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4. NARRATIVAS DE SI: ABORDAGEM (AUTO)BIOGRÁFICA

4.3 A emergência das pesquisas (auto)biográficas

Qualquer tentativa de reconstituir um determinado campo de pesquisa nos leva a pensarmos sobre a própria condição humana de se (re)entender a partir de si, e suas relações com o mundo em que vive. Mosquera e Stobäus (2004) colocam que essa dualidade está “intimamente ligada ao nosso desconhecimento e perplexidade, que, durante séculos, não têm sido minimizados e não têm chegado ainda a uma síntese epistemológica que nos propicie segurança e um certo equilíbrio epistemológico” (p.76). A dimensão das investigações narrativas, nesse sentido, não se propõe a se constituir como uma verdade científica e segura, mas se coloca como possibilidade interpretativa e compreensiva dos sujeitos nas temporalidades de suas vidas.

A multiplicidade e a diversidade que envolvem as discussões na contemporaneidade apontam que a teoria social, “sem dúvida alguma, está se tornando mais pluralista” (GEERTZ, 1999, p.10). O desenvolvimento de pesquisas em suas inúmeras influências teórico-metodológicas e linhas de pensamento tem proporcionado novas ferramentas de análises que permitem diferentes interpretações da realidade. Para Geertz (1999), “qualquer proposta de uma ‘teoria geral’ a respeito de qualquer coisa social soa cada vez mais vazia, e aquele que professa ter tal teoria é considerado megalomaníaco (p.10)”.

A emergência das narrativas45 como formas de compreensão das organizações e ações humanas, num sentido interpretativo, pode ser melhor entendida dentro de um contexto mais amplo das investigações científicas. Nóvoa (1995) reforça tal ideia ao apontar que a utilização contemporânea das abordagens (auto)biográficas “é fruto da insatisfação das ciências sociais em relação ao tipo de saber produzido e da necessidade de uma renovação dos modos de conhecimento científico” (p.18). Souza (2007), por sua vez, aponta para as circunstâncias que possibilitaram as investigações narrativas como produção de conhecimento, destacando que “é da contestação do positivismo que emergem as possibilidades de um novo paradigma compreensivo” (p.62).

Lock e Churukian (2003) analisam a crescente afirmação das pesquisas narrativas como contraponto às pesquisas de cunho quantitativo, que no início do sec. XX tornaram-se modelos em pesquisas sociais.

Muito cedo, cientistas sociais de alguns campos, particularmente antropologia e sociologia, convenceram-se de que os métodos quantitativos das ciências físicas não eram capazes de responder algumas importantes questões de comportamento. Pesquisadores e técnicos precisavam compreender o complexo contexto em que o comportamento ocorre. Eles entenderam que certos tipos de investigação não poderiam utilizar ferramentas tradicionais de coleta de dados. As questões que os pesquisadores propõem nas ciências sociais requerem com frequencia informações que revelem interações multifacetadas. Dados dessa natureza precisam ser coletados por outros meios que não escalas, testes e

inventários46 (LOCK; CHURUKIAN, 2004, p.95).

Com o aumento de pesquisas qualitativas a partir dos anos 60, multiplicam-se as críticas em relação aos seus métodos, denominados como parte de uma ciência “soft”: a abertura das pesquisas à subjetividade do pesquisador, o acúmulo de dados e a dificuldade de organizá-los objetivamente, a impossibilidade de generalização devido à particularidade de cada contexto, a não-quantificação dos dados, etc. Não obstante, “o uso de métodos narrativos e histórias de vida permitiram aos pesquisadores ter uma

45 A palavra narrativa é utilizada aqui tanto no seu sentido substantivo de história/relato de vida (narração), como no seu sentido metodológico de pesquisa/investigação a partir de relatos /histórias de vida. Para Connely e Clandinin (1995), a narrativa é tanto o fenômeno que se investiga como o método de pesquisa (citado em PEDRINI, 2013, p.32)

46No original:“Early on, social scientists in some fields, particularly anthropology and sociology, realized that the quantitative methods of the physical sciences could not be used to answer some important behavior questions. Researches and practitioners needed to understand the complex context in which behavior occurs. They understood that some types of investigation could not use traditional data collection devices. The questions that researchers ask in the social sciences often require data that show multifaceted interactions. This type of data must be collected in ways other than through scales, tests, and inventories”.

melhor compreensão de como alguns eventos ocorreram e seus significados na vida dos sujeitos47” (LOCK; CHURUKIAN, 2004, p.95).

