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1.3 O pano de fundo implícito na dedução transcendental

1.3.1 As deduções jurídicas do tempo de Kant

Segundo Henrich (1989), na época de Kant era comum a escrita de textos denominados especificamente de "deduções”. Tais textos, realizados por juristas, buscavam justificar direitos acerca de questões sucessórias e da posse de territórios por parte de governantes em face dos outros inúmeros constituintes do Sacro Império Romano. As deduções eram publicadas a mando dos soberanos a fim de convencer outros governantes acerca da legitimidade de suas pretensões, e assim evitar possíveis disputas, ou, caso já houvesse uma ação judicial, eram então apresentadas diretamente às Cortes Imperiais, que decidiriam a controvérsia. Conforme assevera Henrich (1989, p. 32), em todos os casos os argumentos deviam necessariamente passar sobre a determinação da origem do direito reivindicado e sua manutenção ao longo das gerações.

As deduções eram preservadas nas bibliotecas pelos governos a fim de evitar conflitos futuros, e também eram colecionadas em razão de suas refinadas

impressões. Na época de Kant, a elaboração de deduções era uma especialidade jurídica muito prestigiada, tendo como seu autor mais admirado J. S. Pütter, co-autor do livro jurídico que Kant usava em seus estudos acerca de Direito Natural. Assim, percebe-se claramente que Kant conhecia os referidos escritos de dedução, inclusive por ter tido acesso a inúmeros deles no período em que trabalhou na Biblioteca Real de Königsberg.

Da mesma forma, conforme Henrich (1989), se Kant pretendesse utilizar o termo “dedução” nesse sentido também em filosofia, não teria dúvida que seus leitores o entenderiam, em virtude de seu uso corrente na época. Não obstante, fica claro que se soubesse da brevíssima continuidade do Sacro Império Romano, do fim das Cortes Imperiais e, conseqüentemente, dos escritos de dedução, não o teria utilizado, ou o teria feito com referências mais claras. Em pouco tempo, esse sentido de dedução deixou de ter significado, e a metodologia empregada por Kant, por sua vez, tornou-se cada vez mais obscura, ainda mais quando nos lembramos do crescimento vertiginosos da utilização do termo “dedução” em um âmbito exclusivamente lógico.

Deduções jurídicas eram escritas desde o século XIV, quando a teoria do direito era bastante menos desenvolvida do que no tempo de Kant. Diante disso, diversos juristas dedicaram-se a escrever tratados sobre a maneira correta de realizar uma dedução adequada, tanto na forma como no conteúdo. Henrich (1989, p. 33-34) cita um desses autores, que diz ser a dedução não uma teoria, mas uma argumentação que procura justificar uma alegação sobre a legitimidade de uma posse ou de um uso, devendo evitar digressões desnecessárias ou eminentemente teóricas, até porque qualidades que uma dedução deveria ter eram sua brevidade e objetividade.

Além disso, o jurista citado por Henrich elogia Pütter, pois este, caso não conseguisse escrever uma dedução nesses moldes, entregaria conjuntamente um outro texto menor, que resumiria os pontos mais importantes da argumentação. Em seu artigo, Henrich declara que ele próprio investigou deduções escritas por Pütter, tendo encontrado um texto desse tipo, sob o título “Breve resumo desta dedução”, igual ao utilizado por Kant no final da parte sobre a dedução transcendental na primeira Crítica (cf. CRP, B 169), o que seria mais um indício de que Kant fez seu programa de deduções a partir de um modelo jurídico e não da lógica.

No tocante à base dos argumentos a serem dados, a dedução jurídica também difere frontalmente de qualquer dedução formal. Para entendê-la, é preciso conceber duas classes distintas de direitos: inatos e adquiridos, ou, em outra nomenclatura, absolutos e hipotéticos, bastante em voga no século XVIII. Segundo tal teoria jusnaturalista, os direitos absolutos não têm que ser outorgados por nada ou ninguém, são próprios de todas as pessoas, são o que hoje comumente denomina-se de direitos humanos. Ao contrário, os direitos hipotéticos possuem uma origem em um fato ou ação específica, que antecede qualquer direito e é a própria fonte deste. Em outras palavras, nessa classe de direitos, há um fato originário que, com sua ocorrência, faz alguém adquirir determinado direito em relação a algo.

A resposta sobre a existência ou não de um direito hipotético deve, obrigatoriamente, voltar-se para as origens, no caso os fatos primordiais, que ocasionaram o seu surgimento. Diante de uma disputa sobre propriedade, a discussão será sobre a ocorrência ou não de uma das hipóteses previstas no Código Civil como forma de adquirir-se a propriedade, pois essa é a origem específica do direito alegado. Com isso, uma posse só é justificada a partir da investigação de sua origem, que trará resposta à pergunta sobre a legitimidade da própria posse. Esse processo é a dedução, que precisa sempre referir-se às origens de seu objeto, esclarecendo e justificando sua legitimidade.

Ao contrário do que parece, não existe aqui qualquer confusão entre questão de fato e questão de direito, uma vez que a questão sobre a origem da posse interessa a ambas, cada uma da sua forma particular. A questão de fato versa sobre a maneira pela qual se desenrolaram as circunstâncias factuais da situação que gerou o litígio. Por exemplo, numa discussão sobre posse de um bem, interessa a relação direta de ambas as partes com a coisa, as datas em que elas a tiveram sob sua detenção etc., ou seja, tudo aquilo que vincula os contendores ao bem no tocante aos acontecimentos pretéritos.

Por outro lado, a questão de direito irá debruçar-se não sobre todos esses aspectos factuais, mas apenas sobre aqueles que se referem à eventual origem do direito pleiteado. Já foi mencionado acima que os direitos hipotéticos caracterizam- se pela ocorrência prévia de um fato, o qual, em face de uma disposição legal que coloca certos requisitos, causará o aparecimento de um direito para algum sujeito. A questão de direito analisará se o fato originário da pretensão realmente é de uma natureza capaz de preencher todos os requisitos exigidos pelo ordenamento jurídico,

a fim de outorgar-se o direito. Ou seja, incumbe exclusivamente à questão de direito buscar a origem da alegação da parte e estudá-la para descobrir se há ou não legitimidade daquele que pretende a posse de um bem, por exemplo. Preenchidos todos os requisitos exigidos, e logo existindo legitimidade, a posse está plenamente justificada, e pode-se dizer que existe validade objetiva, no sentido que a posse obedece aos ditames jurídicos e o sujeito pode cercar-se de todas as garantias e possibilidades que o referido direito lhe dá.

Em suma, a questão de direito vai buscar somente aqueles fatos que dizem respeito à origem da posse do requerente, aqueles fatos que, ainda que apenas teoricamente, poderiam ser capazes de outorgar direitos hipotéticos à parte. A questão de fato dedica-se a contar a história completa, dizendo o que aconteceu ou não em relação ao bem e seus pretendentes; já a questão de direito vai em busca apenas dos fatos que verdadeiramente podem originar o direito pretendido, os relacionados à origem da alegação, e os confronta com as condições de validade que são exigidas para a legitimidade da reivindicação.