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7. NARRATIVAS DE SI: MÚSICA, RELIGIOSIDADE E ESPIRITUALIDADE

7.2 Narrativas religiosas: práticas de religiosidade e espiritualidade no cotidiano

7.2.1 Vivências e memórias religiosas

Os relatos sobre as vivências religiosas foram registrados principalmente na esfera do cristianismo, e muitas vezes se reportavam à infância e a influência familiar. A ida às missas, a escola confessional, o canto congregacional, a catequese e a crisma, por exemplo, foram muitas vezes descritas como lembranças no âmbito do catolicismo. Mas nem sempre adquirem as mesmas características. Tiago e Ricardo, por exemplo, descrevem que frequentavam esses ambientes por certa determinação da família:

porque minha mãe é bastante católica, meu pai também, e a família, e eu fiz toda a parte que as crianças fazem na religião, fiz catequese com sei lá 8, 9 anos de idade e fiz crisma, nunca fui feliz fazendo, sabe... (RICARDO, entrevista).

é que eu ia para igreja dos meus pais, quando eu era pequeno, e eu acho que quando a gente é criança a gente não entende muito certo as coisas, o que tá acontecendo e tal, acaba não dando muita importância como dá hoje, isso é óbvio... até cheguei a dizer pra minha mãe quando eu era pequeno, porque eu não gostava de ir na missa domingo (TIAGO, entrevista).

Porém, embora os dois tenham frequentado a igreja por tradição da família, seus rumos foram diferentes. Ricardo se desligou aos doze anos, enquanto Tiago ainda é praticante e relata o início de sua trajetória na igreja, sempre influenciado pela família:

quando eu entrei na catequese já tinha noção mais ou menos das coisas, e os meus pais tiveram sempre uma caminhada bem presente na Igreja, ajudando nas festividades e nas equipes das famílias, dos encontros de famílias que tinha, eu sempre ia, ficava lá na parte das crianças, brincando e tal, quando eles chegavam fazendo meditação da palavra ou rezando, e também nos grupos de jovens, que os meus pais auxiliavam na igreja, (...) então quando eu entrei pra catequese já tinha essa visão assim, eu já compreendi um pouco melhor as coisas, sabia como é que ia funcionar, o que que eu ia aprender (TIAGO, entrevista).

Já Fernando conta que participava dos ritos com a família, em geral católica, mas que a vontade de fazer catequese partiu de um interesse seu, e não de uma determinação: “meus pais nunca me obrigaram a nada assim, mas teve uma época até que eu fiz catequese, foi eu que pedi pra eles pra fazer, mais por curiosidade mesmo” (entrevista). Gabriela começou a frequentar a igreja católica junto com o pai e com o tempo passou a participar do grupo de jovens e chegou a ser professora de catequese. Mas devido a alguns desentendimentos “comecei a me distanciar, parei de ir no grupo de jovens, parei de dar a catequese (...), e fui me distanciando ate que eu saí” (GABRIELA, entrevista), e assim começou a frequentar o espiritismo “junto com o meu pai, por causa da minha irmã” (idem).

Outras vezes as lembranças religiosas podem estar ligadas à vivência escolar, principalmente se observamos a incidência de escolas confessionais no Brasil. Henrique, por exemplo, conta que estudou numa escola salesiana, de origem católica, de maneira que “meu contato com a religião é que todas as manhãs antes de começar a aula, antes de bater o sinal, a gente rezava o pai nosso e o ave Maria” (HENRIQUE, entrevista). Assim, frequentar a igreja católica e participar de suas práticas (catequese,

crisma, escola confessional), pode ser narrado por diferentes prismas, nem sempre marcado por uma tradição determinante.

O meio evangélico91 também produziu narrativas sobre as vivências religiosas, principalmente nos relatos de Carla e Juliane, ambas filhas de pastores evangélicos. Esses relatos, entretanto, não sugerem uma continuidade natural entre frequentar os cultos e se tornar um adepto. Pelo contrário, mobilizam diferentes inserções no ambiente em questão. Carla conta que num primeiro momento ia à igreja por influência da família, e que só com o decorrer do tempo passou a compreender alguns sentidos dessa experiência:

desde criança na realidade, como eu tenho dois irmãos mais velhos, eu era a mais nova, e daí a gente geralmente tem o costume de os pais levarem né, levam e a criança vai indo ,vai indo... mas na realidade eu fui entender bem depois, assim, já na adolescência o porquê de estar ali (CARLA, entrevista). Nessa direção, Juliane relata que quando começou a ir à igreja “eu ia assim, no início, meio forçado”, e que

