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3 PROPOSTAS DE SUPERAÇÃO DA CRISE DEMOCRÁTICA ATRAVÉS DO

3.2 A efetivação da agency como atributo do sujeito democrático protagônico, a

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A sociedade civil contribui em termos de pluralidade, responsividade e representatividade com a democracia representativa por meio do controle social. O representante eleito comunica suas ações com relação à coisa pública, enquanto o cidadão devolve suas impressões, ao fiscalizar, acompanhar, participar de discussões e deliberar em uma circularidade democrática participativa. Uma teoria democrática adequada, portanto, deve reconhecer a existência do “poder negativo”, o qual permite ao povo soberano julgar, investigar, reprovar e influenciar seus governantes. A concepção de poder negativo identifica-se, em parte, com a ideia de controle social. O poder negativo, portanto, tem como sua finalidade:

deter, refrear ou mudar um dado curso de ação tomado pelos representantes eleitos; e ele pode ser expresso tanto por canais diretos de participação autorizada (eleições antecipadas, referendo, e ainda o recall, se sensatamente regulado, de modo que não seja imediato e, acima de tudo, rejeite o mandato imperativo ou instruções) quanto por meio dos tipos indiretos ou informais de participação influente (fórum e movimentos sociais, associações civis, mídia, manifestações). Esse poder popular negativo não é nem independente da nem antitético à representação política. Além do mais, ele é um ingrediente essencial do desempenho democrático da representação, porque entranhado no próprio caráter face de Jano desta instituição, que tem uma face virada para o Estado e outra para a sociedade. (…) Como oposto simétrico à comunicação enquanto “força socialmente integradora”, o poder negativo dos cidadãos combina as normas de comunicação deliberativa (reciprocidade e publicidade) com a representatividade do representante (URBINATI, 2006, p. 209).

Portanto, verifica-se que o controle social não se opõe à representação política. Pelo contrário, ele media a relação entre representado e representante, sendo fundamental ao desempenho democrático de uma representação. A esfera pública é animada e oxigenada pelo controle social, ao transformar a linearidade da fala, da opinião e do debate hermético em uma rede de discurso pluralizado.

De fato, enquanto um poder autoritário ou terrorista só permite uma estrutura monóloga de discurso, a democracia contemporânea possibilita uma rede dialógica dentro da esfera pública. A credibilidade de um governo pode ser questionada pelo controle social ou por instrumentos de accountability (responsabilização), tanto legalmente, através de tribunais de contas, por exemplo, quanto por meios indiretos. Dessa forma,

as discrepâncias percebidas possibilitam ações individuais e/ou coletivas de voz e de accountability horizontal, bem como de “accountability social” por vários meios, que incluem meios legais, ONGs, movimentos sociais e diversas associações que trazem à luz pública essas discrepâncias. (…) É claro, as variações nas discrepâncias percebidas são elemento crucial de uma das dimensões do estado (…), sua credibilidade. (O'DONNELL, 2011, p. 128)

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A participação política, por meio de controle social ou poder negativo, é fundamental para reforçar a representatividade e diferenciá-la de uma democracia aristocrática ou meramente eleitoral. A relevância do controle social em relação à democracia reveste-se no fato de que este “pode ser descrito tanto como uma força revigorante quanto como um indicador que, à semelhança de um termômetro, sinaliza o status da “força integradora” que liga os eleitos e a assembléia que sedia a sociedade.” (URBINATI, 2006, p. 209)

Os governos se tornam sensíveis às necessidades e interesses da maior parte dos cidadãos somente quando o estado de direito genuinamente democrático afirma-se e promove as liberdades políticas e civis, a igualdade e a accountability. Como mencionado, a garantia dos direitos básicos para exercício da cidadania e realização de uma eleição justa, como direitos políticos, civis, sociais, da igualdade e da accountability, constituem-se em condições de existência efetiva de um estado democrático de direito (O'DONNELL, 2004).

