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comunidade de contato lingüístico e outra sem contato lingüístico

4 A abordagem deste estudo

4.2 A língua como sistema complexo

4.2.2 A gramática emergente segundo Hopper (1987)

A proposta teórica de Hopper (1987) compartilha em boa parte a visão de Wildgen (2005)78. Os dois autores têm em comum, essencialmente, a rejeição ao conceito de gramática como um domínio abstrato e superior à língua usada pelos seus falantes. O ponto de partida da Gramática Emergente de Hopper (1987) é a crítica à

interpretação dualista da língua (gramática) como um conjunto de regras e o seu uso concreto como mera implementação dessas regras. O termo “emergente” é adaptado de Clifford (1986), cuja referência à “cultura” é atribuída analogicamente à gramática por Hopper (1987), que afirma ser a gramática temporal, emergente e disputada. É temporal porque a língua precisa ser vista como um fenômeno social no seu contexto em tempo real. Como a sua estrutura está permanentemente em desenvolvimento em um processo infinito, fornece a possibilidade de gerar algo novo, imprevisível, que são as formas e estruturas emergentes. A disputa, ou a negociação, é resultado do encontro, parcialmente conflitante, de dois ou mais sistemas de representação. De fato, Hopper (1987) nega a existência de uma só representação mental como proposto na idéia de competência na gramática gerativa. “There is no room – no need – for mediation between mental structures.” (HOPPER, 1987:143). Para Hopper, a representação é individual e depende da experiência de cada falante, do acesso e da interpretação de cada falante em relação ao contexto comunicativo concreto.

Assim, a experiência e a interpretação de dois interlocutores em um contexto concreto podem ser muito diferentes – o que leva à negociação e à disputa. Não há

78 Embora que não haja indícios de que Hopper conhecesse o trabalho de Wildgen (2005), primeiro publicado em 1987.

nenhum falante que possua a competência mais completa e mais correta do que a competência de outros. Nessa noção de emergência da gramática, as regularidades da língua (da gramática, no seu sentido mais amplo) surgem do discurso. Enquanto o discurso confere forma às estruturas, elas também o formam em um processo recíproco. A estrutura lingüística, nessa visão, não é um sistema de princípios abstratos, mas sim vista como um espraiamento da sistematicidade de itens individuais, como palavras, frases e colocações padronizadas curtas (HOPPER, 1987:141).

Gostaríamos de salientar três aspectos que são significativos para o nosso trabalho e que não aparecem na discussão da teoria de Wildgen (2005), na seção anterior. O primeiro está relacionado à afirmação de Hopper (1987:143) de que “speaking is more similar to remembering procedures than it is to following rules”. Esse aspecto e também o segundo, que trata da questão do espraiamento, são fundamentais para a noção de representação (individual ou coletiva) que pretendemos discutir na seção 4.4, na qual questionamos o sistema de fonemas da lingüística estruturalista e também os modelos gerativos de representação fonêmica, e avaliamos uma

alternativa (BYBEE, 2001) para interpretar o fenômeno fonético-fonológico em foco nesta pesquisa. O último aspecto, a ser discutido nesta seção, é a questão de como a abordagem de Hopper (1987) e a nossa proposta de abordagem se situam no âmbito da lingüística funcional e da sociolingüística (como antecipamos

rapidamente na introdução a este trabalho). Hopper (1987) posiciona-se de maneira bastante explícita não somente contra a lingüística gerativa, mas contra toda a lingüística estruturalista79. Contudo, existe a possibilidade de compatibilizar o modelo de Hopper (1987) com abordagens funcionais mais “moderadas” como, por exemplo, com o modelo estruturalista-funcional80 de Givón (1995) ou com a

adaptação de Tavares (2003) chamada de sociofuncionalismo. Tavares (2003) salienta a diferença entre o modelo funcional e a sociolingüística laboviana, colocando que:

79 Observamos que o termo estruturalismo na lingüística pode ser entendido de maneira mais estreita, relacionado a (diversos) modelos seguidores do saussurianismo e em oposição à lingüística gerativa, ou então, de maneira ampla, incluindo todas as teorias que se referem a uma análise isolada do sistema lingüístico. A nossa referência é ao termo estruturalismo no seu sentido amplo, incluindo assim tanto os modelos baseados em Saussure, quanto também a lingüística gerativa proposta por Chomsky e modelos seguidores.

Diferentemente [da abordagem funcional de Hopper (1987)], WLH [Weinreich, Labov, Herzog] (1968) atribuem papel central às noções de sistema e de estrutura,

considerando a língua um sistema regido por regras (in)variáveis entendidas como elementos estruturais, parte da competência lingüística dos falantes. Para os autores, aspectos funcionais ficam em segundo plano. [...] Nessa linha, Labov (1994) nega que a função exerça motivação significativa sobre a constituição da estrutura ou mesmo que desempenhe papel relevante no rol de causas da variação e da mudança

lingüística. (TAVARES, 2003:187).

O que, para a lingüística funcional na proposta de Hopper (1987), é a convenção, sujeita à mudança permanente e resultante de eterna negociação, não deve jamais ser confundido com o sistema no sentido estruturalista da langue e tampouco com a parole. A teoria funcional do Hopper (1987) e a de Wildgen (2005), e também a abordagem proposta para este trabalho, não separam os dois níveis, nelas não existe a distinção dualista. Compartilhamos a opinião de Hopper (1987) de que a fala é antes um processo orientado pela experiência e memória do falante do que a observância ou implementação de regras. A idéia de espraiamento exposta por Hopper (1987) leva à questão de como formas e estruturas lingüísticas

(especialmente fonético-fonológicas) são memorizadas, uma vez que a noção de representação abstrata, como no conceito de langue, é recusada. A discussão desse questionamento é retomada na seção 4.3, quando falarmos de modelos exemplares e da proposta de uma gravação da imagem do som diretamente ligada ao léxico.

O significado dessa visão para abordagens fonético-fonológicas e particularmente para o nosso trabalho será discutido a partir da seção 4.3.1. Antes disso,

gostaríamos de expor, de forma breve, a última das três propriedades consideradas essenciais para a nossa abordagem, a saber, a interação como constituída e

constituinte da comunicação e das estruturas e formas lingüísticas. Para tanto, apresentamos, na seção a seguir, a proposta de Selting e Couper-Kuhlen (2000) no âmbito da lingüística interacional. Esse componente teórico completa a relação que tentamos estabelecer entre o indivíduo, a gramática individual e o sistema complexo da língua como um todo. Embora não analisemos a fala em interação, como já mencionado, precisamos ter uma noção de como se dá a constituição da língua através da interação entre indivíduos e gramáticas individuais.

4.2.3 A lingüística interacional segundo Selting e Couper-Kuhlen