• Nenhum resultado encontrado

comunidade de contato lingüístico e outra sem contato lingüístico

P ARÂMETRO ACÚSTICO I MPRESSÃO AUDITIVA

4.3.3 A emergência fonológica

O fundamento fonético da fonologia funcional de Wildgen (2005) corresponde ao que acabamos de expor no modelo de Boersma (1998), a saber, os processos auditivos, os processos de articulação, os processos cerebrais de planejamento e adaptação cooperativa de produção e percepção e a memorização de padrões de som, palavras e entonação.

Com base em um experimento realizado por Lindblom, MacNeillage e Studdert- Kennedy (1984), Wildgen (2005) discute como um espaço articulatório metrificado poderia ser utilizado para explicar a emergência de estruturas fonológicas. O

experimento que trazemos à nossa discussão é de De Boer (1997), que se baseia em Lindblom, MacNeillage e Studdert-Kennedy (1984). Para Wildgen, o aspecto mais intrigante nesse tipo de experimento e nos seus resultados é o fato de encontrar uma explicação funcional para a ontogênese da língua e a emergência diacrônica das estruturas fonológicas sem precisar das entidades fonológicas (para ele) pseudo-reais como o fonema e o traço, mas sim conseguindo uma interpretação conexionista fonético-fonológica:

Gelingt es, auf der Basis eines metrisierten Artikulationsraumes die Emergenz phonologischer Strukturen zu erklären, so ist nicht nur eine Wiederanbindung der Phonologie an die Phonetik und die Reduzierung pseudorealer Entitäten wie Merkmale, Phoneme, Oppositionsstrukturen erreichbar, es kann auch die

Morphogenese phonologischer Muster in der Ontogenese und der Sprachgeschichte funktional erklärt werden. (WILDGEN, 2005:61)

No seu experimento sobre emergência de um sistema vocálico, De Boer (1997) utiliza-se de agentes de inteligência artificial programados com capacidades articulatórias e perceptuais semelhantes às capacidades humanas. Cada agente possui uma unidade de percepção e uma de produção, porém não tem a capacidade de perceber a si mesmo (feedback loop94), perceber a própria pronúncia. Esses

agentes interagem em um imitation game (jogo de imitação). Cada agente é

94 O retorno auditivo, ou seja, a percepção que o falante tem da sua própria fala ao enunciá- la.

programado para desenvolver uma lista particular95 de vogais. Antes do início do jogo, essas listas estão vazias.

No começo do jogo, são apresentadas a todos os agentes, individualmente, vogais enunciadas por um sintetizador que calcula as freqüências formantais (F1, F2, F3 e F4) de cada vogal segundo a sua articulação metrificada pelos parâmetros pré- estabelecidos96. Cada agente cria uma lista própria de vogais segundo a sua interpretação perceptual. Cada partida do jogo envolve dois agentes, um (o iniciador) emite um som que o segundo agente (o imitador) tenta imitar,

aproximando o próprio som emitido do som emitido pelo iniciador. A vogal emitida pelo imitador é, por sua vez, avaliada pelo iniciador, que fornece um sinal não- acústico para informar o imitador se a imitação foi ou não fiel. Cada avaliação tida como fiel é contada como um jogo concluído com sucesso, e cada avaliação tida como não-fiel é contada como sem sucesso.

Em certas partidas do jogo são criados ruídos adicionais (com 10% a 30% do

volume do estímulo vocálico) para evitar que os agentes copiem com plena perfeição as vogais, forçando-os, assim, a criar um sistema de vogais em que os fonemas não se assemelhem demasiadamente. Após um determinado número de partidas, cada agente passa por um procedimento de auto-avaliação. As vogais com alto índice de partidas bem sucedidas não são modificadas. Se um som apresentado pelo

iniciador não coincide com uma das vogais na lista das bem sucedidas do imitador, este cria uma nova vogal. Ao contrário, as vogais com baixo grau de sucesso nos jogos anteriores são mais prováveis de serem modificadas. Vogais com baixo índice de partidas bem sucedidas são eliminadas da lista do agente.