A accountablity realiza-se, portanto, de três modos: a vertical-eleitoral efetiva-se por meio de eleições institucionalizadas e competitivas, através das quais realiza-se a avaliação dos governantes e a alternância dos ocupantes de cargos públicos eleitos pelo voto. Um segundo modo de accountability de tipo social, vertical, ocorre por meio de grupos e indivíduos que acionam o Poder Judiciário para responsabilizar funcionários públicos por atos ou omissões ilegais. Um terceiro tipo consiste na horizontal, exercida por órgãos governamentais competentes para a fiscalização e responsabilização de agentes públicos (O'DONNELL, 2004). Concernente à última espécie, O'Donnell (1998, p. 7) apresenta uma conceituação bem específica:

La existencia de agencias estatales que tienen autoridad legal y están fácticamente dispuestas y capacitadas (empowered) para empreender acciones que van desde el control rutinario hasta sanciones penales o incluso impeachment, en relación con actos u omisiones de otros agentes o agencias del estado que pueden, en principio o presuntamente, ser calificadas como ilícitos.

Nesse sentido, cabe apontar uma distinção relevante entre as espécies de accountability. Em um regime democrático, por definição, há a vertical-eleitoral. O grau e a efetividade da prestação de contas social e horizontal, entretanto, pode variar de acordo com a época e as circunstâncias. Essas variações são levadas em conta no momento de avaliar a qualidade de uma democracia. A inexistência de uma sociedade capaz de mobilizar-se contra irregularidades cometidas pelo estado, a incapacidade ou a falta de iniciativa de determinadas instituições

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estatais para exercer suas funções de controle e autoridade sobre outras (especialmente sobre funcionários eleitos), por exemplo, são indicadores de uma democracia de baixa qualidade (O'DONNELL, 2004).

A fiscalização e controle do Poder Executivo, constitucionalmente, é atribuída ao Poder Legislativo, de maneira, portanto, horizontal. Contudo, para Fátima Anastasia (2015), em um contexto que combina separação de poderes e federalismo, a atuação do Legislativo fica limitada ao controle e vigilância em um mesmo nível de governo. O ideal seria a criação de uma rede de responsabilidades cruzadas, com o fim de ampliar as capacidades do Poder Legislativo em relação à fiscalização e acompanhamento da execução de polícias públicas. Dessa forma, as Casas Legislativas municipais, estaduais e federais cooperariam entre si, possibilitando a construção de uma dinâmica mais eficaz na fiscalização e controle da administração pública.

Em relação ao controle realizado por órgãos governamentais e pela sociedade civil, é importante destacar os mais recentes esforços no sentido de normatizar o tema. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) representa um grande avanço na transparência das contas e gastos públicos. Esta é balizada pelos princípios do planejamento, transparência e participação popular (PLANALTO, 2017c). A LRF demonstra que a participação popular, fundamento do controle social, depende intrinsecamente da transparência das ações governamentais e das contas públicas, já que sem informações suficientes e adequadas é impossível haver decisões de qualidade.

A Lei 9.755/98, por sua vez, impulsionou a criação do Portal da Transparência,

homepage destinada à publicação, por meio do Tribunal de Contas da União, de uma gama de

dados agrupados pelo título de “contas públicas”, entre eles, os montantes de tributos arrecadados pelos entes federados e pela União e relatórios resumidos da execução orçamentária. Com a ampliação do programa, tornou-se possível acessar as despesas relativas aos mais variados órgãos da administração, bem como consultar a remuneração mensal de servidores públicos (PLANALTO, 2017d). Não obstante, editou-se a Lei 12.527/2011, a lei de acesso à informação, para ampliar e cobrir áreas não abrangidas até então e incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciários, inclusive o Ministério Público e entidades da administração direta e indireta de todas as unidades da federação. A norma referida ressalta, especialmente, o princípio da publicidade dos atos públicos como regra geral, aplicável a todos

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os atos, e o sigilo como exceção. Ela é a norma mais abrangente até então (PLANALTO, 2017e).

O acesso à informação tem sido gradativamente ampliado e mostra-se como uma ferramenta indispensável à avaliação e fiscalização especialmente dos servidores eleitos. Porém, acreditamos que se pode e se deve avançar muitos mais para a consolidação de uma governança realmente transparente e para um controle social dos atos públicos verdadeiramente eficaz. Para tanto, devemos passar de um controle social informal, disperso e esporádico para um controle social institucionalizado. O acesso à informação torna-se inócuo quando não há meios adequados para utilizar essas informações e reagir a elas.

