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2.5 A escuta conduz à participação “ativa, plena e frutuosa” dos fiéis na liturgia

2.5.3 A escuta ritual da Palavra de Deus na liturgia

A ritualidade da Palavra de Deus na liturgia é um elemento importante nesta pesquisa. Isto porque envolve todo um movimento ritual em torno da escuta das Sagradas Escrituras nas ações sagradas. Envolve gestos, palavras, silêncio, aclamações. É um movimento ritual que desperta todos os sentidos da pessoa humana, desde o sentir ao inteligir. Tanto de quem lê quanto de quem a escuta. Percebe-se que toda a assembleia de convocados se reúne ao redor do livro sagrado para escutar a proclamação da Lei do Senhor. Para André Fossion, o livro das Escrituras e a assembleia representam partes de um sýmbalon, cortado em dois, sendo cada um parceiros da aliança, no sentido de conservar a própria parte. As duas partes do sýmbalon, Escritura e assembleia, figuras de Deus e do povo, colocando-se uma em frente da outra, se recompõem numa unidade, permitindo se reconhecer como sujeitos da aliança que se confirma e renova:124

Colocar o livro à vista, abri-lo e lê-lo em assembleia são gestos que ritualizam a aliança. As Escrituras são o sinal eficaz pelo qual os cristãos podem reconhecer-se participantes de uma mesma aliança em nome do Deus de Jesus Cristo. Elas atestam a pertença comum dos cristãos e os diferenciam das outras comunidades humanas. Consequentemente, as Escrituras não são separáveis da relação social que estabelecem. O livro constitui o povo; o corpus dos textos bíblicos constitui o vínculo do corpo eclesial, do qual o bom funcionamento está garantido pela leitura, constantemente retomada, das Escrituras.125

A elevação do livro, de modo que toda a assembleia veja a Escritura como símbolo, é o primeiro ato da liturgia da assembleia de Esdras (Esd 10,1-17). A elevação do livro na liturgia cristã, em sua forma mais solene, prevê duas elevações do evangeliário. A primeira acontece na procissão de entrada, quando o diácono que leva o livro passa no meio da assembleia com o evangeliário elevado, para colocá-lo sobre o altar, onde fica até a proclamação do Evangelho. Ainda antes do ambão, o altar é o lugar primário, quase originário, porque ocupa o lugar interior

123 Cf. EG, n. 146-149.

124 Cf. BOSELLI, Goffredo. Op. cit., p. 67.

125 FOSSIO, A. Leggere le Scritture: teoria e pratica della lettura strutturale. Leumann: Elledici, 1982. p. 52. Apud BOSELLI, Goffredo. Op. cit., p. 67.

80 da liturgia. A segunda elevação acontece durante a procissão, quando o diácono leva o livro do altar até o ambão para a sua proclamação.126

O evangeliário, colocado no centro do altar no início da liturgia, revela a mesma dignidade dos dons eucarísticos. Sobre o altar, o evangeliário tem o mesmo lugar da Eucaristia. Isto porque o livro dos evangelhos não é só um objeto de culto, mas também objeto do culto. Sua colocação sobre o altar é o primeiro ato de culto, de intenso significado teológico, onde o cristão se alimenta do pão da vida tanto na mesa da Palavra quanto do Corpo de Cristo. Do mesmo modo que o pão e o vinho são tirados do altar para alimentar os fiéis, também o Evangelho é tirado para que os fiéis se alimentem da Palavra de Cristo. “Quem escuta a minha palavra […] possui a vida eterna” (Jo 5,24). Este gesto significa que o evangeliário é retirado do altar para ser escutado, mastigado, comido. A Palavra de Deus é alimento que passa pela audição.127

Pode-se observar também que, no início da liturgia, o evangeliário é colocado sobre o altar, lugar do memorial do sacrifício da cruz. Depois é retirado para a proclamação do Evangelho no ambão, a fim de significar que o Evangelho de Cristo deve ser escutado a partir do mistério da cruz, porque, toda vez que se prega o Evangelho de Cristo, é a Palavra da cruz (1Cor 1,18) que é pregada. “Nós, porém, anunciamos Cristo crucificado” (1Cor 1,23), escreve o apóstolo Paulo. Nesse sentido, a elevação e a ostensão do evangeliário diante da assembleia já é proclamação do verbum crucis. É como se aquele ato realizado silenciosamente dissesse: “Ecce verbum crucis”, ou o antigo canto da Sexta-feira Santa, quando o celebrante entoa, ao elevar e expor a cruz: “Eis o lenho da cruz do qual pendeu a salvação do mundo”. Esse gesto de levantar a cruz e levantar o evangeliário realiza de fato o mesmo ato, proclama-se a única Palavra,128 a “Palavra da Cruz”. Como diz Santo Agostinho: “Nutrimo-nos da cruz do Senhor quando comemos o seu corpo”.129

O Evangelho e a cruz são inseparáveis. Isto se pode ver pelo sinal da cruz que quem proclama o trecho evangélico traça sobre a página do evangeliário; gesto que toda a assembleia dos fiéis, juntamente com ele, assinala sobre a fronte, os lábios e o peito, para significar o acesso da Palavra do Evangelho às faculdades fundamentais da pessoa: intelecto, linguagem e vontade. Lembrança do gesto de incisão batismal, o sinal da cruz faz o sinal sobre a fronte, local da

126 Cf. BOSELLI, Goffredo. Op. cit., p. 67. 127 Cf. ibid., p. 68.

128 Cf. ibid.

81 mente e da inteligência; sobre os lábios, espaço da voz e da palavra; e sobre o coração, sede da vontade e dos afetos.130

No movimento ritual da procissão com o livro dos evangelhos, revela-se a convocação de Deus a seu povo, por meio do Verbo já no início da celebração. Agora é Jesus que se levanta na assembleia para dirigir sua Palavra. Aquele que vem em nome do Senhor. A comunidade reunida em assembleia o saúda, o aclama, para ouvir com atenção sua palavra, pão que alimenta o povo a caminho.131 O canto de aclamação do Evangelho, o “Aleluia”, é um transbordamento

de alegria pascal, fundamento da alegria cristã.132 Para São Cromácio de Aquileia, o “Aleluia” é um convite ao louvor e uma confissão de fé.133