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2 O PENSAMENTO JURÍDICO DE KELSEN E A INSPIRAÇÃO KANTIANA

2.1 O neokantismo e Kelsen

2.1.2 A escola de Baden

Também conhecida como escola do Sudoeste, a escola de Baden inova consideravelmente em relação à escola de Marburgo ao rejeitar uma preponderância do logicismo, que é colocado em segundo plano em relação ao mundo axiológico dos valores, onde a noção de cultura encontra um papel importante (cf. SIMPOZIO, verb. 734). Grande parte dos estudiosos alude que, enquanto Marburgo funda-se sobre a razão pura, Baden procura os fundamentos filosóficos na razão prática. Nas palavras de Heidegger (apud SASSI, 2007, p. 31):

É a doutrina do primado da razão prática (die Lehre vom Primat der praktischen Vernunft), a fundação do pensamento teórico, científico, no crer prático e na vontade de verdade, que se torna convicção filosófica fundamental da filosofia dos valores (philosophischen Grundüberzeugung der Wertphilosophie).

Escoltada pelas figuras ilustres de Wilhelm Windelband, Heinrich Rickert e do jurista Gustav Radbruch, a escola de Baden, sediada essencialmente na cidade de Heidelberg, reserva o papel principal de sua filosofia para os valores, que são alçados à condição de absolutos e imutáveis (cf. SIMPOZIO, verb. 734). A referida corrente pode ser considerada como menos formalista que a escola de Marburgo, uma vez que o conhecimento já não é derivado exclusivamente de conceitos a priori do pensamento por meio de relações lógicas necessárias. Os valores só aparecem como parte integrante do conhecimento, mas também exercem uma ação fundamental para a descrição da realidade, como uma ferramenta indispensável para uma adequada metodologia filosófica.

De acordo com Costa (2002), as maiores contribuições de Windelband tratam-se da vinculação entre filosofia e valores e da sua concepção de ciências

naturais e humanas. Os valores são interpretados como necessários e universais, possuidores de um caráter normativo, não sujeitos, contudo, ao exame da experiência, pois não se apóiam em uma validade empírica, como as leis naturais. De acordo com isso, Windelband irá dividir as ciências em nomotéticas e idiográficas. Aquelas são as denominadas ciências da natureza, que investigam as leis universais, como a matemática e a física; já as segundas são as ciências históricas, ou culturais, que estudam os acontecimentos individuais, como o Direito e a História (cf. SIMPOZIO, verb. 736).

De acordo com Paulson (2003), Windelband precisou buscar uma solução para preservar, ao mesmo tempo o “axioma científico” das leis da natureza e a validade do mandato da consciência, enquanto “patrimônio da liberdade”, relativo aos valores:

Para solucionar el dilema, Windelband procede de una manera decididamente kantiana, en la que diferencia entre dos puntos de vista: uno explicativo o proprio de las leyes de la naturaleza y otro normativo. Como ejemplo del último puede servir una ley del pensamiento propuesta por la lógica; esta ley expone una determinada forma de conexión entre los elementos del razonamiento, según la cual, “en el individuo pueden producirse ciertas condiciones, pero también pueden estar ausentes”. En realidad, todas aquellas leyes, es decir, aquellas de la lógica, de la ética y de la estética, serían formas especiales de realización de las leyes de la naturaleza (PAULSON, 2003, p. 562).

Essa teoria irá ser desenvolvida com mais profundidade por Rickert, que usa claramente a divisão de Kant entre “mundo do ser” e “mundo do dever-ser”. Para esse autor neokantiano, os dois mundos não possuem qualquer interferência um no outro, existindo uma separação absoluta entre os valores teóricos e a realidade empírica. Em suas próprias palavras:

Todo lo que meramente existe tiene algo en común en comparación con aquello que posee carácter de valor y por ello el mundo se divide en dos esferas bien particularizadas, que, habida cuenta de sus relaciones y conexiones, deben mantenerse estrictamente contrapuestas en lo conceptual, siempre que se pretenda claridad sobre todo lo que existe en el mundo. Los valores ideales se contraponen como reino a todos los objetos realidad, que en todo caso también constituyen un reino en sí mismo (RICKERT apud PAULSON, 2003, p. 565).

Em busca de uma possibilidade de conhecimento recíproco entre esses reinos, Rickert irá utilizar o conceito de “sentido imanente dos atos” para configurar uma relação entre eles, ainda que não de forma direta. Essa noção seria possível a

partir da adoção de uma certa posição em face dos valores, através do que ele chamou de um “terceiro reino” (cf. PAULSON, 2003, p. 576), a ser construído pela filosofia, que une os dois anteriores, não os absorvendo e tampouco constituindo uma quebra da dualidade, mas sim funcionando como uma mera representação teórica da questão relativa à conexão entre eles. Através disso, Rickert pode mediar de forma consistente a relação entre os dois reinos, solidificando sua inseparabilidade ao mesmo tempo em que regula a forma como um pode fazer menção ao outro24.

Por fim, coube a Radbruch formular a teoria mais bem acabada da escola de Baden acerca do Direito. O referido jurista entende o Direito como um conceito cultural, uma realidade cujo sentido é servir ao caminho do Direito ou à Idéia de Justiça (cf. Scholler, 2006, p. 685). Da mesma forma, também segue a distinção entre os reinos do ser e do dever-ser, entre os fatos da existência e os valores. De acordo com Scholler, Radbruch entende que as normas jurídicas não são leis da natureza, pois são apenas deveres exigidos, mas não necessárias e incontornáveis como as outras, pois podem ser descumpridas. Assim, segundo o mesmo comentador, tanto o Direito quanto a Justiça tornam-se axiomas, que não podem ser fundamentados em princípios superiores, uma vez que sempre existe a possibilidade fática de seu descumprimento.

De acordo com Reale (1998), Radbruch entende que não podemos nos contentar em uma divisão absoluta entre realidade e valor, entre os reinos do ser e do dever-ser, mas é necessário criar um termo intermediário, baseado na referência a valores. Assim, Radbruch vai defender que existem três formas diversas de analisar o Direito: a referência da realidade jurídica a valores, tendo o Direito como um fato cultural, que é a visão fornecida pela ciência jurídica; uma maneira exclusivamente valorativa, que encara o Direito enquanto um valor de cultura, papel que é desempenhado pela filosofia jurídica; e, finalmente, um modo que busca ver o Direito em sua essência, além dos valores, que Radbruch denomina como filosofia religiosa do Direito (cf. Reale, 1998, p. 521).