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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP. Faculdade de Teologia. Ademilson Tadeu Quirino

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Faculdade de Teologia

Ademilson Tadeu Quirino

A escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia: um desafio em “tempos líquidos”

Mestrado em Teologia

São Paulo 2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Faculdade de Teologia

Ademilson Tadeu Quirino

A escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia: um desafio em “tempos líquidos”

Mestrado em Teologia

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia, com concentração liturgia, sob orientação do Prof. Dr. Valeriano Santos Costa.

São Paulo 2017

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________________________________________

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A

GRADECIMENTO

Desejo agradecer inicialmente a Deus, pelo dom da vida. A meus pais, que foram e continuam sendo meus mestres na fé e no conhecimento da vida. À diocese de Caratinga, na pessoa de Dom Emanuel Messias de Oliveira, bispo diocesano. Ao presbitério desta Igreja particular de Caratinga. Ao Seminário de Caratinga, formadores e formandos, pelo incentivo. Às Paróquias por onde passei. Aos professores, pela sabedoria, incentivo e ensinamentos transmitidos a mim.

Quero agradecer também à Arquidiocese de São Paulo, na pessoa do senhor Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, que me acolheu neste tempo com o uso de ordem em sua Igreja Particular. À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, juntamente com o corpo docente e discente, pelo incentivo nas pesquisas. À Adveniat, pela ajuda de custo nas mensalidades. Às paróquias São José do Belenzinho, Região Belém, na pessoa de Padre Márcio Leitão, e São Francisco de Assis, no Jaguaré, Região Lapa, na pessoa de Padre Flávio e Padre Edilberto. À Casa São Paulo, onde residi durante todo este tempo de estudo e pesquisa. Muito obrigado a todos pelo carinho da amizade e convivência.

Não poderia deixar de agradecer o carinho e a dedicação do Prof. Dr. Pe. Valeriano Santos Costa na orientação deste trabalho. Agradeço a todos que comigo vêm sonhando uma liturgia sólida, por meio da escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia e na vivência do Mistério Pascal de Cristo.

(5)

RESUMO

QUIRINO, Ademilson Tadeu. A escuta da Palavra de Deus proclamada na

liturgia: um desafio em “tempos líquidos”.

A presente pesquisa objetiva apresentar alguns elementos de profunda relevância para melhor compreender a importância da escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia, “em tempos líquidos”. Esta expressão, conceituada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman nas obras “Modernidade líquida” e “Tempos líquidos”, traduz um dos grandes desafios atuais para tornar satisfatória tal escuta. Numa perspectiva pedagógica, reflete-se, primeiramente, sobre a escuta como princípio litúrgico-operativo na pessoa humana, no sentido fisiológico e metafórico, até chegar ao Shemá Israel (Dt 4,6) e ao Fides ex auditu (Rm 10,17) paulino. Daí se abre caminho para ponderações acerca da Palavra de Deus escutada na liturgia, com fundamentação bíblico-teológica da escuta da Palavra de Deus na Lei, em algumas assembleias do povo de Israel, até chegar à compreensão da escuta da Palavra de Deus nas assembleias litúrgicas hoje, como incentiva o Concílio Ecumênico Vaticano II, nas Constituições Sacrosanctum Concilium e Dei Verbum, sem perder de vista alguns Padres da Igreja e o Magistério. Com base nisso, alguns desafios e luzes são apontados sobre a necessidade de uma cultura do ouvir, para que, no silêncio das palavras, a Palavra de Deus, proclamada na liturgia, tenha primazia e seja vivenciada de forma prática. Para isso, na sociedade moderna, em que se vive a cultura dos ruídos, deve-se privilegiar o espaço celebrativo como ambiente do silêncio e da escuta. Visa assim despertar no coração do ouvinte, por meio de gestos e palavras, a dimensão sacramental das Sagradas Escrituras na liturgia, numa perspectiva dinâmica, ritual, pedagógica, mistagógica e vivencial da Palavra, levando à sua plena eficácia.

Palavras-chave

(6)

A

BSTRACT

QUIRINO, Ademilson Tadeu. The listening to the word of God proclaimed in the

liturgy: a challenge in "liquid times”.

