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Em outubro de 2016, o TJSP disponibilizou, em seu canal no YouTube, um vídeo intitulado “Não cause, concilie”. Com duração próxima de 1 minuto, a descrição convida o expectador a saber “mais sobre as vantagens da conciliação” (Tribunal de Justiça de São Paulo, 2016b). As primeiras cenas mostram um CEJUSC iluminado, onde pessoas aguardam o atendimento em uma sala de espera espaçosa, com um aspecto novo e confortável. Com uma música de fundo alegre e descontraída, o vídeo traz o depoimento de quatro pessoas que teriam resolvido seus problemas por meio de acordos realizados em um centro de conciliação.

A primeira entrevistada, uma mulher jovem, branca, diz que conseguiu uma “solução rápida” com a qual “as duas partes saíram satisfeitas”. Uma legenda indica que ela teria resolvido “uma questão financeira”. O segundo depoente, um homem negro e idoso, diz que foi “chamado” ao CEJUSC para receber o seguro DPVAT, tendo entrado em um acordo com todos, “graças a Deus”. Outro entrevistado, um jovem negro, afirma: “[o serviço] é bom, rápido e fiz um acordo legal”. A legenda na tela indica que o jovem “resolveu [uma] indenização de acidente de moto”. O último entrevistado é um homem branco de meia idade. Ele diz que todos deveriam conhecer mais sobre o CEJUSC e que “em vez de ir para a justiça comum, [todos deveriam] vir aqui, por que as coisas são mais rápidas.” Sua conciliação envolveu o recebimento de uma herança.

Após os depoimentos, o vídeo do TJSP ainda mostra alguns dados que parecem ter a intenção de ilustrar o bom desempenho dos métodos informais. No primeiro semestre de 2016, 55 mil casos foram resolvidos sem a necessidade de entrar na Justiça, por meio de conciliações pré-processuais. Dentre as conciliações realizadas no decorrer de um processo judicial, 94.046 acordos foram feitos, o que seria “equivalente a uma taxa de sucesso de 60%”. Em 2014, o TJSP contava com uma equipe de 427 conciliadores por todo o estado. Em 2015, o número de conciliadores voluntários que atuavam nas comarcas paulistas era de 5.542.

A mensagem transmitida pelo vídeo é sedutora. Afinal, quem não busca rapidez e satisfação quando vai até a justiça para resolver um problema? As estatísticas oficiais,

selecionadas para demonstrar o investimento do poder Judiciário nos métodos informais dão a impressão de um lugar que será bem equipado e rico em recursos. Os entrevistados que representam os usuários do serviço público parecem ter sido selecionados pensando uma certa ideia de representatividade (mulheres e homens, brancos e negros) que inclua pessoas variadas. A peça publicitária é coerente, portanto, aos valores que embasam a criação da política nacional de conciliação: uma nova política que pretende tornar a justiça mais rápida e eficiente, trazendo a população que não vai ao Judiciário mais próxima da justiça.

Na fala do último entrevistado, fica claro que o público dessa “nova forma de solução” é chamado para acessar essa “porta” do CEJUSC (“[todos deveriam] vir aqui”) e não a outra “porta” (que leva à “justiça comum”). Essa ideia de acesso a diferentes “portas” do tribunal, que remete ao sistema de tribunal multiportas citado no item 1.4, demonstra a intenção de criar dois caminhos: um mais desejado, outro menos. Ao levar em conta o título do vídeo (“Não cause, concilie”), percebe-se com mais clareza esse contraste entre essas duas vias de acesso. O uso do verbo “causar”, que no sentido coloquial significa “chamar a atenção”, “bagunçar”, “aprontar”, ou “fazer alguma coisa fora dos padrões do momento” (Causar, 2018), sugere uma conotação negativa para o acesso à porta da “justiça comum”, ou seja, entrar com um processo judicial. Em contrapartida, “não causar”, ou seja, “conciliar”, traz uma conotação positiva, de incentivo ao uso da “porta” da conciliação.

