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Quando já estava há algumas semanas acompanhando audiências, presenciei o trabalho de uma escrevente, que devido ao atraso inesperado de uma conciliadora, iniciou as audiências de uma das salas na parte da tarde. Pela primeira vez, pude presenciar uma conciliadora que atuava de maneira muito semelhante às “boas práticas” descritas no Manual de Conciliação Judicial do CNJ.

A primeira surpresa foi a diferença de comportamento da escrevente, que passarei a chamar pelo nome fictício de Patricia. Naquele dia, uma conciliadora havia sofrido uma crise respiratória e não compareceu. Na ausência de conciliadores, o CEJUSC conta com alguns escreventes capacitados para atuar nesta função. Assim que é informada que atuará como conciliadora, Patricia entra na sala e diz aos estagiários: "vocês estão lascados, acho que hoje vou brincar de conciliadora... eu sou chata, vocês sabem né... minhas anteninhas são bem

82 Apesar do relatório “100 maiores litigantes” do CNJ não esclarecer qual o critério utilizado para selecionar as

empresas que integram do setor da indústria, tomei como base a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2004) para considerar as construtoras como pertencentes ao setor da indústria. Segundo o IBGE, esse setor é formado pelos seguintes subsetores: extrativismo de minérios; transformação; construção civil; e serviços industriais de utilidade pública.

ligadas". Lembro de outros estagiários, que me falaram que Patricia era “chata” e “rígida”, e penso que as "anteninhas" seriam um bom motivo para esse julgamento: Patricia não gosta de estagiários atrapalhando seu trabalho e as audiências. O escrevente que irá auxiliá-la entra na sala. Patricia o vê e eles brincam, demonstram ter intimidade como colegas de trabalho. O escrevente derruba alguns pequenos bibelôs que enfeitavam a mesa de Patricia. Ela fica brava, no mesmo tom que costumo vê-la repreendendo os estagiários. Começo a perceber que essa postura, além de ser direcionada a qualquer pessoa, é o seu jeito de interagir. Esse jeito “bravo” é deixado de lado assim que a “Patricia conciliadora” entra em ação.

Antes de apregoar, Patricia pergunta o nome de todos os estagiários e anota em um papel. Ela se lembra que eu sou pesquisadora, alertando-me para o fato de que o meu comportamento também está sendo observado. Com 10 minutos de atraso em relação ao horário agendado, Patricia (a partir de agora, conciliadora) sai para apregoar. Quando os usuários entram na sala, a conciliadora pede que os presentes se sentem "onde quiserem" e se senta na ponta da mesa, dizendo: "bom dia a todos, primeiramente preciso dos documentos de todo mundo". Ela coleta os documentos e a advogada da autora diz algo; a conciliadora diz: "só vou fazer a abertura da audiência e já passo a palavra para vocês". A declaração de abertura é feita:

meu nome é Patricia... eu sou funcionária do TJ [sic]... eu sei que todos tem seus problemas... hoje a conciliadora teve um imprevisto, ela está com uma crise respiratória e precisou faltar, por isso atrasamos um pouquinho a audiência, mas eu além de ser funcionária sou também conciliadora capacitada e vou fazer essa audiência com vocês para não prejudicar ninguém... o [estagiário 1] e a [estagiária 2] estão aqui como estagiários e a Elizabete como pesquisadora, eles estão aqui para avaliar o meu trabalho... vou explicar para vocês como é uma conciliação, bem resumido... os doutores já devem conhecer o procedimento mas eu vou explicar para vocês que nunca estiveram aqui né... é uma negociação, nós vamos tratar de valores mesmo, das possibilidades... como é no JEC [sic]... se não der acordo não tem problema, o processo de vocês continua e vocês vão se manifestar nele e deixar com o juiz... se der acordo, maravilha, bom para vocês, a gente encerra o processo hoje... mas lembrando que não é o objetivo da gente fazer um acordo aqui, o que o JEC [sic] faz aqui é só uma abertura para vocês conversarem...

Patricia prossegue de maneira firme, sempre objetiva e direcionando a fala dos participantes. Ela valoriza a participação dos advogados, sem utilizar termos técnicos ou jurídicos. Passando a palavra aos autores e réus, ela permite que as partes falem sobre o problema. Ela inicia a sequência das falas perguntando à autora o que aconteceu. A autora é jovem, tem cerca de 19 anos, parece pertencer a uma classe alta, pelas vestimentas e pelo comportamento. Quando é solicitado que ela conte sua versão dos fatos, a autora parece surpresa, o que faz com que Patricia se manifeste: "ah e outra coisa gente, eu não leio o processo, mas não é por descaso, mas é para que eu não me influencie pelo que vocês já falaram..." A

autora conta que foi agredida pela ré, uma outra jovem que não comparece e é representada por um advogado, em uma boate da cidade. A ré teria quebrado uma garrafa de whisky na cabeça da autora, que teria sofrido muitas lesões. A ação pedia reparação por danos morais pelo ocorrido.

