da história podemos encontrar formas de compreensão da realidade que partem de uma visão etnocêntrica do mundo, na qual os sujeitos, inseridos em determinada sociedade, impõem suas formas de viver em detrimento dos que não comungam da sua cultura.

Conforme visto anteriormente, a coloniedade está baseada no eurocentrismo do poder (hierarquia social), do ser (raça) e do saber (o conhecimento), e o projeto de decolonização vem romper com essas dicotomias, atribuindo iguais valores a todas as manifestações de conhecimento e de cultura. Paulo Freire, em sua luta pela libertação de toda forma de opressão, buscou trazer a voz daqueles que não eram escutados, provocando sua libertação através a emancipação baseada no conhecimento oriundo das classes populares.

A desumanização, que não se verifica apenas nos que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica de total desespero.

A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, não teria significação (FREIRE, 2015, p. 40-41 – Itálico do autor).

Se a interculturalidade é o termo mais utilizado para esboçar as demandas provenientes das relações humanas, manifestadas nas políticas públicas e nos discursos de tolerância sobre o outro, Tubino (2005) e Walsh (2008; 2009) apresentam duas vertentes da interculturalidade, a saber: a interculturalidade funcional e a interculturalidade crítica.

A interculturalidade funcional é aquela que circunda o não questionamento das demandas culturais e implica em uma aceitação “pacífica” da regra do jogo, condizente com a lógica neoliberal que diz “respeitar” a diversidade cultural como forma de não colocar em risco a ordem dos acontecimentos. Segundo Tubino (2005), o interculturalismo funcional busca promover o diálogo e a tolerância sem tocar as causas da assimetria social e cultural hoje vigente.

Em oposição à interculturalidade funcional, estabelece-se a interculturalidade crítica que, segundo Walsh (2009, p. 22), “não é um processo ou um projeto étnico, nem tampouco um projeto de diferença em si, é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização”.

Com base nesse discurso, percebe-se o rompimento com a coloniedade, atribuindo uma postura de decolonidade que implica em emanar das vozes dos oprimidos sua visão dos fatos. Assim, “[...] entender a interculturalidade como processo e projeto dirigido à construção de modos ‘outros’ do poder, saber, ser e viver permite ir muito além dos pressupostos e manifestações atuais da educação intercultural bilíngue ou da filosofia intercultural” (WALSH, 2009, p. 23-24).

A interculturalidade crítica questiona o discurso enraizado das sociedades historicamente opressoras em detrimento do esmagamento e exploração das minorias, tidas como inferiores. Portanto, Walsh (2009) apresenta a interculturalidade crítica dentro de uma pedagogia decolonial, como ferramenta pedagógica para a libertação das amarras trazidas pelo eurocentrismo.

De maneira ainda mais ampla, proponho a interculturalidade crítica como ferramenta pedagógica que questiona continuamente a racialização, subalternização, inferiorização e seus padrões de poder, visibiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas que, mesmo tempo, alertam a criação de modos “outros”(destaque da autora) de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras. A interculturalidade crítica e a decolonidade, nesse sentido, são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e

pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir. Essa força, iniciativa, agência e suas práticas dão base para o que chamo de continuação da pedagogia decolonial (WALSH, 2009, p. 25).

A educação escolar diferenciada tem sido uma bandeira dos povos indígenas, ou seja, uma educação que valorize sua cultura e seus conhecimentos. Na visão de Daniel Munduruku (2012)33, escritor indígena, “a educação é um patrimônio muito importante. Educar para nossos Povos é um processo fundamental para a formação do ser humano”. A interculturalidade crítica vem contribuir com esta educação, tendo em vista o modelo de escola eurocêntrico, principalmente, abordado nas manifestações curriculares que adotam apenas a visão colonial sobre a história, impedindo o aparecimento de outras histórias, advindas dos grupos subalternizados.