Dosse (2009), ao produzir uma minuciosa revisão histórica do pensamento biográfico, aponta algumas características que têm evidenciado a importância das narrativas/relatos de vida a partir da segunda metade do século XX, impulsionando as pesquisas (auto)biográficas. O autor aponta que um desprezo obstinado havia condenado o gênero, sem dúvida muito dependente das “concessões à emotividade e ao fomento da implicação subjetiva”, até sua reivindicação, a partir dos anos 1980, pela “musa da história”, implicando numa verdadeira “explosão biográfica” que envolve autores e público (DOSSE, 2009, p.13).

O caráter híbrido do gênero biográfico, a dificuldade de classificá-lo numa disciplina organizada, a pulverização entre tensões contraditórias – como a vocação romanesca, a ânsia da erudição, a insistência num discurso moral exemplar – fizeram dele um subgênero há muito sujeito ao opróbrio e a um déficit de reflexão. Desprezado pelo mundo sapiente das universidades, o gênero biográfico nem por isso deixou de fruir um sucesso público jamais desmentido, a atestar que ele responde a um desejo que ignora modismos.

A multipolaridade do gênero biográfico, que se manifesta ao mesmo tempo nas matizes de sua intenção de realidade e na sua ficcionalidade exigida, localiza-o como terreno fértil para as novas condições das ciências humanas frente os desafios contemporâneos. Para Dosse (2009, p.69), a desestabilização de certezas e fronteiras disciplinares pode atribuir ao gênero biográfico “um lugar privilegiado, que retomaria a questão do sujeito do saber na esfera do conhecimento” (idem). Ou para Bernad Pudal, a biografia como elemento central na definição de uma epistemologia diferente.

No campo das investigações sociais, Dosse (2009) cita Mathias Finger, que apresenta quatro correntes principais de abordagens a partir de narrativas e suas possíveis contribuições teóricas para o revivamento das biografias nos estudos acadêmicos. São eles: as abordagens e métodos de pesquisa desenvolvidos na antropologia americana, a tradição de pesquisas empíricas da escola de Chicago e as contribuições da sociologia francesa com Daniel Bertoux e da sociologia italiana com Franco Ferrarotti.

47 No original: “the use of methods such narrative and story-telling allow researchers to have a better understanding of how some events have taken place and the meaning those events have had on the lives of the subjects”.

Em primeiro lugar, as biografias são consideradas representativas de uma cultura particular pela antropologia cultural, representada por Franz Boas, no início do séc. XX. Tais orientações de abordagem biográfica voltam com toda a força nos anos 1970, por meio da história oral (DOSSE, 2009). Constantino (2004) lembra que a narrativa oral sempre foi utilizada, de modo que ao longo dos séculos a história dos povos foi transmitida através das narrativas, até que a “História tornou-se refém do cientificismo do séc. XIX, desacreditando por longo tempo a oralidade, que começou a ser revitalizada nos meados do século XX” (p. 40).

O pensamento da escola de Chicago, por sua vez, contribuiu sobremaneira para a compreensão da subjetividade como elemento constitutivo da ação, deslocando a ênfase das determinações de condições e estruturas sociais. Dessa forma, a preocupação pela qual “um sujeito a partir de uma determinada visão da realidade, ou de um modo de interação com esta, muda seu comportamento, passa a ser o cerne da teorização social da segunda geração da escola” (VALENTIN; PIZEN, 2012, p.13). Bueno (2002) nota que a perspectiva metodológica utilizada pela escola de Chicago obteve grande sucesso principalmente entre as décadas de 1920-30. Entretanto, após cair em desuso, é só por volta dos anos 1980 “que o método passa a ser novamente utilizado no campo da sociologia, dando ensejo a muitas discussões, sobretudo quanto aos procedimentos e aspectos epistemológicos da abordagem” (p.17).

As outras correntes seriam representadas pelos trabalhos de Daniel Bertoux e Franco Ferrarotti, que, embora suas divergências, “arrancaram a biografia de uma situação de desafio exterior às considerações científicas”, dando ao método biográfico “valor heurístico” (DOSSE, 2009, p.249). Josso (2010), ao testemunhar sobre suas pesquisas com histórias de vida, localiza nos anos 1970 seu contato com as pesquisas narrativas, dando ênfase aos trabalhos sociológicos de Ferrarotti que foi, segundo a autora,

o primeiro a ter explicitado a guinada epistemológica constituída pela passagem de análises fundamentadas nos grandes números para análises baseadas na singularidade de uma vida ou da vida de um grupo. É assim que foi levado a criticar vigorosamente aqueles que desnaturam a especificidade do material biográfico multiplicando os relatos para encontrar uma “representatividade”, ou então, que os recortam em função de sua grade de análise, ou ainda, que fragmentam trabalhando sobre “faixas de vida” (JOSSO, 2010, p.131).

