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1.2 Os propósitos e a metodologia explícita da dedução transcendental

1.2.3 O método do argumento nas duas edições

Além das já expostas diferenças na prova da dedução transcendental, as duas edições da Crítica da Razão Pura também diferem entre si na utilização naquilo que Kant chamou de “método analítico” e “método sintético”, também referidos como “regressivo” e “progressivo”. As palavras de Kant acerca das características e peculiaridades de cada um dos dois métodos são bastante breves, e limitam-se às seguintes passagens dos Prolegômenos:

Na Crítica da razão pura, tratei essa questão [a metafísica] de modo sintético, isto é, investiguei na própria razão pura e procurei determinar, segundo princípios, nesta mesma fonte, tanto os elementos como as leis de seu uso puro. (...) Em contrapartida, os prolegómenos devem ser apenas exercícios preparatórios; devem mostrar o que há que fazer para, se possível, realizar uma ciência, mais do que expor essa própria ciência. Devem, por conseguinte, fundar-se em alguma coisa que já se conhece seguramente, a partir da qual se possa partir com confiança e subir até às fontes que ainda não se conhecem e cuja descoberta nos explicará não só o que se sabia, mas ao mesmo tempo nos fará ver um conjunto de muitos conhecimentos, todos provenientes das mesmas fontes. O procedimento metódico dos prolegómenos, sobretudo, dos que devem preparar para uma metafísica futura, será, pois, analítico (KANT, 2003, p. 36).

É impossível impedir que, com o progresso gradual do conhecimento, certas expressões, já tornadas clássicas, remontando à infância da ciência, não sejam posteriormente encontradas insuficientes e impróprias e que um certo uso novo e mais adequado corra ainda algum risco de se confundir com o

antigo significado. O método analítico, enquanto oposto ao método sintético, é inteiramente diverso de um conjunto de proposições analíticas: significa apenas que se parte do que se procura, como se fosse dado, e se vai até às condições sob as quais unicamente é possível. Neste método de ensino, empregam-se muitas vezes apenas proposições sintéticas; a análise matemática é disso um exemplo; e seria melhor chamá-lo método regressivo, para o distinguir do método sintético ou progressivo (KANT, 2003, p. 40n).

Em suma, a principal diferença colocada por Kant para os dois métodos funda-se no ponto de partida do argumento. O método sintético, ou progressivo, começa de princípios superiores, verdadeiras condições de possibilidade, para então, por meio do argumento em si, ir descendo até os fatos ou elementos condicionados por aqueles princípios dos quais se partiu. Por outro lado, o método analítico, ou regressivo, inicia a partir de determinados fatos ou proposições que se entende como dadas, mas enquanto condicionadas por algum princípio superior. Partindo dessas suposições, vai-se para cima em busca exatamente desse princípio que seria a condição da possibilidade daquilo que se supôs no começo do argumento.

De plano, ficam claras as diferenças de fundamentação que resultam da escolha de um ou de outro desses métodos. No caso do método sintético, é preciso escolher adequadamente um princípio que seja passível da aceitação geral, bem como coerente com os resultados que se pretende alcançar na parte de baixo do argumento. Já no método analítico, torna-se necessário a pressuposição de determinados elementos iniciais, cuja realidade não se demonstrou ainda, para só então partir para a descoberta de um princípio que os tornaria possíveis.

No caso das duas edições da primeira Crítica, Kant utilizou os dois métodos na argumentação acerca da dedução transcendental das categorias. Na primeira edição, a dedução objetiva funda-se sobre o método analítico, pois parte-se da pressuposição de que temos experiência para então concluir que esta só é possível por meio das categorias. De outra banda, a dedução subjetiva parece basear-se no método sintético, pois se começa da apercepção como princípio inicial para então concluir-se que todas as intuições devem estar submetidas às categorias. Veja-se o que diz Carl a esse respeito:

A tarefa central da dedução subjetiva deve ser mostrar que há alguma relação entre a unidade da apercepção e um certo tipo de conceitualização do que é dado pelos sentidos. Diferente de uma dedução objetiva, tal explicação não pode pegar como garantia o fato que nós temos experiência.

(...) C. F. von Weizsäcker e outros têm afirmado que “alguém não pode deduzir a priori que há a menor experiência.” Mas isso era o que Kant objetivava fazer. A estratégia “analítica”, como é chamada nos Prolegomena – isto é, começar pelo fato que nós temos experiência e então perguntar pelas condições de possibilidade de experiência (Prol § 4, 4 : 274-275) – era a primeira idéia de Kant para uma dedução das categorias, mas não sua última palavra sobre a matéria. (CARL, 1989, p. 18-19).11

Seguindo essa linha de raciocínio, percebe-se que a “última palavra de Kant” só veio a ocorrer com a segunda edição da Crítica da Razão Pura, onde a referência a uma dedução objetiva e outra subjetiva é totalmente suprimida, e a dedução transcendental das categorias apóia-se exclusivamente no princípio do “Eu penso”. Assim, agora o filósofo vai montar, de acordo com os conceitos acima colocados, um argumento exclusivamente sintético, partindo do referido princípio para chegar à conclusão pretendida de que as intuições devem estar necessariamente relacionadas às categorias.

O principal motivo que levou Kant a essa mudança metodológica talvez seja o mesmo que o fez abandonar a distinção explícita entre dedução objetiva e subjetiva. A tarefa da filosofia crítica em confrontar as dúvidas do cético não permitiria a suposição de qualquer fato condicionado sem a comprovação anterior do princípio que o torna possível, ainda mais em uma questão fulcral como a experiência, enquanto conhecimento empírico de objetos dados. Ao valer-se do princípio da unidade sintética da apercepção como ponto de partida da dedução das categorias, Kant fortalece sua tese, pois já não precisa da boa vontade do cético em aceitar o fato de que nós temos experiência. O argumento desce de um ponto mais alto até chegar à conclusão que o múltiplo da intuição sensível deve estar necessariamente sujeito às categorias.

Ademais, de acordo com Henrich (1994, p. 34), outro motivo que levou Kant a preferir o texto na forma da segunda edição foi a adoção desse método sintético. Este pressupõe que as teses da Crítica da Razão Pura, categorias como funções da unidade da autoconsciência e espaço e tempo como representações dadas, são inicialmente independentes, possibilitando que o segundo passo da prova possa

11 No original: “The central task of a subjetive deduction must be to show that there is some relation

between the unity of apperception and a certain kind of conceptualization of what is given to the senses. Unlike an objective deduction, such na explanation cannot take for granted the fact that we have experience. (...) C. F. von Weizsäcker and others have claimed that “one cannot deduce a priori that there is experience at all.” But that was what Kant aimed to do. The “analytic” strategy, as it is called in the Prolegomena – that is, to start from the fact that we have experience and then ask for the conditions of the possibility of experience (Prol § 4, 4 : 274-275) – was Kant`s first idea for a deduction of the categories, but not his last word on the matter”.

utilizar os resultados da Estética já como fatos, não precisando, como se o método fosse analítico, provar a necessidade das formas da intuição. Dessa forma, e também por considerá-lo indicado para seus fins específicos, é que Kant teria optado por utilizar o método sintético na segunda edição da primeira Crítica.