O grau de partidas bem-sucedidas se nivela ao longo do jogo (3.000 partidas) em uma média de 90%. Para De Boer (1997), os sistemas vocálicos desenvolvidos em vários conjuntos de partidas do jogo de imitação chegam a se aproximar bastante de sistemas vocálicos humanos naturais97. A presença e o aumento do ruído adicional ao sinal vocálico revelaram-se significantes para o grau de sucesso dos

95 Representação na gramática individual.

96 As vogais são representadas por três parâmetros binomiais (0-1), a saber: posição da língua (0=frente, 1=atrás), altura da língua (0=baixa, 1=alta) e arredondamento labial (0=não arredondado, 1=arredondado).

97 Em um dos jogos, coincidentemente, os agentes reproduziram de maneira bem semelhante o sistema vocálico do oubykh, uma língua oeste-caucasiana.

jogos. Porém, mesmo com ruído, os agentes atingiram um alto número de partidas bem-sucedidas.

Gostaríamos também de expor aqui um aspecto discutido pelo autor com bastante ênfase. Trata-se da questão dos traços. De Boer (1997) comenta que o experimento realizado com o sistema vocálico não depende a priori da existência de traços distintivos. Porém, os parâmetros utilizados na programação dos agentes são uma simplificação de um sistema humano de traços. De Boer (1997) não é explícito no que concerne ao conceito de fonema. No entanto, nas listas dos agentes ele se refere às vogais como “fonemas”, enquanto Wildgen (2005) argumenta que justamente o tipo de experimento como o realizado por De Boer (1997) indica que o conceito de fonema não é necessário para explicar e descrever a emergência do sistema. Como esse aparente paradoxo pode ser resolvido? Precisamos lembrar que os agentes de De Boer (1997) “comunicam-se” somente através de vogais e de um sinal não- acústico que fornece o retorno sobre a adequação da imitação do agente imitador em jogo. Pela lingüística estruturalista, o fonema é definido como a menor unidade sonora que pode distinguir significados. Como na “comunicação” dos agentes não existe um significado transmitido pelos sons distinguidos pelos formantes e como o único significado comunicativo – o retorno sobre a adequação da imitação – é transmitido através de um sinal não-acústico, não estamos diante de um sistema de fonemas.

De Boer (1997) apresenta um sistema fônico que se correlaciona com as idéias de auto-organização do sistema complexo expostas por Wildgen (2005) e que coincide – em um nível simplificado e de inteligência artificial – com o modelo de Boersma (1998), ainda que os agentes de De Boer (1997) não disponham de um feedback loop e nem de um algoritmo de preferência pelas formas cineticamente mais econômicas, compostas por menos gestos articulatórios. Segundo Wildgen (2005:67), esse tipo de experimento mostra como o sistema auto-organizador é relativamente independente do seu meio contextual que somente se manifesta em forma de ruído. Tal ruído pode causar certa inquietação no sistema e exerce um papel na fixação das condições delimitadoras da auto-organização. No entanto, acreditamos que o sistema lingüístico humano se encontra envolvido em um meio muito mais complexo que não poderíamos reduzir somente a uma influência de ruído externo. Já observamos também que a comunicação não se reduz à mera troca de informações e que os agentes de De Boer (1997) não se comunicam de

forma semelhante aos humanos, uma vez que não há nenhum objetivo ou alvo comunicativo conectado com a transmissão e imitação dos sons.

Consideramos as observações feitas por De Boer (1997), no que diz respeito aos traços distintivos, de grande importância para a próxima questão que pretendemos avaliar na seção a seguir. Se concordarmos com Wildgen (2005) e descartamos os fonemas (junto com os traços distintivos), como podemos conceituar a realidade fonético-fonológica mental do falante individual? Os agentes de De Boer (1997) não possuem fonemas e sim fornecem listas complexas de imagens de sons, gravadas analiticamente com os seus parâmetros articulatórios e seus valores perceptuais (valores dos formantes). Como podemos imaginar esses valores na capacidade de fala e na percepção da fala humana? O exemplo dos agentes fornece algum modo segundo o qual podemos criar um modelo que exemplifique a forma pela qual acessamos a informação fônica da fala? Essas indagações nos conduzem à seção seguinte, na qual discutimos uma proposta sobre o que poderia substituir a representação de fonemas em um modelo não-estruturalista.