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2 O PENSAMENTO JURÍDICO DE KELSEN E A INSPIRAÇÃO KANTIANA

2.1 O neokantismo e Kelsen

2.1.3 As influências do neokantismo em Kelsen

24 A análise completa da noção de sentido imanente dos atos e de “terceiro reino” pode ser

Como anteriormente referido, é pacífica a interpretação que Kelsen, ao longo de sua obra, sofreu forte influência filosófica de muitos autores do movimento neokantiano. O próprio Kelsen jamais negou isso, pois inclusive citou algumas vezes nomes como os de Cohen e Windelband em suas obras, aceitando determinados pontos de vista colocados por estes e outros neokantianos (cf. GOMES, 2004, p. 184). Não obstante, como também vimos acima, há diferenças consideráveis entre as duas principais escolas do neokantismo, bem como apreciáveis assimetrias entre os respectivos integrantes de cada uma delas. Dessa forma, é preciso delinear, pelo menos resumidamente, as reais ascendências que Kelsen recebeu de cada um dos neokantianos, já que essa questão nos ajudará a entender melhor os pressupostos que Kelsen tinha e os motivos das escolhas que fez quando escreveu suas obras, principalmente a Teoria Pura do Direito.

Como bem coloca Paulson (2003), a grande maioria dos estudiosos insere Kelsen entre os partidários da escola de Marburgo, principalmente em função das semelhanças que algumas de suas teses possuem em relação às posições de Cohen. Um exemplo claro disso pode ser encontrado em Goyard-Fabre (2002), que acrescenta também o nome de Nartorp como influência importante para Kelsen. A principal fonte desse entendimento parece ser a seguinte passagem do prólogo da segunda edição da obra kelseniana intitulada Hauptprobleme der Staatsrechtslehre (Problemas Capitais da Teoria Jurídica do Estado):

De la interpretación de Cohen sobre la doctrina de Kant, sobre todo en su “Ética de la voluntad pura”, obtuve el punto de vista decisivo sobre teoría del conocimiento, que me fue imprescindible para llegar a una concepción correcta del Estado e del Derecho. Una recensión de mis “Problemas Capitales de la teoría del Estado”, publicada en 1912 en los Kantstudien, en la que se consideraba a esta obra como un intento de aplicar el método trascendental a la ciencia jurídica, me llamó la atención sobre el paralelismo considerable que existía entre mi concepto de voluntad jurídica y los razonamientos de Cohen, que hasta entonces no me eran conocidos. A partir de ese momento se me suscito entonces la conciencia de la concepción fundamental que Cohen tenía sobre la teoría del conocimiento. De acuerdo con esta concepción, la dirección del conocimiento determina el objeto del mismo; el objeto del conocimiento se produce lógicamente a partir de una fuente. (KELSEN apud PAULSON, 2003, p. 569).

Nesse trecho, de acordo com Paulson, Kelsen refere-se a conceitos como método transcendental, doutrinas específicas do conhecimento teórico, método do conhecimento e produção lógica do conhecimento a partir de determinadas origens.

Conforme a doutrina dominante, tais conceitos teriam sido, a partir da descoberta mencionada por Kelsen, introduzidos pouco a pouco em sua obra, até chegar-se a uma concepção plenamente neokantiana, fundamentada essencialmente em Cohen, que encontrará sua forma plena e mais bem acabada com a publicação da primeira edição da Teoria Pura do Direito em 1934.

Outro exemplo da grande influência que Cohen teria causado em Kelsen pode ser percebido na tese da identidade entre Direito e Estado, enquanto objetos do conhecimento jurídico. Veja-se o que diz o próprio Kelsen:

A partir de ahora, y como uma consecuencia consciente y clara del enfoque epistemológico de COHEN, según el cual es la dirección del conocimiento la que determina el objeto del conocimiento, de tal modo que éste es creado partiendo de un origen lógico, empezamos a darnos cuenta de que el Estado, em cuanto objeto del conocimiento jurídico, no puede ser outra cosa que derecho, ya que el conocer o el concebir jurídicamente no significa nunca sino el concebir algo como derecho (KELSEN apud SCHMILL, 2004, p. 133).

