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Religiosidade e Espiritualidade: terminologias e definições possíveis

7. NARRATIVAS DE SI: MÚSICA, RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE

7.1 Religiosidade e Espiritualidade: terminologias e definições possíveis

84 Grande parte dessa discussão terminológica foi orientada e provocada pela Palestra “Espiritualidade na Educação: aspectos teórico-conceituais”, ministrada pela professora Drª Luciana Marques no dia 26/08/2015 numa atividade conjunta entre o PPGE/UFSM, Grupo NarraMus e o curso de música da UFSM.

No capítulo 3, procurei evidenciar algumas possibilidades de compreensão da religião, principalmente nos campos da sociologia e da antropologia, a fim de construir algumas impressões sobre o tema e dar conta de uma revisão de literatura para entender melhor as experiências musicais advindas de relações religiosas mais ou menos institucionalizadas. Mas no decorrer da pesquisa e nos debates que surgiram em torno dessas experiências, a noção de religião foi muitas vezes narrada para além do campo das instituições religiosas, abrindo horizontes sobre sua percepção.

Essa abertura conceitual foi produzindo novas interpretações sobre a relação entre música e religiosidade/espiritualidade, e pude perceber certo alargamento nessas relações, além dos binômios sagrado/profano, igreja/mundo, social/individual. Em diário pude registrar algumas dessas relações que, ainda num nível primeiro de reflexão, poderiam vir a ser desenvolvidas a partir dessa ampliação:

- A espiritualidade em festivais de música:

Como a experiência em festivais de música pode produzir significações mais profundas com a música e grupos sociais (festivais gospel; festivais nativistas; festivais de reegae; festivais humanistas - como o psicodália e o morrostock) - A sacralização dos instrumentos:

Como relações com certos instrumentos podem ultrapassar a “utilidade”, revelando outras ligações (mais espiritualizadas) – com o violão, a guitarra, etc. - A sacralização do som:

Uma contribuição interessante dos alunos de música e tecnologia no sentido de que “produzir” um som pode estar muito além da qualidade técnica e de parâmetros físico-acústicos (a busca por um som mais “vintage”, mais “orgânico”, mais “místico”)

- As relações profissionais:

O significado do “tocar por amor”, no sentido de se dedicar a uma “causa maior” nessas experiências (músicos que tocam de graça nas igrejas, assim como no rock, no reggae). O que leva a esse “vestir a camiseta”, sem pensar em receber algum tipo de remuneração? (Diário de aula 2)

No campo da educação musical, a discussão sobre espiritualidade tem encontrado diferentes escopos, e mobiliza principalmente a filosofia e psicologia da educação musical, ainda que com pouca frequência no contexto brasileiro85. Por sua vez, Freeman (2002) destaca as contribuições de Reimer, Elliot, Suzuki e Swanwick na

85Embora a espiritualidade apareça em algumas questões propostas no campo da pesquisa musical, seja a

partir de uma abordagem de educação musical holística (NZEMI, 2012), na perspectiva das inteligências múltiplas (CASALETTI, 2013) ou da performance musical (ELERBE, 2009), ainda não parece ser possível falar de um aprofundamento mais sistematizado sobre os conceitos envolvidos. Uma abordagem mais pontual se destaca no trabalho de Braga (2011), que se remete ao “caráter espiritualista da musica”, como “um privilégio de qualquer músico, independente de religião” (p.74).

concepção de que o fazer musical implica qualidades que vão além da racionalidade, valorizando os sentimentos (feelings86) no processo.

Ainda seguindo Freeman (2002), uma abordagem espiritual em educação musical promove conexões profundas e significativas com a música, e se preocupa horizontalmente em todos aspectos da dimensão humana – física, emocional e cognitiva. Consequentemente, o estudante se empenha musicalmente aumentando sua força corporal (body strength), entendimento de si (clearer understanding), criatividade (boundless creativity) e prazer intensificado (heightened enjoyment); mas ainda mais importante, “instiga uma perspectiva musical positiva da vida87” (2002, p.2). O autor entende que os profissionais do ensino da música devem se manter abertos para a espiritualidade, de modo a aceitar e abraçar as riquezas que os estudantes têm a oferecer. Esse senso de respeito mútuo “eleva o professor, o estudante, a escola, a comunidade e o mundo” (FREEMAN, 2002).

Outras contribuições podem partir do arcabouço conceitual da Psicologia da Religião e Espiritualidade, que tem estudado as dimensões psicológicas da religiosidade e da espiritualidade, em sua variedade de manifestações no comportamento humano. Uma leitura do desenvolvimento histórico desses termos é descrita em Marques (2010), e apresenta alguns tópicos e definições que podem nos ajudar nessa tarefa.

Muitos desses trabalhos apresentam algum tipo de relação entre religiosidade e espiritualidade, “seja separando de forma antagônica, seja unindo ambos como dois termos que se referem a um só conceito” (MARQUES, 2010, p.139), resultando em uma sobreposição inevitável entre os termos, pois se referem a experiências muito próximas.

Ambas envolvem a busca pela transcendência, o interesse pelo sagrado, a fé, etc. E podem ser cultivadas tanto de forma individual quanto coletiva, nas instituições religiosas ou fora delas. A frequência da participação em cultos, a repetição de rituais e a crença em ritos são geralmente associadas à religiosidade. Já o cultivo do espiritual, valores, transcendência, fé, são considerados parte do fenômeno da espiritualidade que é encontrado em todas as culturas e todas as idades (MARQUES, 2010, p.139).

