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2.5 A escuta conduz à participação “ativa, plena e frutuosa” dos fiéis na liturgia

2.5.4 A proclamação da Palavra de Deus na liturgia

Há duas imagens para a sacramentalidade da proclamação da Palavra: a imagem da mesa, conforme o Concílio Vaticano II e o Missal Romano,134 e a do caminho, conforme Emaús. Nesse sentido, a expressão “mesa da Palavra” significa espaço para o alimento. Palavra e corpo não se separam, embora tenham identidades diferenciadas. Nesse sentido, o ambão, como mesa da Palavra, não é uma duplicação do altar, mas compõe com ele uma espécie de itinerário, de caminho. Do verbo grego anabainen (subir), lugar para as proclamações ou migdal (torre), local da leitura das Escrituras nas sinagogas, o ambão surge no século IV, nas igrejas gregas, e se espalha no Mediterrâneo e Norte dos Alpes. Nasceu como local para a proclamação dos textos bíblicos e para ser cantado o salmo responsorial. Como ficava num lugar privilegiado no sentido visual e acústico, passou a ser usado para a homilia, oração universal e a proclamação da Páscoa na Vigília Pascal.135

A Palavra de Deus proclamada na liturgia é uma ação ritual. Os verbos que a exprimem são: “proferir” (IGMR, n. 29), para as leituras, e “anunciar” (IGMR, n. 59.94) ou “proclamar” (termo usado pelo lecionário) para o Evangelho. Esses verbos querem expressar a força da Palavra de Deus. O verbo proclamar expressa a estrutura litúrgica do rito da Palavra. Portanto,

130 Cf. ibid., p. 69.

131 Cf. BECKHÄUSER, Alberto. Op. cit., p. 185-186.

132 Cf. COSTA, Valeriano Santos. Celebrar a Eucaristia: tempo de restaurar a vida. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 45.

133 Cf. SÃO CROMÁCIO DE AQUILEIA. Sermão 33: Antologia Litúrgica – AL 2421. Apud COSTA, Valeriano Santos. Op. cit., p. 45.

134 Cf. SC, n. 51. PO, n. 18. DV, n. 21, IGMR, n. 27. Apud COSTA, Valeriano Santos. Celebrar a Eucaristia: tempo de restaurar a vida. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 41.

135 Cf. COSTA, Valeriano Santos. Celebrar a Eucaristia: tempo de restaurar a vida. São Paulo: Paulinas, 2006. p. 41-42.

82 proclamar significa anunciar em público e em alta voz. Anúncio público em tom solene, soberano e oficial. É isso que a Igreja faz quando proclama as Escrituras como anúncio e realização do mistério pascal de Cristo. As leituras bíblicas, incluindo o salmo responsorial num crescente anúncio do Evangelho como Palavra definitiva, confirmam que Jesus de Nazaré é o Messias da fé e o proclamam ressuscitado e vivo para sempre. O Evangelho é o cume do mistério de Jesus que perpassa todas as Escrituras. É nesse sentido a valorização ritual do livro dos evangelhos (evangeliário).136

Proclamar a Palavra de Deus na celebração litúrgica, enquanto presença viva de Jesus Salvador, é ação ritual sagrada porque comporta a eficácia sacramental da Palavra e manifesta a graça de Cristo Salvador. O acolhimento da Palavra pela escuta da comunidade dos fiéis basta para que a eficácia das Escrituras modifique as pessoas e a comunidade. Deus desce até o seu povo. Esse movimento de descer é típico do Espírito Santo. Ele desceu para fecundar o seio de Maria, desceu sobre Jesus no batismo do Jordão, desceu no coração dos profetas e sábios, desceu em Pentecostes sobre os discípulos e desceu sobre a assembleia congregada em oração litúrgica, a fim de fecundar corações e mentes com a Palavra e fazer que os seus louvores subam até Deus.137