Quando assisti esse vídeo, eu já havia terminado a observação participante no CEJUSC de Campinas havia alguns meses. Foi inevitável assistir as cenas do clipe sem lembrar da realidade que eu tinha acompanhado tempos antes. O espaço mostrado no vídeo – grande, confortável, com aparência de novo - contrastava com os corredores antigos do CEJUSC da Cidade Judiciária, eternamente adaptados para um público que abarrota as pautas de audiências a cada alteração na lei. Os assuntos relatados pelos entrevistados (dívidas financeiras, seguro DPVAT, indenizações, herança) não são os assuntos que mais ocupam a agenda de audiências do CEJUSC observado. Enquanto estive em campo, a maioria dos casos levados ao CEJUSC eram de questões de família e consumeristas. As dificuldades de acesso físico às dependências do fórum completam, ainda mais, o quadro de uma justiça informal que tenta se adaptar a uma política que não se adequa à realidade dos fóruns do país.

Após vivenciar diversas situações que expuseram as dificuldades da política pública em adaptar-se à complexidade dos conflitos, comecei a notar um padrão de comportamento em um

grupo específico de usuários. Os chamados repeat players80, que são aqueles que possuem

muitos processos em seu nome, acabam se beneficiando com as falhas na prestação do serviço jurisdicional. Por um lado, há uma vantagem matemática em ser um participante frequente na justiça: mais processos, mais chances de tentativa e erro, mais chance de ganho do que um participante que acessa o serviço ocasionalmente (o chamado one-shooter). Por outro lado, os repeat players investem mais em recursos, o que traz maiores possibilidades para encontrar lacunas legais, estratégias práticas ou mesmo argumentativas para alcançar os resultados desejados.

No CEJUSC da Cidade Judiciária, os repeat players se confundem com os chamados “maiores litigantes” do Judiciário. Segundo uma pesquisa divulgada pelo CNJ (2012, p. 8), entre os dez setores privados com maior número de processos na justiça brasileira estão, respectivamente, o setor bancário, de telefonia, do comércio, de seguros e previdência, da indústria e de serviços81. No CEJUSC da Cidade Judiciária, a regularidade mais encontrada no

comportamento dessas empresas é utilizar a lentidão da “justiça comum” a seu favor. A estratégia dos advogados das empresas depende da expectativa de se ter uma sentença favorável ou não. Apesar de não ser possível prever com toda a certeza o resultado da sentença judicial, o fato de haver muitos processos parecidos ajuda a estimar o resultado do processo judicial.

Em última instância, a estratégia traçada pelas empresas depende do seguinte cálculo: quão custoso é para a empresa esperar a sentença ou fazer um acordo antes? Nos casos em que o consumidor foi lesado e espera-se que o juiz dê razão para ele, as empresas costumam tentar um acordo. Quando há a expectativa de que a sentença seja favorável para a empresa, nem mesmo uma proposta é feita em audiência. Neste último caso, o comparecimento em audiência acontece apenas por que o procedimento é obrigatório, já que não há a intenção de discutir a questão fora do juízo.

Em uma audiência, presenciei uma advogada que representava um banco dizer que a instituição não apresenta propostas em audiência de conciliação, mas que “pode acontecer” de oferecer proposta no processo depois da audiência. Para auxiliar a chance de proposta “nos

80 Galanter (1974) foi o primeiro a trabalhar essa teoria. No Brasil, Gabbay et al. (2016) e Gabbay, Asperti e Costa

(2017) analisaram como o CPC/16 afetou as condições de acesso ao Judiciário dos repeat players e one-shooters.

81 O maior litigante da justiça brasileira, segundo a pesquisa, é o próprio setor público, que aparece com 12,14%

(federal), 3,75% (estadual) e 6,88% (municipal) de processos. Na sequência, estão bancos (10,88%), empresas de telefonia (1,84%), comércio (0,81%), seguros/previdência (0,74%), indústria (0,63%), serviços (0,53%) e conselhos profissionais (0,32%). Como os processos cíveis em que o setor público é parte correm nos tribunais da Justiça Federal, e não da Justiça Estadual, objeto desta pesquisa, as audiências desses litigantes não fizeram parte do universo estudado. Sobre o acesso à justiça no âmbito dos juizados especiais federais, ver Inatomi (2009).

autos”, a advogada perguntou ao autor qual o valor mínimo para que ele aceitasse fazer um acordo. A advogada da ré, que foi contratada apenas para aquela audiência e nem mesmo conhecia o que era dito na ação, disse que iria “repassar” esse valor para que o banco analisasse as condições de apresentar uma proposta.