Desde a constituição de 1988, as populações indígenas têm direito a uma educação diferenciada, que deve seguir os parâmetros das próprias comunidades. Os professores devem ser indígenas e ter formação superior. Além disso, é necessário materiais de acordo com essas populações, mas esse desenvolvimento está lento. Após quase 30 de promulgação da Constituição, não houve uma continuidade na política educacional para as populações indígenas. Houve um avanço significativo nessa área, mas isso ainda não responde às demandas. Na prática, os indígenas precisam entrar em contato com a educação formal sem abrir mão dos conhecimentos tradicionais” (MUNDURUKU, 2019, n. p.).

A professora Maria da Penha Silva, pesquisadora da temática indígena, mais precisamente do Povo Xucuru do Ororubá34, ao tratar sobre os subsídios didáticos fornecidos às escolas indígenas, afirma:

Os subsídios expressando inúmeras situações de desigualdades sociais entre as sociedades indígenas e a não indígena, colocando as primeiras em situações de racialização, subalternização e inferiorização em contraposição a supervalorização das expressões socioculturais dessa última; outro aspecto se refere às exigências legais d cumprimento dos duzentos dias letivos com atividades formalmente educativas, o que contraria a concepção mais ampla de educação para os povos indígenas, que consideram como atividade educacional diferenciada toda aquela que contribui para o fortalecimento identitário de cada povo, incluindo como espaços de construção de conhecimento os rituais sagrados, as relações com os elementos da Natureza, as mobilizações sociopolíticas, as tradições da oralidade, etc. (SILVA, 2016, p. 61).

Nesse sentido, a escola deve ser sensibilizada para atender às necessidades específicas da comunidade que ela atende. Pensar em uma escola que esteja preparada para a interculturalidade crítica de forma a romper com o pragmatismo instituído de forma unilateral.

33 Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WSyjdc4QKsE&list=WL&index=36&t=17s. 34 Etnia presente no munícipio de Pesqueira-PE.

Isso parte do pensamento crítico dos professores que devem se preparar e, principalmente, serem preparados para tal dinâmica.

Quando questionado sobre a questão do currículo e da escola, o professor Aldir Pereira faz o seguinte comentário:

Na realidade ela não abarca o conteúdo indígena nem para uma escola diferenciada. Nós que temos que planejar de acordo com nossos conhecimentos, se não temos o conhecimento, digamos assim, adequado para aquele ano de ensino buscar aquele conhecimento. Porque os conteúdos dos livros tradicionais não tratam. Agora como eu disse a gente não deixa de ver o Rio Amazonas, porque o Rio Amazonas é importante para o Brasil, é importante para gente, mas a gente de ver em falar especificamente do Rio Amazonas, nós falamos no Rio Mamanguape, que é nosso rio. Que traz alimentos e tem uma fonte rica em tudo. Tentar valorizar o que é nosso. (Entrevista realizada em maio de 2018).

A pedagogia decolonial pressupõe, exatamente, o questionamento sobre quais conhecimentos devem ser trabalhados com os alunos e quais as contribuições que trazem para a manutenção da cultura do Povo Indígena Potiguara. Neste sentido, a interculturalidade crítica se estabelece como ferramenta utilizada para alavancar novas visões sobre aquilo que é posto, o que, segundo os professores Elison Paim e Helena Araújo (2018), remete

A escola indígena como possível entre-lugar, como fronteira entre diferentes mundos e culturas, uma forma de conquistar as especificidades, projetos societários de cada povo, propondo a patrimonialização das leis em educação escolar indígena como uma conquista ao movimento indígena e diferentes povos originários (PAIM; ARAÚJO, 2018, p. 14 – Itálico dos autores).

Perceber a educação escolar indígena como elemento compositor de uma escrita entre as diversas culturas e os diversos conhecimentos, implica reconhecer que a decolonialidade e a interculturalidade crítica se fazem presentes neste processo de escrevedura de outras histórias.

1.4 DIÁLOGO ENTRE BENJAMIN E THOMPSON SOBRE O CONCEITO DE HISTÓRIA