É claro que, no Brasil, pode-se dizer que é possível existir accountability vertical eleitoral, como punição e premiação a funcionários eleitos. Ademais, a existência de uma mídia relativamente diversificada e livre, da liberdade de opinião, possibilitam que sejam feitas denúncias de atos ilícitos praticados por detentores de cargos públicos. Junto a isso, a divulgação de denúncias pela mídia pode satisfazer a estratégia de naming and shaming (nomear e envergonhar, tradução livre), utilizada com frequência por organizações de defesa dos direitos humanos, mas dificilmente se convertem em punições reais, traduzidas em medidas legais, como a abertura de uma investigação, processo penal ou exoneração.

Contudo, para O'Donnell (1998), análises recentes demonstram ceticismo em relação ao verdadeiro poder de reprovação e premiação através das eleições. Ocorre que, a alta volatilidade de partidos e eleitores, pouca estruturação de partidos políticos, temas de política pública pobremente definidos e reversões políticas súbitas enfraquecem, definitivamente, a eficácia da

accountability vertical. Em verdade, essa é uma questão bastante complexa em razão da

diversificação de variáveis que determinam a reeleição ou não de um candidato.

De acordo com Rennó (2007), a dimensão de avaliação do voto retrospectivo é influenciada por distintos eventos e temas e pode estar relacionada ao desempenho do candidato em áreas diferentes da área da probidade e lisura e com relevância diferenciada. Não obstante, é válido ressaltar a pesquisa de Rennó (2007) acerca das eleições presidenciais de 2006, as quais resultaram em reeleição. Sumariamente, apesar da centralidade da discussão do tema relativo à corrupção durante as eleições de 2006, deflagrada por denúncias contra pessoas ligadas à administração do Presidente da República amplamente divulgadas pela mídia (não julgadas), os indicadores acerca da percepção do eleitoral acerca da corrupção não foram suficientemente

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fortes para impedir a reeleição do candidato. Para Rennó (2007), outras dimensões do voto retrospectivo, bem como a identificação partidária do eleitorado, a coligação eleitoral e a posição ideológica do partido foram mais influentes.

A sociedade civil, nesse assunto, promoveu considerável avanço com a proposição da LC n. 100/2010, a Lei da Ficha Limpa, a qual entrou em vigor nas eleições de 2012. Iniciada por meio de uma campanha pública, a lei de iniciativa popular objetiva impedir a candidatura de políticos e agentes públicos condenados por atos relacionados à improbidade administrativa e reprovação de contas de gestores públicos. A lei já causou o indeferimento de milhares de candidaturas e demonstra a imprescindibilidade da organização e poder de interferência da população nas regras e no cenário político.

Nesse sentido, Barber (2003) oportunamente aponta a necessidade de, nesse momento, superar o foco colocado no aspecto de vigilância e fiscalização para o aspecto da ação em relação à accountability. A accountability, desde a tradição política liberal, tem sido restringida à vigilância como único papel do cidadão espectador. Na democracia tradicional, a cidadania constitui-se de um laço entre o indivíduo e o Estado, enquanto as relações entre os indivíduos são puramente privadas e ausentes de cidadania. Portanto, quando a ação cívica resume-se à espera do cometimento de um ato ilícito pelo governante, ela logo deteriora-se em passividade e letargia. A virtude cívica existe, mas é traduzida em accountability ou controle recíprocos.

Contrariamente ao papel passivo, Barber (2003) ressalta a importância do empoderamento dos cidadãos em sua teoria de “democracia forte”. O autor substitui a tradicional accountability pela civility. Ele sugere a criação de um vínculo cívico entre os indivíduos e a governança, não vertical nem horizontal, mas circular e dialético. Desse modo, cria-se condições para o envolvimento do indivíduo no sistema governamental ao participar de instituições comunitárias de auto-governança e tornarem-se envolvidos uns com os outros em razão de seu engajamento comum na política. A proposta substitui o tradicional alcance de um consenso genérico pelo consenso criativo, o que significa um acordo que surge da conversa comum, da decisão comum e trabalho comum mas que tem como premissa a participação ativa e perene dos cidadãos na transformação do conflito por meio da criação de uma consciência e julgamento político comuns.

