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2 O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO DO POVO ORIGINÁRIO: BREVE

2.4 A CULTURA CORPORAL: ELEMENTOS PARA REPENSAR O COTIDIANO DA

Não há aprendizagem que não passe pelo corpo. O corpo é o elemento de sinergia entre o pensamento e o social. No corpo estão materializados os significados trazidos pelas

interações humanas, é nele que se inserem os signos e se produz a relação da existência humana.

Como foi apresentado anteriormente, em seu processo histórico, a Educação Física incorporou, por diversas vezes, vários sentidos. Independentemente do conceito, o corpo humano está no centro do processo, seja no olhar sobre ele de forma mecânica, seja no aspecto sociocultural. O corpo e, principalmente, o seu movimento, é o que compõe o cenário de estudo da Educação Física como área do conhecimento.

No capítulo primeiro, vimos o conceito de cultura apresentado por Thompson (1998), o qual se soma à definição de Moreira e Candau (2007), quando enaltecem que a “cultura refere-se à dimensão simbólica presente nos significados compartilhados por determinados grupos”, mais próximo deste trabalho, o povo Potiguara da Paraíba. Sendo a cultura algo simbólico, ou seja, seu sentido é individual, no sentido de único, singular, aqui é atribuído a um indivíduo ou grupo de indivíduos da mesma etnia, por exemplo, o Toré, ritual religioso do Povo Potiguara, mas que está presente em outras etnias indígenas, talvez até com outros ritos e significados.

Então, se a cultura é algo singular e não há singularidade que não passe pelo corpo, e sendo este o ponto de conexão dos significados, atrevo-me a conceituar, de forma simples, que a cultural corporal nada mais é do que a inscrição dos significados historicamente e socialmente constituídos através do movimento do corpo humano. Neste sentido, Neira e Nunes (2014) afirmam que a Educação Física é responsável pela difusão no ambiente escolar do que se define de cultura corporal de movimento.

Este componente é responsável pela transmissão e reconstrução das manifestações corporais a partir da sua historicidade, ou seja, o estudo e a compreensão das influências de diversos elementos filosóficos, políticos, religiosos, sociais e pedagógicos que se constituíram ao longo da sua história, para que possam ser superados, configurando uma perspectiva cultural sobre a linguagem corporal, isto é,

cultural corporal” (NEIRA; NUNES, 2014, p. 209). (Grifo nosso)

Os autores lembram ainda que não é qualquer movimento que se insere na cultura corporal, sobretudo os institucionalizados, padronizados, como, por exemplo, o movimento motor em uma cortada no voleibol, que é instituído cientificamente, eles se referem aos constituídos historicamente, como o dançar em torno de uma fogueira para os povos indígenas, ou seja, por trás do ato da dança há um significado cultural para estes povos.

Já se afirmou que é o movimento que confere especificidade à Educação Física escolar. Porém, não é qualquer movimento, não é o movimento institucionalizado, reproduzido, estereotipado e acabado. Trata-se do movimento humano como

sentido, com significado aferido pelo contexto sócio-histórico-cultural em que é produzido. Falamos do movimento que expressa e representa uma cultura, do movimento com intenção comunicativa de ideias, sentimentos, etc., que se dá no interior de uma manifestação cultural. Enquadram-se, portanto, as danças de origem africana, as lutas japonesas, o jogo de queimada e uma gama infinita de manifestações. Esta afirmação é possível devido ao caráter plástico da cultura (NEIRA; NUNES, 2014, p. 201).

A Educação Física faz parte do ambiente escolar, pertence a ele, nele se constitui e se realiza, nesse espaço pode organizar sua intervenção e os conhecimentos. Os atores escolares buscam compreender as diferentes culturas, organização social, o corpo e as práticas educativas do contexto escolar.

Dito isso, referencia-se a aldeia Tramataia, mais especificamente a Escola Estadual Indígena Cacique Iniguaçú, cuja história é longa e está ligada à história do Povo Potiguara e suas relações com outros povos indígenas, europeus, africanos e seus descendentes. Isso justifica a necessidade de a escola trabalhar com os discentes a noção de historicidade corporal, para que possam compreender as suas manifestações culturais ao estabelecer relações sociais entre pessoas de diferentes culturas.

Tal possibilidade de criar e organizar novas formas de experimentar e produzir as práticas corporais, dando a elas outros sentidos, sejam éticos ou estéticos, pode vir a ser um dos movimentos de produção de uma cultura corporal de movimento, a qual pode estabelecer pontes entre lugares, entre culturas, tornando, assim, um campo fértil de intervenção social.

Soares et al. (1992), ao denominar a abordagem crítico-superadora da Educação Física como metodologia que transcende a esportivização, através da tematização das aulas, delimita que esta área tem um conhecimento específico que está localizado no conflito do que “vem sendo” e do que “deveria ser” a Educação Física na escola, sendo necessária uma reflexão sobre a cultura corporal. Os autores defendem este componente no currículo escolar, no sentido de apropriar-se das atividades expressivas corporais que configuram o conceito da cultura corporal.

Proporcionando uma reflexão pedagógica sobre o acervo das formas de representação do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte, malabarismo, mímica, e outros, que podem ser identificados como formas de representação simbólica de realidade vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas (SOARES et al., 1992, p. 38).

No que tange à historicidade, característica que diferencia essa abordagem das outras, os autores afirmam:

[...] a materialidade corpórea foi historicamente construída e, portanto, existe uma cultura corporal, resultado de conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados pela humanidade que necessitam ser retraçados e transmitidos para os alunos na escola. (SOARES et al., 1992, p. 39).