Quando a autora termina, Patricia direciona a palavra ao dono da boate, uma vez que a ré não está presente: "o clube quer se manifestar, pedir desculpas, tem alguma proposta?". O proprietário da boate diz que ficou surpreso com o envolvimento dele no processo, que o clube não tem responsabilidade sobre o ocorrido e por isso pede para que seja excluído da ação. A conciliadora interrompe e, de forma educada, diz que a retirada da ação "é uma questão jurídica", já que o estabelecimento responde de maneira solidária por fatos de terceiros ocorridos em sua dependência. Sendo uma questão jurídica, não seria possível registrar o pedido de exclusão durante a audiência. O advogado do estabelecimento comenta que foi prestada toda a assistência à autora no dia do fato, por isso as "questões jurídicas e fáticas" demonstrariam que a responsabilidade da boate foi cumprida. A advogada da autora discorda, diz que eles não prestaram atendimento total, que ninguém acompanhou a autora na delegacia ou no hospital.

Sem emitir juízo de valor acerca dos comentários, a conciliadora direciona a palavra para a advogada da ré, que apresenta uma proposta de 2 mil reais. A autora e a advogada se olham; o proposto no processo é 10 ou 12 mil. A conciliadora pergunta se o estabelecimento integralizaria o valor para chegar num montante intermediário, como 8 mil. Com a negativa do estabelecimento, a conciliadora sugere que a autora e sua advogada saiam para conversar, se preferirem. Elas saem para conversar e, enquanto isso, a conciliadora conversa com os presentes. Pergunta à advogada se o valor seria pago à vista ou parcelado. A autora e a advogada voltam e dizem que 2 mil reais é pouco, porém que elas aceitariam 5 mil. A advogada da ré sai para ligar para seu cliente (o pai da ré), para consultar sobre a contraproposta. A conciliadora lembra de perguntar também a data de pagamento e a forma de pagamento.

Enquanto a advogada da ré sai, a advogada da autora quer mostrar as fotos dos ferimentos aos presentes. A conciliadora e o advogado do estabelecimento insistem que não é necessário, mas a advogada mostra mesmo assim. A advogada da ré volta; o pai da ré oferece 4 mil à vista a serem pagos no dia seguinte. A advogada olha para sua cliente, que diz "pra mim tá bom”. O valor é aceito. Neste momento, a estagiária à minha frente na mesa, que também é advogada, preenche seu relatório de estágio. Ela me pergunta baixinho sobre uma multa mencionada na conversa das partes, que não entendo a que se refere. Depois, lembro que a multa pode ter sido mencionada quando se falou sobre processo por crime de agressão da autora contra a ré, que corria na esfera criminal. Esta informação não me pareceu relevante para um

relatório de estágio sobre a atuação da conciliadora. No entanto, o olhar da estagiária- advogada sobre a conciliação parece ser reticente quanto a questões subjetivas e demasiado atento para questões patrimoniais.

Mediante a formação do acordo, a conciliadora vai até a mesa do escrevente e o ajuda com o termo. A conciliadora lê o termo em voz alta. "Se estiver tudo certo, vocês podem assinar no final e rubricar na frente" - ela diz. Todos assinam. "Essa assinada vai ficar disponibilizada no sistema..." Os advogados dispensam uma cópia do termo. A conciliadora finaliza a audiência: "senhores, parabenizo pelo acordo, o CEJUSC sempre estará aqui à disposição de vocês". O advogado da boate, que conhece Patricia como escrevente, brinca com ela: "parabéns você, excelente conciliadora, melhor aqui que lá fora, vou falar para o CNJ [sic], você tem talento para conciliação, viu!?". Patricia responde "pode falar, o trabalho reconhecido é que é o melhor".

Tanto durante a audiência, como nos intervalos, com os estagiários, Patricia demonstrou muita empatia, gentileza e, acima de tudo, objetividade e técnica (jurídica e conciliatória). Sendo formada em Direito e atuando como escrevente, os conhecimentos jurídicos de Patricia são muito amplos, porém sua atuação como conciliadora não é impregnada por uma linguagem erudita e desnecessariamente legal. Em diversos momentos, ainda, ela demonstrou paciência com as perguntas da estagiária, além de fazer referências a “bons conciliadores”. Percebendo que eu também anotava, Patricia me falou sobre referências de aulas no YouTube e do trabalho de algumas conciliadoras do CEJUSC que ela acha exemplar. Ela diz que, dentre os cerca de 150 conciliadores que atuam no CEJUSC, apenas 30 “mandam bem”.

Em uma das últimas audiências do dia, o autor e seu advogado entram na sala com Patricia. Ela começa a conversar com eles de forma descontraída, demonstrando que esses participantes a conhecem. Brincando, Patricia diz: "sabe aquelas moças lá de baixo do balcão? Eu sou grossa igual a elas! Mas é que hoje eu não estou aqui como funcionária do TJ, eu estou aqui como conciliadora. Aí eu sou mais educada". Os dois homens riem e o advogado pergunta: "mas por que aqui você faz diferente?". Patricia responde, em tom de deboche: "porque fiz curso para conciliadora, sou formal, faço como está nas regras da conciliação". O advogado diz: "você é legalista então?". Ela responde: "sou, sigo o que está na lei”.