Imprescindivelmente, para que a civility se realize, deve existir ação pelo indivíduo. A atividade é a condição central para a “democracia forte”. Ela se traduz na concepção de que a

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política é algo feito pelos cidadãos e não para os cidadãos. De fato, esta “não somente coloca agência e responsabilidade no centro da atividade política, ela entende-as como uma resposta indispensável à necessidade do homem de agir face ao conflito – a qual é condição precípua da própria política” (BARBER, 2003, p. 134, tradução nossa).

A concepção de agência, nesse contexto, relaciona-se à efetivação tanto da

accountability quanto de qualquer espécie de participação política. A cidadania e a participação

política resultam, como conquista da democracia, para O'Donnell (2011), na identificação do indivíduo como agente. A democracia política reconhece que “a agência é legalmente sancionada como atributo básico da cidadania”. Além de sermos possuidores de agência, os sistemas legais democráticos exigem o reconhecimento e o respeito da agência do outro. Contudo, existem condições que podem possibilitar ou impossibilitar a agência. A violação de direitos humanos, compreendidos nestes as condições materiais de existência, o respeito à liberdade, são condições que a impossibilitam. Ser um agente significa ter a capacidade de decidir, com autonomia e responsabilidade, entre o conjunto de potencialidades, qual o curso a seguir. Fundamentado nos aspectos de igualdade e respeito mútuo presentes na agência, ele aposta num modelo democrático a partir da criação de uma “esfera pública de redes dialógicas de livre deliberação sobre questões de interesse geral.” (O'DONNELL, 2011, p. 205).

Nessa perspectiva, Barber (2003) afirma que a participação como modelo político obviamente pressupõe cidadãos capazes de fazer escolhas autônomas. Ademais, a participação exige o exercício da livre vontade deliberativa, de forma que a volição do indivíduo é aperfeiçoada. A vontade individual, desse modo, coloca-se no centro da concepção de cidadão- participante, enquanto o eleitor ou a massa possa ser caracterizada de maneiras que omitam sua livre agência.

Ademais, para O'Donnell (2011), a definição de agente é de base legal, pois o sistema legal de uma democracia política atribui os direitos e liberdades políticas e civis a todos os cidadãos, independente de particularidades pessoais, exceto aquelas referentes à capacidade civil. A atribuição da agência é, ainda, resultado de uma aposta institucionalizada, no sentido de que os indivíduos não escolhem seus direitos e obrigações, mas acham-se envolvidos em relações sociais já definidas pelo sistema legal. A agência cria a possibilidade de invocação de igualdade em situações em que a desigualdade esteja presente. Contudo, os atributos universalistas,

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esta mesma legalidade sanciona e ampara algumas relações sociais inerentemente desiguais: especialmente as que resultam do modo capitalista de produção e circulação e as que dominam as relações internas (e não poucas vezes as externas) das onipresentes burocracias, públicas e privadas, com as quais e sob as quais a maioria de nós convive – e também, em muitos países, relações desiguais de gênero, familiares, étnicas, e outras. (O'DONNELL, p. 244, 2011)

A ideia parte da existência de uma igualdade abstrata que, mais recentemente, tem sido aprimorada por considerações de caráter substantivo, tendo em vista ideais como a equidade. Isso tornou possível a emergência de novos direitos, inclusive aqueles de natureza econômica e social. Desse modo, a agência não pode ser separada do atributo da equidade. Assim, o exercício da agência na esfera política pressupõe condições materiais mínimas de existência e bem-estar. A agência, então, relaciona-se à necessidade de garantia de núcleo mínimo de liberdade aos indivíduos de forma a garantir a racionalidade e independência das decisões nos processos eleitorais e uma praxis política consistente na criação de instituições voltadas ao incremento da autonomia dos indivíduos e grupos.