às vezes eu não gostava de dizer que não queria ir e tal, às vezes não ia, às vezes ia... depois eu comecei a pegar o gosto assim, comecei a cantar as músicas gospel e a gente vê né, o grupo assim cantando, sempre tem aquele louvor, aquele.. grupo de louvor nas igrejas... aí eu comecei a me interessar assim pela música gospel, dai eu comecei a cantar... aí meu pai, teve um tempo que ele se afastou da igreja (...) ele disse que ele só ia pra me ver cantar (risos), aí como eu comecei a cantar na igreja, ele começou a ir de novo, aí foi isso.... (JULIANE, relato em grupo1)

Se por um lado Juliane passou a frequentar os cultos para acompanhar a família, num outro momento foi o próprio pai que voltou a frequentar a igreja para vê-la cantar. E complementa: “na igreja foi onde eu e minha família nos encontramos, onde eu decidi o que eu iria fazer da minha vida, eu tinha a certeza que iria continuar sempre cantando a Deus, porque é um regozijo enorme cantar a Deus” (JULIANE, relato escrito).

Já o relato de Eduardo é marcado pela pluralidade religiosa, quando diz que “eu mesmo sou católico, mas hoje eu gosto mais da palavra evangélica, dependendo de quem a pregue”, e ressalva: “dependendo de quem a pregue” (entrevista). Ele também relata que já frequentou alguns centros espíritas, “de umbanda e tudo mais” (idem). Algumas dessas relações são sugeridas em seus escritos:

91 Uma caracterização do complexo cenário evangélico no Brasil é descrita por Cunha (2004), que destaca o protestantismo histórico de migração, o protestantismo de missão, e as ondas pentecostais e neopentecostais.

Venho de família católica não praticante e ao mesmo tempo um certo convívio com a religião umbandista, pois uma tia avó tinha um centro de umbanda em sua casa bem central na cidade de Santa Maria, em que muitos frequentavam o mesmo, mas minha avó era muito temente a Deus e sempre estava com orações a ensinar para mim e os outros netos e filhos (EDUARDO, relato escrito).

Algumas dessas orações, manuscritas e passadas pela avó, são guardadas por Eduardo: “até hoje eu tenho uns negócios dela na carteira ainda, sabe” (relato em grupo 1). Tal pluralidade já tem sido apontada como fator complexo na questão religiosa no Brasil, especialmente quando “se observa que as pessoas se consideram católicas como uma denominação ampla, mas frequentam centros espíritas, candomblé e os outros cultos simultaneamente” (MARQUES; AGUIAR, 2014, p.117).

Outros relatos, como o de Ricardo e Fernando, apontam para algumas experiências relacionadas aos festivais de música92, que promovem encontros entre pessoas dispostas a compartilhar e pensar modos de vida alternativos à sociedade capitalista:

é bastante religioso, espiritual, é um lugar onde tu vê que as pessoas, sei lá cara, é tudo mais puro lá parece... o relacionamento entre as pessoas é muito mais tranquilo assim, e é bastante importante pra mim também; um momento, um dos melhores momentos do ano pra mim é quando eu estou num lugar desses, sabe, e eu acho que a música tem bastante a ver com isso porque é a principal atração dos festivais e tal... é uma coisa que não é o mesmo estilo de música, tu vê vários estilos de música, as pessoas diferentes interagindo... (RICARDO, entrevista)

Mas talvez mais do que constatar a multiplicidade das vivências religiosas descritas, sejam elas institucionalizadas ou não, o que me parece mais importante é que essas vivências são portadoras de significados mais profundos sobre estar no mundo. São muitas vezes essas experiências que informam uma perspectiva de vida: “eu tenho hoje uma visão que não somos só carne e osso com sangue, tem algo maior que o homem, uma energia de luz para nos dar forças nas nossas vidas em momentos difíceis” (EDUARDO, relato escrito). Conforme Juliane: “a gente tem as nossas crenças, a gente acredita num Deus, a gente acredita na morte e na ressurreição de Jesus” (relato em grupo 1).

92Como um exemplo possível desses festivais remeto ao Psicodália, que em 2017 chegou a sua 20° edição, e que é um evento multicultural que tem se caracterizado como um encontro para pensar e compartilhar modos de viver, enfatizando uma relação mais profunda com a natureza e o meio ambiente.