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2 O PENSAMENTO JURÍDICO DE KELSEN E A INSPIRAÇÃO KANTIANA

2.1 O neokantismo e Kelsen

2.1.1 A escola de Marburgo

A corrente neokantiana surgida na cidade de Marburgo, Alemanha, teve como expoentes principais os filósofos Hermann Cohen e Paul Natorp, além do jurista Rudolf Stammler. A característica principal que une todos seus integrantes, oficiais ou não, é um enfoque preponderante na utilização das relações lógicas para o enfrentamento dos problemas filosóficos. Trata-se de uma espécie de idealismo lógico, onde nada transcende ao próprio sistema, e a verdade que se busca está na utilização exclusiva das regras metodológicas que compõem o sistema em questão (cf. SIMPOZIO, verb. 730). O ponto fulcral é exatamente desconsiderar a possibilidade de um objeto em si, de uma realidade independente; o pensamento é o criador do objeto através da manipulação dos conceitos relacionados ao sistema. Isso valerá inclusive para as normas morais, que ficarão desprovidas de conteúdo material, sendo considerados apenas de maneira formal, e suscetíveis à aplicação das regras lógicas.

A figura de Cohen exemplifica de forma clara essa opção filosófica. O referido autor, segundo Costa (2002), busca retomar a idéia kantiana de encarar a filosofia como o instrumento para demonstrar as condições de possibilidade e

objetividade do pensamento. Para isso, toda a teoria deverá basear-se no a priori, na identificação e utilização dos elementos “puros” que podem caracterizar um conhecimento verdadeiramente científico. Tal tarefa exige a negativa de qualquer referência a algum fato empírico, encarando a filosofia como uma refinada metodologia da ciência.

Cohen pretende utilizar as leis lógicas para caracterizar o pensamento como produtor exclusivo do conhecimento, como verdadeiro criador dos objetos (cf. SIMPOZIO, verb. 731). Nesse sentido, é frontalmente contrário a Kant, uma vez que nega que a sensibilidade tenha qualquer papel na produção do conhecimento. Tudo advém exclusivamente do pensamento; é neste que os objetos são construídos a partir de uma síntese resultante dos elementos da razão. Da mesma forma, Costa também aponta essas e outras divergências essenciais entre as visões filosóficas de Cohen e Kant:

Contudo, as conclusões às quais chegou Cohen não foram possíveis sem ele ter passado por cima de alguns pressupostos de Kant. Por exemplo, ele rejeita a idéia de 'númeno', aproximando Imperativo Categórico/ Ética e os objetivos da ciência, o que, como vimos, Kant acreditava inviável, bem como também rejeita a distinção entre sensibilidade e intelecto (COSTA, 2002).

Ainda que com importantes diferenças, a obra de Natorp também vai seguir os mesmos moldes baseados nas relações lógicas e sofrer parecidas restrições quanto à sua fidelidade ao pensamento kantiano. Sua principal inovação é uma reinterpretação das idéias de Platão como leis e métodos do conhecimento científico (cf. SIMPOZIO, verb. 732). Não obstante, tal qual Cohen, entende a filosofia como uma metodologia da ciência, cuja principal função é buscar a fundamentação do conhecimento exclusivamente no pensamento, sem qualquer intervenção da experiência. Veja-se o que diz Sassi a esse respeito:

Assim sendo, para Natorp, o conhecimento dá-se na e para a consciência, mas os fundamentos do conhecimento não são processos psíquicos empiricamente descritíveis, e sim estruturas lógicas da consciência, precisamente de uma consciência transcendental. O conhecimento, por sua vez, realiza-se sempre em duas direções opostas: a objetivação e a subjetivação. As ciências positivas em geral trabalham com a objetivação. A filosofia, porém, enquanto teoria do conhecimento (psicologia e lógica), descobre que o objectum não é senão o projectum de um subjectum (SASSI, 2007, p. 30).

Conforme bem aduz Costa (2002), Natorp, como Cohen, também vai de encontro à filosofia kantiana ao negar que os pressupostos fundamentais do conhecimento também sejam encontrados na experiência, afirmando que as regras

a priori do entendimento são as únicas fontes de qualquer conhecimento. Ou seja, a

sensibilidade deixa de possuir um status particular, com suas formas próprias, para desenvolver-se também sob a forma de conceitos, nos moldes, pelo menos na visão de Natorp, do pensamento de Platão. Por outro lado, essa interpretação de Natorp vai ser levada para além das ciências naturais, abrangendo áreas diversas como a Moral, a Estética e a Religião.

No que tange ao Direito, este será encontrará seu introdutor dentro da metodologia da escola de Marburgo na figura de Stammler. Este foi o primeiro a entender o Direito unicamente enquanto “ciência do Direito”, procurando outorgar-lhe um status formal e autônomo que até então lhe era desconhecido. De acordo com Saldanha (2006), Stammler procurou a possibilidade de um conhecimento científico do Direito a partir da busca epistemológica pelas condições a priori que tornam possível a experiência jurídica, encontrando-as exatamente em um sistema de formas puras:

Realmente pode-se considerar o pensamento de Stammler como essencialmente epistemológico. No fundo, à sua Filosofia do Direito interessavam muito menos os conteúdos (os valores inclusive), as realidades concretas, a experiência enfim, do que as questões de método – no sentido de radical definição dos modos de pensar – e as questões ligadas à possibilidade da ciência: a filosofia como teoria, como foi visto acima, e como visão das validades formais (SALDANHA, 2006, p. 786).

Conforme Kaufmann (1992), com o intuito de moldar a matéria concreta do Direito por meio de princípios abstratos, Stammler introduz o conceito de “comunidade particular”, que se trata unicamente de um expediente do pensamento como esquema formal, que deve fornecer uma matéria concreta aos princípios abstratos do Direito. Contudo, a construção correta da comunidade particular só é possível, na concepção de Stammler, através da imaginação de cada indivíduo circundado por “círculos concêntricos”, que, por sua vez, apenas são realmente determináveis por intermédio de uma análise do Direito histórico (cf. KAUFMANN, 1992, p. 14-15).

E é exatamente essa apelação à história que Kaufmann irá criticar, pois entende que Stammler, utilizando tal expediente, está contradizendo sua busca por

um conhecimento científico puro do Direito, baseado em conceitos totalmente a

priori. Como os princípios abstratos devem ser sempre idênticos, Stammler, na visão

de Kaufmann, teve que utilizar o conceito nebuloso de “comunidade particular”, mas este, por sua vez, só encontra sua determinação no Direito histórico, uma questão eminentemente empírica. A validade normativa absoluta está fundada exclusivamente em princípios formais; contudo, a descrição e análise de todos os problemas jurídicos dependem do que se pode retirar do Direito histórico.