A teoria de uma identificação, pelo menos no campo teórico, entre Direito e Estado revela-se um marco dentro do pensamento jurídico, pois jamais tal entendimento havia sido lançado até então. Para Schmill (2004), a identificação de uma origem puramente filosófica nessa idéia revela-se fundamental, pois essa identidade Estado/Direito repercutirá em todo o restante da obra de Kelsen, convertendo-se no ponto central da qual se derivariam boa parte da riqueza conceitual de sua construção científica. O texto onde Cohen expõe a referida tese é o seguinte:

La teoría del Estado es necesariamente teoría jurídica del Estado. El método de la teoría del Estado se encuentra en la ciencia del derecho. Aun cuando para constituir el concepto de la ciencia del Estado deben cooperar otras ciencias, el fundamento metódico está formado indiscutiblemente por la ciencia del derecho. Si se toma en cuenta la Teoría Económica y a sus ciencias auxiliares para la teoría del Estado, entonces subrepticiamente las ciencias del Estado se ostentan en plural. El concepto y el método de la ciencia del Estado está condicionado preferentemente por la ciencia del derecho (COHEN apud SCHMILL, 2004, p. 134).

Além desse ponto, Schmill (2004) também aponta outras possíveis influências de Cohen no pensamento kelseniano, como a distinção entre ser e dever-ser como reflexo da distinção entre pensar e querer, que aparece principalmente a partir da publicação da segunda edição da Teoria Pura do Direito.

Além disso, os conceitos de vontade e de pessoa presentes em Kelsen, ainda que com algumas variantes, não deixariam dúvidas quanto à importância do pensamento de Cohen na discussão kelseniana.

Por outro lado, como já referido antes, ainda que a grande maioria dos estudiosos seja da opinião que Kelsen inspirou-se principalmente na escola de Marburgo, existem julgamentos divergentes que merecem respeito, os quais também possuem bons argumentos para afirmar que a principal fonte neokantiana de Kelsen talvez se encontre na escola de Baden. Uma das principais vozes contemporâneas nesse sentido é de Stanley Paulson. Ele crê que, mesmo que à primeira vista muitas teses kelsenianas pareçam estar fundamentadas em conceitos e noções trabalhadas pela escola de Marburgo, a influência neokantiana decisiva de Kelsen ocorreu através de Baden, por intermédio de Windelband e Rickert.

De acordo com Paulson (2003), o que talvez seja o ponto central aqui são as doutrinas da separação entre o explicativo e o normativo em Windelband e da separação entre os reinos do ser e do dever-ser de Rickert. Kelsen teria se utilizado dessas idéias, principalmente de Rickert, para formular o seu primeiro grande livro,

Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, onde apresenta boa parte dos problemas com

os quais se defrontaria no restante de sua obra:

El antagonismo entre el ser y el dever ser es do tipo lógico-formal y, en la medida en que no se rebasan los límites de uma consideración lógico- formal, ninguno de los caminos lleva al outro, los dos mundos permanecen frente a frente el uno del outro, separados por un abismo insalvable (KELSEN apud PAULSON, 2003, p. 557).

Conforme Gomes (2004), abalizado nas palavras que o próprio Kelsen teria pronunciado ao jurista mexicano Recaséns Siches, no momento em que foi escrita essa obra, em 1911, Kelsen ainda não tinha se familiarizado com os autores da escola de Marburgo. Da mesma forma, no prólogo da segunda edição consta uma referência explicíta a Windelband, como responsável pela interpretação utilizada acerca da antinomia kantiana entre ser e dever-ser (cf. GOMES, 2004, p. 184). Além disso, a própria citação de Kelsen transcrita duas páginas atrás confirma que este desconhecia alguns aspectos importantes de Cohen naquela época.

Paulson também dá outro aporte importante para sua interpretação: a terminologia usada por Kelsen nos Problemas Capitais segue Rickert, principalmente através das expressões “realidade” e “valor”, tão caras ao último,

como antes visto. Segundo Paulson (2003), tais expressões são utilizadas por Kelsen várias vezes, algumas de forma paralela a “ser e dever-ser”, “realidade natural e sistema de valores”, “legalidade causal e legalidade própria do normativo”. Em suma, percebe-se claramente a influência da escola de Baden na obra kelseniana também por meio da terminologia utilizada.

Em sua breve obra, datada originalmente de 1921, onde critica as teses do neokantismo, essencialmente sua utilização dentro da filosofia do Direito, Kaufmann (1992), que teve contato direto com Kelsen, após analisar as duas escolas neokantianas, a de Marburgo e a de Baden, não coloca o jurista de Viena como partidário de nenhuma delas em específico, mas sim, e tão-somente, como um seguidor do neokantismo. Kaufmann faz alusões tanto a pontos de Rickert quanto de Cohen para demonstrar as influências neokantianas de Kelsen, contra as quais o primeiro combate com extrema ferocidade. Talvez a visão deste grande jurista contemporâneo a Kelsen seja a mais adequada: não se trata de tentar rotular a obra kelseniana como seguindo esta ou aquela escola neokantiana, ou este ou aquele autor, mas sim tentar entender como Kelsen formulou sua teoria tendo Kant como paradigma, a partir da inspiração neokantiana em geral.