A autora ainda diz que os anos em que precisou para integrar esses saberes em suas pesquisas explicam-se pela sua caminhada intelectual e o da geração pós- positivista. Para Josso (2010), as abordagens biográficas “fazem correr tanta tinta”, precisamente porque recolocam na antecena “o lugar da subjetividade no trabalho científico, e a relação dos pesquisadores com seus informantes”; ou de modo mais geral, “a função das características culturais, e portanto epistemológicas, dos pesquisadores na elaboração dos saberes” (p.131).

As próprias condições que a sociedade ocidental passa a apresentar, principalmente a partir da segunda metade do século XX, abrem cada vez mais espaço para os sulcos da subjetividade e do cotidiano no tecido social. Dosse (2009) atenta, por exemplo, como o contexto de maio de 1968 cumpre seu papel na história de revitalização do vivido. Por sua vez, Nóvoa (1995) atribui a atenção às abordagens (auto)biográficas como um movimento social mais amplo, uma mutação cultural que “pouco a pouco, faz reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face ao instituído” (p.18). Ainda segundo Josso (2004), tal reabilitação do sujeito “pode ser interpretada como um retorno do pêndulo depois da hegemonia do modelo de causalidade determinista das funções funcionalistas, marxistas e estruturalistas do indivíduo, que dominaram até o final dos anos setenta”.

Pontualmente, Delory-Momberger (2012a) identifica a reconfiguração de modelos sociais por formas que privilegiam os processos de individualização e de subjetivação:

A acentuação dessas formas de socialização está ligada às transformações societais engendradas pela passagem de sociedades nacionais, industrializadas e centralizadas, a formas de sociedade cujos organismos políticos, sociais e econômicos perdem sua centralidade, cujas instituições não têm mais a mesma capacidade de integração e que demandam cada vez mais dos indivíduos encontrarem em si mesmos as forças propulsoras de sua ação no interior do espaço social (p.20).

Para a autora, tais transformações nas maneiras e modos de experienciar a vida definem os traços de uma nova configuração da relação do indivíduo com a sociedade, “na qual a biografia como processo de construção da existência individual torna-se o centro de produção da esfera social” (p.19). Esse seria um segundo sentido da condição biográfica, já mencionada acima. Mais situada histórica e socialmente, tal condição caracteriza os modos de existência nas sociedades contemporâneas, ao designar, de certo modo, “a variação ou a inflexão sócio-histórica que se pode reconhecer na maneira

pela qual os homens vivem sua condição, neste início de século vinte e um” (DELORY- MOMBERGER, 2012a, p.17).

Alguns indícios dessa condição histórica podem ser encontrados nos motivos de algumas campanhas publicitárias48, onde o sujeito é constantemente convidado a fazer suas escolhas pessoais dentre um leque cada vez mais amplo de ofertas. Encoraja-se o papel do consumidor a fazer tais escolhas a partir de uma construção múltipla e complexa de referências, para além das referências habituais (classe, cor, idade, gênero). Tal direcionamento do mercado, ao identificar a condição individualizada e fragmentada do sujeito, revela uma compreensão da centralidade das construções biográficas no atual contexto.

Embora o objetivo do presente capítulo não seja o de reconstruir uma “história das investigações narrativas”, ou mesmo de reconstituir seu quadro histórico e social contemporâneo, torna-se importante quando quisermos pensar tais métodos no campo da educação, entendendo ao menos o panorama dinâmico em que se desenvolveram essas perspectivas. De fato, Bueno nos lembra que:

o interesse pelo estudo dos aspectos subjetivos envolvidos na vida dos atores sociais não se apresenta como preocupação específica da área da educação, pois (...) esse interesse é a expressão de um movimento mais geral, que diz respeito às mudanças paradigmáticas e às rupturas que se operam no âmbito das ciências sociais no decorrer do século XX (2002, p.14).

Mais do que uma “moda metodológica”, portanto, a perspectiva biográfica deve ser compreendida no entrecruzamento de diversos fatores (científicos, epistemológicos, sociais, históricos), de modo que sua utilização ultrapassa a ideia redentora de que seja possível elucidar quebra-cabeças ou resolver problemas da pesquisa educacional. Há uma contingência histórica no uso dessa perspectiva se considerarmos que suas possibilidades foram construídas no próprio processo do conhecimento humano.