Nesse cenário, vislumbro a necessidade de aproximação da Educação Física, ou melhor do seu currículo, com os saberes emanados da corporeidade indígena. Portanto, o que se propõe é uma concepção de Educação Física escolar que ofereça a oportunidade do diálogo por meio de encontro das diversas culturas, proporcionando aproximação, interação, experimentação, análise crítica, (re)significação e valorização das diversas formas de produção e expressão corporal presentes na sociedade, para que os educandos possam reafirmar sua identidade e reconhecer a legitimidade de outras.

Nessa perspectiva, Michel Apple (1999) rejeita qualquer modelo de educação que não esteja fundamentado na vida e histórias pessoais de professores, alunos e membros da comunidade escolar. De tal forma, a Educação Física cumpre seu papel de reverenciar a cultura corporal, trazendo como linguagem os significados das tradições do corpo indígena, fortalecendo a cultura corporal Potiguara, ao mesmo tempo que promove a (re)significação de histórias vividas pelo corpo indígena, nas suas danças, seus jogos ou suas brincadeiras.

Para isso, é necessário entender os anseios dos alunos, abrindo espaços para o diálogo sobre tais temas, refletindo sobre sua importância, aproximando a comunidade para participar da construção de uma educação escolar diferenciada. É na intervenção pedagógica pautada na decolonialidade e da interculturalidade que o diálogo entre as manifestações da cultura corporal e a sociedade se desvela.

Dessa maneira, Neira e Nunes (2009, p. 251) enfatizam que “o currículo pós-crítico da Educação Física não tem a intenção de trocar o centralismo da cultura corporal dominante por um centralismo das culturas dominadas”. Em outras palavras, não se nega a relevância de aprender a jogar o futebol, mas ressalta-se o valor de também vivenciar e experimentar os jogos, as brincadeiras e as danças tradicionais.

O currículo pós-crítico da Educação Física traz para o interior da cultura escolar as diversas produções sistematizadas nas mais variadas formas de expressão corporal, o que realça seu foco na diversidade. [...] Neste pensamento é imprescindível compreender que as culturas não é algo fichado que não entram em contato com as outras (NEIRA; NUNES, 2009, p. 261-262).

Sugere-se, assim, um currículo da Educação Física que se paute nas mais diversas produções da cultura corporal de movimento. Movimentar-se é escrever na história seu

significado, seu simbolismo, em um tempo e espaço. Um “tronco velho”, ao contar para os “troncos novos” com eram suas brincadeiras de infância, inconscientemente reescreve na história suas memórias através do movimento, pois, além da diversão, havia também a organização social para o brincar. Ao colocar este conhecimento em prática, os “troncos novos” (re)significam a cultura corporal indígena, que será repassada para outras gerações.

A prática pedagógica pautada na abordagem da cultura corporal, em pedagogia crítica e pós-crítica, visa proporcionar aos sujeitos da educação a oportunidade de conhecer os sistemas de significados de cada cultura (diversidade) por meio das manifestações corporais. É criar códigos de comunicação que favoreçam a interlocução democrática dos significados. É proporcionar aos educandos condições para estabelecerem uma relação dialética com seus pares, mediante a sua produção e conhecimento culturais. (NEIRA; NUNES, 2014, p. 228).

Penso ser possível identificar em todas as manifestações corporais os movimentos que expressam significados característicos à determinada cultura de sua época de criação. Torna- se importante ressaltar que todos os signos, sem exceção, são válidos sem oposição binária entre certo e o errado, o superior e o inferior, o adequado e o inadequado à escola. Essa perspectiva se diferencia da Educação Física tradicional, cujas análises consideram somente a dimensão eficiente dos movimentos, quer em termos biomecânicos e fisiológicos, quer em termos de rendimento desportivo.

Acredito que a escola diferenciada ou não, enquanto espaço público e democrático, poderá problematizar as diferentes manifestações culturais, aprofundando o estudo sobre seus sentidos e significados. Para melhor entendimento, exemplifico o estudo da história do Povo Potiguara da Paraíba, seus conflitos, suas vitórias, suas crenças, suas tradições, seus jogos e brincadeiras, ritos, artesanato, que revelam muitos hábitos e costumes.

Portanto, ao conceber o estudo dessas manifestações culturais na sua trajetória, na transformação de seus significados, na apropriação para posterior transformação, na construção permanente de prática de significação, as vivências das manifestações da cultura corporal investigadas poderão conduzir os alunos a compreender e formular opiniões a respeito do mundo em que vivem e acessar, mesmo que parcialmente, elementos de outras culturas.

Com essa atitude, a escola e, especificamente, a Educação Física, poderá proporcionar mudanças de paradigmas por meio de aproximação e da valorização de diversas formas de produção e de expressão cultural dos educandos e de outros grupos. A escola e seus professores passam a atuar e desenvolver um trabalho numa perspectiva intercultural, favorecendo as relações humanas entre diferentes elementos e grupos sociais, concretizando

uma educação realmente diferenciada em todos os seus aspectos. E a Educação Física, concernindo a cultural corporal como elemento constitutivo de sua prática, pode ajudar nessa mudança.

CAPÍTULO III

Quem pintou a louça fina, Ó Mãe de Deus, Caboquinha da Jurema Pedra fina (Letra Toré Potiguara – PB)

3 O POVO POTIGUARA E A CULTURA CORPORAL: SUAS VOZES COMO