The present research aims to introduce some elements of deep relevance to better understand the importance of listening to the word of God proclaimed in the liturgy, "in liquid times". This expression, regarded by the Polish sociologist Zygmunt Bauman liquid Modernity and works While liquids, translates one of the great challenges to make satisfying about listening. A pedagogical perspective, is reflected, first, about the bug as liturgical principle operating in the human person-in physiological and metaphorical sense, until you reach the Shema Israel (Dt 4.6) and Fides ex auditu (Rm 10.17) paulino. Hence if paves the way for weights about the word of God heard in the liturgy, with biblical-theological grounds of listening to the word of God in the law, in some assemblies of the people of Israel, to the understanding of listening to the word of God in the liturgical assemblies today encourages the Ecumenical Council Vatican II, Sacrosanctum Concilium and constitutions Dei Verbum, without losing sight of some fathers of the Church and the Magisterium. On this basis, some challenges and lights are pointed to the need for a culture of listening, so that, in the silence of words, the word of God proclaimed in the liturgy, has primacy and be experienced in a practical way. For that, in modern society, in which live the culture of noises, you should focus on celebrating space as environment of silence and listening. Visa so awakening in the heart of the listener, through gestures and words, the sacramental dimension of Scripture in the liturgy, in a dynamic perspective, ritual, and experiential mystagogical pedagogical, leading to your full effectiveness.

Keywords

(7)

ABREVIATURAS

CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

DAp Documento de Aparecida

DV Dei Verbum

DD Dies Domini

EG Evangelii Gaudium

IGLH Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas

LS Laudato Si’

MS Mysterium Salutis

MND Mane Nobiscum Domine

PO Presbyterorum Ordinis

RICA Ritual de Iniciação Cristã de Adultos

SC Sacrosanctum Concilium

SCa Sacramentum Caritatis

(8)

S

UMÁRIO

ABREVIATURAS ... 7

INTRODUÇÃO ... 9

CAPÍTULO 1–A ESCUTA COMO PRINCÍPIO LITÚRGICO-OPERATIVO ... 12

Introdução ... 12

1.1 A escuta como princípio humano-operativo ... 13

1.1.1 A escuta em sentido fisiológico ... 14

1.1.2 A escuta em sentido metafórico ... 17

1.2 A escuta como metáfora do compromisso humano ... 19

1.3 A escuta como metáfora do compromisso com Deus e com o outro ... 21

1.3.1 O Shemá Israel (Dt 6,4) ... 25

1.3.2 O Fides ex auditu (Rm 10,17) ... 36

1.4 O Shemá Israel e o Fides ex auditu como fundamentos bíblico-teológicos para a escuta da Palavra de Deus e como princípios litúrgico-operativos ... 40

Conclusão ... 45

Referências bibliográficas do capítulo ... 46

CAPÍTULO 2–A ESCUTA DA PALAVRA DE DEUS PROCLAMADA NA LITURGIA ... 49

Introdução ... 49

2.1 Princípio litúrgico-operativo da escuta da Palavra de Deus na liturgia ... 50

2.1.1 A escuta do Livro da Lei nas grandes assembleias do povo de Israel ... 51

2.1.2 A escuta dominical da Palavra de Deus na liturgia ... 63

2.2 A escuta da Palavra de Deus nas catequeses litúrgico-mistagógicas ... 65

2.3 A Igreja é a casa da escuta da Palavra de Deus ... 69

2.4 A sacramentalidade da Palavra de Deus escutada na liturgia ... 70

2.4.1 A escuta da Palavra de Deus nas celebrações dos sacramentos ... 71

2.4.2 A escuta da Palavra de Deus na celebração da Liturgia das Horas ... 72

2.4.3 A escuta da Palavra de Deus nas celebrações dos sacramentais ... 73

2.4.4 A escuta da Palavra de Deus na celebração dominical fora da missa ... 74

2.4.5 A escuta da Palavra de Deus na Lectio Divina ... 75

2.5 A escuta conduz à participação “ativa, plena e frutuosa” dos fiéis na liturgia ... 76

2.5.1 A atitude do ministro e da assembleia litúrgica na escuta da Palavra de Deus ... 77

2.5.2 O ministro é o primeiro escutador da Palavra de Deus na liturgia ... 78

2.5.3 A escuta ritual da Palavra de Deus na liturgia ... 79

2.5.4 A proclamação da Palavra de Deus na liturgia ... 81

2.6 O silêncio na escuta da Palavra de Deus na liturgia ... 84

2.6.1 A importância do silêncio na escuta da Palavra de Deus ... 87

2.7 O Shemá Israel e o Fides ex auditu conduzem o fiel à vivência sólida da fé ... 87

Conclusão ... 88

Referências bibliográficas do capítulo ... 89

CAPÍTULO 3–OS “TEMPOS LÍQUIDOS” COMO DESAFIO PARA A ESCUTA DA PALAVRA DE DEUS NA LITURGIA ... 92

Introdução ... 92

3.1 Os “tempos líquidos” de Bauman e o desafio para a escuta... 92

3.2 “Tempos líquidos” no pensamento de Bauman ... 105

3.3 Desafio para o Shemá Israel e o Fides ex auditu na liturgia ... 109

3.4 Desafio para a escuta como princípio operativo-litúrgico nos dias atuais ... 118

Conclusão ... 129

Referências bibliográficas do capítulo ... 130

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 134

(9)

