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Repertório: conflitos, negociações e significados

7. NARRATIVAS DE SI: MÚSICA, RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE

7.3 Relações com o ensino superior em música

7.3.3 Repertório: conflitos, negociações e significados

Ainda que não documentados na literatura do campo de educação musical, já se fazem notáveis alguns conflitos entre estudantes de música sobre o repertório a ser executado dentro da universidade, sob o pretexto da orientação religiosa98. Alguns exemplos podem vir de alunos que se negam a tocar determinada música ou instrumento musical, a cantar músicas compostas para ritos litúrgicos, ou tocar em certos espaços sacralizados. No entanto, embora seja uma apreensão vivenciada nos cursos de música, ainda não há uma reflexão mais sistematizada dessas relações.

O estudo de Braga (2011) sugere uma primeira aproximação com o tema. A autora, considerando seus vinte e um anos de contato com estudantes de música evangélicos, afirma, quanto ao repertório, que “atualmente a tolerância em relação à música secular é bem maior do que no início do Curso” (p.147). Essa compreensão mostra que já existe um caminho para pensar sobre as relações entre as vivências

98 Essa interpretação é baseada em relatos informais, tanto de docentes e de discentes, que tenho presenciado durante minha experiência profissional no ensino superior.

religiosas no cotidiano e o repertório abordado no ensino superior em música. No entanto, essa problemática ainda é recente, de modo que ainda é necessário “analisar outras categorias para entender as razões pelas quais esses estudantes ainda mantêm certo distanciamento de outras músicas” (idem).

Alguns desses conflitos em relação ao repertório foram narrados pelos participantes da DCG, construindo um debate que pode nos auxiliar a compreender melhor o que está em jogo nessas relações. Cumpre lembrar que não se trata de criticar ou justificar tais conflitos, mas entendê-los à luz de certas condições específicas.

Tiago conta sobre uma disciplina no curso de música em que um aluno evangélico se recusou a tocar na apresentação final, pois ela seria realizada num bar, considerado pelo sujeito como um espaço profano. Quando provocado como reagiria em uma situação semelhante, Tiago se questiona: “ah sei lá assim, eu não ia... bah eu ia fazer isso?”, e segue, “primeiro eu ia estar em oração, né porque não é... aquilo não é da minha prática, eu estaria sendo obrigado a fazer aquilo, ia ter que fazer aquilo por uma obrigação de estudo” (entrevista). Nesse sentido, em relação ao repertório, ele procura levar em consideração tanto sua religiosidade quanto seu dever de estudante, gerando forças contraditórias na tomada de uma decisão.

Juliane nunca havia tido problemas com o repertório: “tudo que o professor me dá assim eu canto tranquilo, sabe, e ele sabe também da minha religião e tal, e até algumas músicas assim que ele sabe que eu não vou cantar, ele já nem me dá, sabe” (entrevista). No entanto, justamente naquele momento, ela passava por um dilema em relação a uma peça do musical Jesus Cristo Superstar99, proposta pelo professor e que já havia sido ensaiada algumas vezes para apresentação semestral. Segundo Juliane, ela e uma colega fizeram uma tradução da música e interpretaram que a letra contém sentidos difamatórios, principalmente sobre a relação entre Maria Madalena e Jesus Cristo. Esse entendimento da música coloca Juliane em questionamento: “é, já fiquei com aquela pulguinha atrás da orelha assim, daí eu não sei se eu canto ou não canto”. Naquele momento o conflito ainda estava sem resolução e dependia de uma série de negociações: “eu não sei, agora nós estamos falando com o professor, ela mandou um e- mail para ele pra perguntar, (...) agora vamos esperar, eu disse pra ela me falar quando o

99 Musical de ópera-rock composto por Andrew Lloyd Webber sobre libreto e letras de Tim Rice, estreou

na Broadway em 1971, e em 1973 ganhou uma versão cinematográfica, dirigida por Norman Jewison. Na trama, a afetividade descrita na relação entre Jesus Cristo e Maria Madalena tem gerado críticas sobre uma suposta erotização entre as personagens, deturpando a narrativa bíblica. No Brasil, com estreia em março de 2014, a versão do espetáculo montado por Jorge Takla provocou protestos e reações por parte de alguns grupos religiosos cristãos.

professor responder... agora eu vou ver como é que ele vai lidar com essa situação né” (JULIANE, entrevista).

Carla relata uma experiência com o coral universitário, em que mobilizou algumas de suas reflexões sobre o repertório musical, mais especificamente um arranjo para Ave Maria100. Ela conta que uma de suas colegas, também evangélica “chegou para o professor e disse que não ia cantar a música, e o professor entendeu de boa assim” (entrevista). No entanto a atitude dessa colega instigou Carla, e também outras colegas evangélicas, a questionarem suas posições nesse sentido: “eu ia cantar, mas daí ela teve essa postura e tipo a gente, justamente isso, a gente ficou: poxa, qual é a minha postura (...) será que não era para eu não cantar também?” (idem). Seu relato seguinte sublinha as implicações envolvidas nessa tomada de decisão entre cantar e não cantar:

é difícil para entender, daí nessa situação a gente ficou: 'bah canta ou não canta'... daí na hora que era o ensaio geral, tinha que levantar, aí às vezes todo mundo se levantava e a gente se olhava né, sentada ainda, bah: 'vamos ou não vamos'... porque até então a gente não tinha falado com o professor né, ela tinha e ela ficou sentada porque ela tinha falado, e aí a gente ficou: ‘bah levanta ou não levanta', ai às vezes a gente levantava e às vezes a gente não levantava, e daí nessa música em si, a gente foi sentando... (CARLA, entrevista)

Finalizando, as narrativas descritas nos informam, num primeiro sentido, que as decisões sobre o repertório não são sempre predeterminadas e generalizadas, ou aplicáveis aos estudantes religiosos como um todo; pelo contrário, envolvem negociações específicas entre si e com os outros (professores, colegas). O trabalho de Braga (2011) também aponta para a relativização dessas questões, quando assinala que as práticas musicais de alunos evangélicos do curso de licenciatura em música da UEPA nem sempre correspondem às generalizações “aparentemente cristalizadas”.

Por outro lado, esses depoimentos nos ajudam, de uma forma ainda muito ampla, a entender dois lados da mesma moeda: em primeiro, que o repertório é um lugar de disputa e de sentidos importantes para o estudante de música e que sua relação pode ser entendida nos termos da religiosidade/espiritualidade; em segundo, que esse conflito não precisa ser necessariamente irreconciliável, se proposto como um diálogo ou quando busca o entendimento dos motivos envolvidos nessas relações.

100 O texto da oração Ave Maria, conforme o dicionário Grove de Música, é uma “prece com palavras tiradas do evangelho de S. Lucas, adotada no rito romano durante o séc. XVI” (1994, p.50), sendo que numerosas composições polifônicas de autores do Renascimento foram compostas, incluindo obras de Josquin e Victória (idem). Fonte: Dicionário Grove de Música: edição concisa. Editado por Stanley Sadie; editora-assistente, Alison Latham; tradução, Eduardo Francisco Alves. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

8. A MINHA MÚSICA, A MÚSICA DO OUTRO, A NOSSA