A função do Espírito Santo é oferecer ao povo o sopro da vida. É ele que dá encanto para atrair os ouvidos do coração e da mente e para reter a graça divina. Um encanto radiante de beleza, bondade e generosidade. Nesse sentido, a liturgia da Palavra é a manifestação da beleza de Deus que entra pelos ouvidos e, como um tênue fio irradiante, atinge o coração, dando o prazer de entregar a Cristo todo o seu ser. É por isso que a atitude mais teológico-litúrgica é a escuta. Ela constitui já a primeira resposta a Deus. Portanto, escutar já é responder à graça de Deus, que fala por meio do Verbo.138

O leitor é sempre essencial para o livro. A leitura faz parte da Escritura porque a Escritura é feita para ser lida. Com relação à ação proclamativa de Jesus na sinagoga, ele se levantou para fazer a leitura, foi lhe entregue o livro, ele desenrolou o livro (Lc 4,16-17) e, em pé, lê em alta voz. Interessa neste momento a voz do leitor. Jamais se dirá o bastante sobre a importância da voz e sua necessidade. A voz do leitor é necessária para que se realize o processo

136 Cf. ibid., p. 43-44.

137 Cf. ibid., p. 45-47. 138 Cf. ibid., p. 47-48.

83 de transição da Palavra de Deus à comunidade reunida. Os fiéis necessitam da voz do leitor para a proclamação.139

A Escritura é reconhecida pela comunidade por meio da voz daquele que a lê. Se cada livro tem inscrito em si mesmo o próprio leitor, nas Escrituras Sagradas está não apenas o leitor, mas a voz do leitor. Em hebraico, o nome das Escrituras é miqra, que significa “leitura em alta voz” ao mesmo tempo proclamada, isto é, feita para ser lida em voz alta e escutada. A leitura litúrgica manifesta, portanto, a passagem da Escritura à oralidade. A voz do leitor pertence de modo constitutivo ao texto. É tarefa do leitor fazer com que sua voz seja serva da “voz escrita”.140

A voz em primeiro lugar se apoia sobre o que está escrito, segue à risca o que está escrito. A voz se submete ao que está escrito, assim como a voz de Jesus se submete ao texto do profeta Isaías. Jesus não inventou o texto, fez-se obediente ao que está escrito, fez obediência a Moisés e a Elias, à Lei e aos Profetas, e através deles fez obediência ao Pai. A voz do leitor, que ressoa na escuta da comunidade, expressa a necessidade do processo de leitura, de escuta, de interpretação e de atualização, sem o qual a Bíblia seria uma letra morta.141

Por isso, proclamar a Escritura diante da comunidade não significa simplesmente ler em voz alta, mas é dirigir a Palavra de vida à comunidade em nome do Senhor. Da Escritura passa- se à palavra dirigida, proclamada, criadora de comunidade. É essa atitude proclamativa do leitor que leva a comunidade a aclamar: após as leituras, “graças a Deus”; e após o Evangelho, “Glória a vós, Senhor”. A liturgia põe na boca da assembleia uma alta profissão de fé. Porque é Cristo que fala à comunidade para fazer a Igreja escutar e atualizar nela a sua Palavra.142

Vale ressaltar que, nos textos rabínicos, o leitor é exortado a estar ereto, a falar com voz alta e clara, a pronunciar de modo claro as palavras, a vestir uma roupa digna e, na véspera, preparar com cuidado a leitura, relendo-a mais vezes.143 São Bento, em sua regra, escreve: “Não

presuma cantar ou ler, a não ser quem pode desempenhar esse ofício de modo que se edifiquem os ouvintes; e seja feito com humildade, gravidade e tremor por quem o abade tiver mandado”.144

139 Cf. BOSELLI, Goffredo. Op. cit., p. 72-74. 140 Cf. ibid., p. 74-75.

141 Cf. ibid., p. 75. 142 Cf. ibid., p. 76. 143 Cf. ibid., p. 76-77.

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