I

NTRODUÇÃO

Esta pesquisa, com o tema “A escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia: um desafio em tempos líquidos”, agrega-se ao Projeto de Pesquisa Liturgia em Tempos Líquidos, desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa Teologia Litúrgica, liderado pelo Prof. Dr. Pe. Valeriano dos Santos Costa.

O objetivo é apontar a escuta como princípio operativo da participação ativa e frutuosa na liturgia da Palavra, analisar as dificuldades de conseguir tal participação e buscar pistas para tornar prática a escuta da Palavra de Deus no contexto atual, definido por Zygmunt Bauman como “modernidade líquida”. Vale dizer que a base da questão é a mesma tanto para ministros como para fiéis, pois o ápice da participação “plena, ativa e consciente” na proclamação litúrgica da Palavra de Deus, anunciada no Antigo Testamento pelo Shemá

Israel (Dt 6,4) e intuída enquanto realização neotestamentária por Paulo pela expressão Fides ex auditu, acontece por meio da “escuta”; não uma escuta passiva, mas sim uma escuta

ativa, que conduz a uma práxis. Então, este trabalho busca elementos teológicos, sociológicos e pedagógicos em vista da formação sólida à escuta da Palavra de Deus em tempos em que a escuta é um dos maiores desafios culturais.

A escuta da Palavra de Deus proclamada na liturgia requer de quem a recebe uma experiência de fé viva, uma adesão do coração, uma acolhida de Deus que fala àquele que crê e escuta com amor cada palavra que vai caindo em seu coração, com a mesma necessidade da terra seca: “Como a chuva e neve que descem do céu e para lá não voltam sem terem regado a terra, tornando-a fecunda e fazendo-a germinar […] tal ocorre com a palavra que sai da minha boca […] realizando o objetivo da missão” (Is 55,10-11). A Palavra proclamada gera fé no coração daquele que a escuta e a acolhe: “Como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados?” (Rm 10,14-15).

É muito grande a importância das Sagradas Escrituras na celebração litúrgica. “Delas se extraem os textos para a leitura e a explicação na homilia e os salmos para cantar; do seu espírito e da sua inspiração nasceram orações, preces e hinos litúrgicos; dela tiram o seu

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10

significado, os sinais e ações”.1 Devido à importância da liturgia da Palavra, é urgente, em uma cultura modelada pela “modernidade líquida”, que desafia os relacionamentos humanos e a capacidade de concentração, o conhecimento e o amor à Palavra de Deus que a sustente na fé. A Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia, insiste que é necessário desenvolver “aquele suave e vivo amor pelas Sagradas Escrituras de que dá testemunho a venerável tradição dos ritos, quer orientais, quer ocidentais”.2

A escuta pede concentração e silêncio para poder se conectar com o mistério, com Deus. Um silêncio que leva à meditação e à contemplação da distância que separa o homem desse mistério e da obscuridade da transcendência. O cristianismo nasce do silêncio da Palavra que se fez carne para se revelar aos homens. A Igreja esteve sempre permeada de momentos de silêncio, sempre presente num mistério de revelação da própria Palavra de Cristo. Percebe-se que fazer silêncio, na liturgia hoje, é um grande desafio. São inúmeros os ruídos internos e externos que nos desconectam e que impedem as assembleias congregadas na fé a se conectarem com o mistério pascal celebrado, prejudicando a escuta. É desafio tanto para quem proclama como para quem ouve a Palavra proclamada.