O autor do processo judicial em questão, que pouco falou em audiência, tinha sofrido um sequestro relâmpago e foi obrigado a usar seu cartão de débito para fazer compras em diversas lojas. O total em compras ultrapassou o valor de 12 mil reais. Como o limite do cartão era de 5 mil reais, seu advogado diz que pediu a inexigibilidade do valor acima do limite mais uma quantia a título de danos morais. Mesmo possuindo seguro para cobrir danos em caso de sequestro, o banco teria cobrado o valor integral e ainda teria negativado o nome do autor nos órgãos de proteção ao crédito pelo não pagamento do montante. Geralmente, essa situação é suficiente para que os juízes deem razão para o consumidor.

Em outra ocasião, um escrevente teceu comentários sobre o padrão de comportamento dos representantes dessas empresas, geralmente funcionários que acompanham os advogados nas audiências – os chamados prepostos. Ele comentou que os prepostos não são orientados a oferecer proposta, pois somente após a audiência de conciliação que algumas empresas consideram fazer ou não um acordo. Citando o exemplo de uma empresa de telefonia celular, ele disse que, quando há interesse por parte da empresa em evitar o provável resultado da sentença, um funcionário da empresa entra em contato com o autor da ação após a audiência. Ele criticou essa postura e também o fato dos advogados contratados para a audiência não serem informados sobre o que ocorreu com os clientes que ingressaram com as ações. Os advogados seriam, portanto, contratados só para “pedir o mínimo” que o autor aceitaria para encerrar o processo. Por fim, ele citou um preposto de uma empresa de telefonia celular que está em todas as audiências. Naquele dia, o preposto teria sido educado com os participantes da audiência, pois “esse [autor] tinha advogado”. Quando a pessoa comparece sem advogado, contudo, o preposto se aproveita da situação, sendo grosseiro e desrespeitando as pessoas, ao dizer coisas como “você está louco, a [nome da empresa] nunca vai te pagar isso”.

Uma das primeiras imagens que registrei do fórum retratavam as árvores ao redor do estacionamento interno do fórum. Todas as árvores possuem uma etiqueta de metal presas em alguma parte de seu tronco ou galhos. O QR Code direciona os mais curiosos para um endereço eletrônico que indica o tipo de árvore (i.e. uma nespereira) e a localização latitudinal da planta. O site permite também que se faça uma solicitação de cuidados à árvore via Facebook. O mapeamento e monitoramento é feito pela Secretaria Municipal do Verde e Desenvolvimento

Sustentável da Prefeitura Municipal de Campinas. Muitas dessas árvores são patrocinadas por empresas que se enquadrariam na classificação de “maiores litigantes”.

No item 3.3, descrevi uma audiência na qual a empresa ré, uma das maiores construtoras do país, integra um dos setores82 que “mais litigam”. A advogada da empresa, também

contratada apenas para aquela audiência, apresentou uma proposta que, ela mesma, disse ter “vergonha” de oferecer. O conciliador, num comportamento que parecia tentar intimidar todos que se mostrem contrários à aceitação de propostas em audiência, insistiu tanto que acabou convencendo a autora a concordar com a proposta. No final, a autora pareceu pedir desculpas por ter entrado com o processo, enquanto o parecer técnico de sua advogada, que era contrário à aceitação do acordo, foi rechaçado pelo conciliador insistente. A busca por consenso e diálogo, prometidos na declaração de abertura do conciliador, se resumiram à assinatura de um acordo sob pressão. A autora, que foi tratada pelo conciliador como uma pessoa que estaria “causando”, acabou “conciliando”. Qual não foi a minha surpresa em verificar que, dentre as tantas árvores com QR code no estacionamento do fórum, algumas foram patrocinadas pela construtora que aparecia como ré nesta audiência.