Algumas polaridades encontradas nessa revisão se relacionam aos aspectos sociais e individuais da experiência religiosa, caracterizando a religiosidade mais como

86 Na cultura do rock e do blues, por exemplo, a expressão‘tocar com feeling’ representa justamente esse ‘algo mais’ do que uma execução técnica e racionalizada, tornando-se uma experiência afetiva e compartilhada.

uma prática em grupo e a espiritualidade como uma prática mais individualizada. Nesse sentido, alguns autores afirmam que a religiosidade é “uma adesão a crenças e práticas de uma religião, igreja ou instituição”, enquanto a espiritualidade é “uma relação pessoal com algo considerado como superior, divino, sagrado” (idem). Essa separação é insuficiente quando percebemos que tanto a religiosidade quanto a espiritualidade podem se referir a esferas individuais e coletivas. Segundo Marques (2010), tais antagonismos “polarizam o objeto de estudo” (p.139), correndo o risco de perder aquilo que é comum a ambas, em função dessa sobreposição.

De uma forma geral algumas polarizações sobre os termos são classificadas e resumidas pela autora88:

a) Religião substantivo e espiritualidade funcional: a religiosidade é usada como substantivo associado a crenças formais, práticas grupais e instituições; a espiritualidade, como esforço em direção a uma variedade de objetivos sagrados e existenciais.

b) Religião estática e espiritualidade dinâmica:a religiosidade descreve o que é a religião e não o que ela faz; a espiritualidade é ligada ao movimento, fluidez.

c) Religião Institucional objetiva e espiritualidade pessoal Subjetiva: a religiosidade se refere a algo institucional, organizado e social; a espiritualidade a algo pessoal, transcendente, de interconexão.

d) Religião baseada em crença e espiritualidade baseada na experiência: a religiosidade mais dogmática e teológica; a espiritualidade referente aos valores do Self.

e) Religião negativa e espiritualidade positiva: a religiosidade voltada para dogmas, padres, doutrinas; a espiritualidade como algo leve, de elevados potenciais humanos89.

88 A partir dos estudos de Zinnbauer e Park (2005), cf Marques (2010).

89Partindo dessa revisão, Marques (2010) transcreve dez principais conclusões dos autores acerca do

tema, que de uma forma ou de outra, podem ajudar na proposição dos termos: 1) a religiosidade e a espiritualidade são fatos culturais não redutíveis a outros processos ou fenômenos; 2) a maioria das pessoas se define como sendo os dois, religiosa e espiritualizada; 3) uma minoria identificável se diz espiritualizada, mas não religiosa e usa a espiritualidade no sentido de rejeitar a religião; 4) religiosidade e espiritualidade se sobrepõem consideravelmente na população americana e esses construtos são relacionados, mas não idênticos; 5) religiosidade e espiritualidade são termos complexos e multidimensionais; 6) tanto a religiosidade e a espiritualidade podem estar associadas a saúde mental e estresse emocional; 7) existem aspectos substantivos e funcionais tanto na religiosidade quanto na espiritualidade; 8) religiosidade e espiritualidade são considerados multi-níveis, se relacionam, ao fenômeno biológico, afetivo, cognitivo, moral, relacional, da personalidade ou da auto-identidade, social,

Alguns estudos se referem à religiosidade/espiritualidade ao associar os dois termos, considerando que os construtos se sobrepõem e usam apenas o termo espiritualidade num sentido mais amplo, incluindo religiosidade, e quando se referem exclusivamente aos aspectos institucionais usam o termo religião (MARQUES, 2010, p.142). A espiritualidade pode ser entendida nesse enfoque como

a dimensão humana que integra, motiva e influencia todos os aspectos da vida, relacionando-se com as questões existenciais, a busca de sentido e propósito para a vida. Ela pode relacionar-se também com o transcendental, a crença em um ser superior ou força maior, e com a realização pessoal através da sensação de conexão com este transcendental, mas vai para além disso, envolvendo também nossa consciência de nós mesmos e nossas interações com os outros e com a natureza (ESPERANDIO et. al., 2015, p.197-198). Nesse sentido, a pessoa pode ser considerada espiritualizada “na medida da extensão do seu interesse em buscar conhecer ou experienciar algo relacionado ao que ela considere sagrado” (MARQUES, 2010, p.143). Isso pode ampliar o foco da experiência musical religiosa para uma visão mais ontológica, enquanto processo de produção de sentido para a vida.

Ao término de uma das aulas, após intensos debates sobre a relação entre nossas experiências musicais e nossos modos de perceber o mundo, pude refletir sobre a percepção desse processo, que “parece ter chegado a um ponto ainda mais íntimo: uma espécie de filosofia existencial. Os medos, as incertezas e inseguranças foram postas na mesa assim como os sonhos, os desejos e as esperanças. Será esse um caminho possível para a DCG? Construir, a partir de relatos, entre contradições e paradoxos, a própria expectativa mais profunda por uma busca de si?” (Diário de aula 3). A espiritualidade nessa perspectiva é o próprio horizonte de significados, no qual as experiências religiosas podem (ou não) fazer parte90.

cultural e global; 9) religiosidade e espiritualidade podem desenvolver e mudar com o passar do tempo no indivíduo; e 10) religiosidade e espiritualidade têm adquirido diferentes conotações, conforme seu uso, religiosidade sendo mais associada a um nível de análise social e grupal e espiritualidade mais associado a um nível de análise individual.

90 Esse entendimento não muda, no entanto, a proposta inicial da pesquisa que procura focar nas experiências musicais religiosas e suas relações com o ensino superior. Mas de qualquer forma, amplia o leque de experiências que podemos propor enquanto tais. Inserem-se aí algumas práticas musicais do reggae, ou do rock n roll, por exemplo.