Este trabalho pretende colaborar com a formação das comunidades congregadas em assembleias litúrgicas, para melhor escutar a Palavra de Deus. Nessas synaxis, o povo de Deus celebra com fé viva a Palavra proclamada na liturgia e acredita que, só através de uma escuta atenta e reverente da Palavra, é possível construir uma relação sólida com Deus, consigo mesmo e com o próximo. Será considerado o agravante atual para a escuta da Palavra em ambientes líquidos, por causa do consumo obsessivo que norteia a economia, a vida social e as mentes, colocando o ser humano numa crise sem precedentes, o que, em última instância, é uma crise de amor e de relações humanas. Bauman afirma, em seu livro

O amor líquido, a fragilidade dos laços humanos: “Há bases bastante sólidas para ver o amor,

e em particular a condição de ‘apaixonado’, como – quase por sua própria natureza – uma condição recorrente, passível de repetição, que inclusive nos convida a seguidas tentativas”. Portanto, o Capítulo 1 desenvolverá uma reflexão sobre a escuta como princípio litúrgico-operativo, num caminho de argumentação crescente que parte da fisiologia, passa pela dimensão metafórica, até chegar ao Shemá Israel e ao Fides ex auditu paulino, como base bíblica para a teologia litúrgica da escuta.

1 SC, n. 24.

(11)

11

O Capítulo 2 abordará elementos fundamentais da escuta da Palavra de Deus na liturgia, a partir da fundamentação da teologia litúrgica na proclamação da Palavra, que confrontará os desafios dos tempos líquidos, geradores de desconexão e ruídos na ritualidade do Mistério Pascal de Cristo, celebrado no Rito da Palavra, com a solidez do mesmo.

O Capítulo 3 adentrará o pensamento de Bauman sobre “os tempos líquidos”, acentuando as dificuldades que hoje, mais do que nunca, se enfrentam para a cultura da escuta, do ouvir com atenção, como contempla o Capítulo 1, no sentido físico, metafórico e bíblico. Portanto, serão levantados os desafios e as pistas de ação para serem enfrentados e trabalhados na formação litúrgica.

Neste sentido, o caminho é a Palavra Deus revelada nas Sagradas Escrituras e na Tradição judaico-cristã que o Magistério da Igreja interpreta autenticamente.3 Assim sendo, a Tradição e o Magistério ficam de tal modo unidos que um não pode ser compreendido sem o outro. As Sagradas Escrituras são veneradas pela Igreja como se venera o Corpo do Senhor. A pregação da Igreja e a própria religião cristã são alimentadas e guiadas pelas Escrituras. É pela força da Palavra de Deus, revelada nas Sagradas Escrituras, que a Igreja encontra o seu apoio e gera a solidez da fé para os seus filhos, alimento da alma e fonte pura e perene de vida espiritual.4 A Teologia, ao investigar e escutar a Palavra de Deus à luz da fé, se rejuvenesce sem cessar e continua a beber da fonte inesgotável do Mistério que é Cristo, proclamado na escuta das Escrituras na liturgia.

Percebe-se que a linha de reflexão da pesquisa será sempre num sentido dialógico, na perspectiva da escuta do povo de Israel, de sua aliança feita com o Senhor na escuta da leitura da Lei, que os colocava sempre a caminho. Assim será com os seguidores de Cristo. Ele é a Lei e os Profetas. É nele que se configura a assembleia da nova e eterna Aliança. Escutar a Palavra de Deus proclamada na liturgia é escutar Cristo. Na escuta do Cristo presente na comunidade pela Palavra proclamada atualiza-se sempre a sua aliança com a assembleia reunida na participação plena, consciente, ativa e frutuosa da Palavra escutada na liturgia.

3 Cf. DV, n. 9-10.

(12)

C

APÍTULO

1

A

ESCUTA COMO PRINCÍPIO LITÚRGICO

-

OPERATIVO

Introdução

No Documento de Aparecida, Capítulo 3, os bispos da América Latina e do Caribe afirmaram que, como Discípulos de Jesus, reconhecem que Ele é o primeiro e maior evangelizador enviado por Deus (Lc 4,44); ao mesmo tempo, pelo Evangelho de Deus (Rm 1,3), cremos e anunciamos a Boa-Nova de Jesus, Messias, Filho de Deus (Mc 1,1). E como filhos obedientes à voz do Pai, queremos escutar a Jesus (Lc 9,35), porque Ele é o único Mestre (Mt 23,8).1 Igualmente às primeiras comunidades cristãs, hoje os cristãos se reúnem assiduamente para escutar as Sagradas Escrituras e delas se nutrir.2 O poder do Espírito Santo e da Palavra de Deus contagia e leva as pessoas a escutarem Jesus Cristo, a crer nele como seu Salvador, a reconhecê-lo como Senhor da sua vida e a seguir seus passos na dinâmica da ação missionária.3 As pequenas comunidades são ambientes propícios para escutar a Palavra de Deus, viver a fraternidade, animar-se na oração, aprofundar processos de formação na fé e fortalecer o exigente compromisso de ser apóstolos na sociedade de hoje. Anunciar Jesus ao outro requer uma escuta autêntica e obediente.4

Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-sinodal Verbum Domini, referindo-se aos padres sinodais, afirma que eles insistiram no valor do silêncio para a recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis e na necessidade de educá-los para o valor do silêncio. Redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na vida da Igreja significa redescobrir o sentido do recolhimento e da tranquilidade interior. É no silêncio que a Palavra de Deus encontra morada na vida da pessoa, como aconteceu com Maria de Nazaré, mulher silenciosa. A liturgia deve facilitar essa escuta autêntica e silenciosa como parte integrante da celebração.5

Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco incentiva o pregador da Palavra de Deus a ser o primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com as Sagradas Escrituras. Não basta conhecer o contexto literário e exegético; é necessário

1 Cf. DAp. n. 103. 2 Cf. DAp. n. 103. 3 Cf. DAp. n. 279. 4 Cf. DAp. n. 308. 5 Cf. VD, n. 308.

(13)

13 aproximar-se da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de que ela penetre fundo os pensamentos e os sentimentos e gere no pregador uma nova mentalidade.6

Portanto, é urgente uma reflexão que estimule a cultura do ouvir e ajude no alargamento de novos horizontes do conhecimento no processo da escuta como princípio humano-operativo, no sentido fisiológico e metafórico, até chegar ao Shemá Israel e ao Fides ex auditu como fundamentos bíblico-teológicos para a escuta da Palavra de Deus, enquanto princípio litúrgico. É o que propõe este primeiro capítulo, como uma reflexão sempre aberta para o diálogo com o mundo contemporâneo.

1.1 A escuta como princípio humano-operativo

Segundo Márquez-Fernández, “a vida compõe-se de consciência, pensamento, forma material e corporal. Por meio dos sentidos do corpo, a pessoa percebe a realidade que a transforma e por sua vez retransforma”.7 O que está ao redor é captado pelos cinco sentidos:

visão, audição, tato, olfato e gosto. A correlação dos sentidos com a experiência da vida é necessariamente existencial e sensível. Por ela, a percepção humana da realidade é uma experiência produzida pela consciência por meio dos sentidos, que incide sobre o pensamento reflexivo, e uma experiência subjetiva, que resulta dos atos intencionais do homem com a finalidade de dotar com significação cognitiva as práticas linguísticas.8

O homem cria um mundo de interações no qual o sentido de sua prática sensível e cognitiva se transforma em sistema de relações semióticas. Tal sistema permite compreender, na sua pragmática, a realidade como um conjunto complexo de sistemas de interpretação linguística, que se reorganiza através de diversos códigos que podem responder aos múltiplos sentidos de sua materialidade corporal e de sua abstração racional. Por outro lado, o homem está situado no mundo das sensações por meio da linguagem do corpo, apesar de reprimido pelas normas sociais que impedem a livre manifestação de seus signos. Perde sua capacidade de pensar e de se expressar. Necessita, então, recuperar os sentidos do corpo para ampliar os acessos da interpretação sensorial e a consciência dos sentidos da fala.9

O corpo da palavra e as palavras do corpo efetivam a correlação entre estes dois mundos, percepção e sensação, sentido e existência. O imperativo é descobrir o conteúdo expressivo do

6 Cf. EG, n. 149.

7 MÁRQUEZ-FERNÁNDEZ, Álvaro B. Pensar com os sentimentos: razão, escuta, diálogo, corpo e liberdade. Nova Petrópolis: Nova Harmonia/Única, 2014. p. 62.

8 Cf. ibid., p. 62. 9 Cf. ibid., p. 62-63.

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14 corpo e da palavra, sobretudo, o conteúdo da consciência intencional que subjaz em cada pessoa e a consciência objetiva e subjetiva de uns e outros, para construir conceitos e metáforas da realidade. Esta tarefa de aprendizagem responde a todo um projeto filosófico de vida, ou melhor, um modo de ser que reconheça no corpo e na palavra uma experiência de pensamento sensível e racional.10

1.1.1 A escuta em sentido fisiológico

O processo fisiológico da escuta passa pelos órgãos sensoriais da audição. O ouvido é um órgão que percebe não apenas estímulos sonoros, mas também estímulos provocados por alterações da posição da cabeça no espaço.11 O órgão vestíbulo-coclear (orelha, do latim

aurícula, estado acústico ou ouvido) é o órgão da audição e do equilíbrio. Ele é responsável

pela captação de vibrações dos sons e transforma-os em impulsos nervosos que o cérebro codifica. O ouvido compõe-se de três partes: ouvido externo, médio e interno.

O ouvido externo consiste no pavilhão (orelha), meato acústico externo (espaço do pavilhão até a membrana timpânica) e membrana do tímpano. As ondas sonoras, captadas pelo pavilhão, seguem pelo meato acústico externo até a membrana do tímpano, situado entre o ouvido externo e o médio. Serve para estabelecer comunicação entre o mecanismo auditivo. A membrana timpânica, que se encontra na porção fina do conduto auditivo externo, separando-o dseparando-o separando-ouvidseparando-o médiseparando-o, tem a fseparando-orma de um cseparando-one cujseparando-o ápice está vseparando-oltadseparando-o para dentrseparando-o dseparando-o separando-ouvidseparando-o e ocupa a maior área. Está fixada à parte do conduto auditivo externo por um anel de tecido fibroso flácido, denominado anel timpânico.12 “A membrana timpânica é a estrutura que transmite as ondas sonoras para os ossículos do ouvido médio.”13

Já ouvido médio é uma pequena cavidade cheia de ar e separada do ouvido externo pela membrana do tímpano. O princípio da audição repousa na utilização de estímulos sonoros que fazem vibrar a membrana do tímpano e dão início aos impulsos nervosos, que devem ser conduzidos pela porção coclear do nervo vestíbulo coclear até as áreas auditivas do cérebro. Entre a membrana do tímpano e o nervo existe a cavidade do tímpano e a parte do osso temporal. Para que o estímulo cruze o ouvido médio, estende-se através dele uma cadeia de minúsculos

10 Cf. ibid., p. 63.

11 Cf. DANGELO, José Geraldo; FATTINI, Carlo Américo. Anatomia humana básica. Rio de Janeiro: Atheneu, 2015. p. 167.

12 Cf. RUSSO, Iêda C. Pacheco; DOS SANTOS, Teresa M. Momensohn. A prática da audiologia clínica. São Paulo: Cortez, 1993. p. 16-17.

13 MELDAU, Débora Carvalho. Ouvido. Disponível em: <http://www.infoescola.com/audição/ouvido>. Acesso em: 19 maio 2016.

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15 ossos denominados ossículos do ouvido (martelo, bigorna e estribo), que se articulam entre si. As vibrações da membrana do tímpano são transmitidas pelos ossículos do ouvido à base do estribo e dela para o ouvido interno. A tensão da cadeia de ossículos do ouvido é controlada por dois músculos: o músculo tensor do tímpano e o músculo estapédio. Vale lembrar que o ouvido médio comunica-se com a faringe através da tumba auditiva; essa comunicação permite estabelecer igualdade de pressão atmosférica em ambas as faces da membrana do tímpano, condição essencial para o seu bom funcionamento.14

O ouvido interno situa-se na parte petrosa do osso temporal e tem uma forma complicada. Por essa razão, é denominado labirinto. Na verdade, há dois labirintos: o labirinto ósseo e o membranoso. O labirinto ósseo compõe-se de três partes: a cóclea, o vestíbulo e os canais semicirculares. A cóclea apresenta-se como uma espiral em torno de um eixo, o modíolo. O vestíbulo é uma cavidade oval situada entre a cóclea e os canais semicirculares, apresentando duas vesículas membranosas – o sáculo e o utrículo. Os canais semicirculares são três tubos ósseos interconectados e cheios de líquidos, dispostos de tal modo a ocupar os três planos geométricos, formando entre si ângulos de cerca de 90º. As vibrações transmitidas pelos ossículos propagam-se pelo labirinto membranoso e chegam aos impulsos nervosos, provocando ondas sonoras através de fibras cocleares do núcleo coclear, em direção a núcleos situados na ponte, de onde, por cadeias de neurônios, são levados ao córtex auditivo do cérebro, localizado no lobo temporal.15

O mecanismo de equilíbrio do ouvido é outra parte importante do ouvido interno, chamado de sistema vestibular. Sua função é registrar o movimento do corpo e conservar o seu equilíbrio. Seu formato de anel consiste em três partes diferentes com três superfícies, as quais são cheias de um líquido que se move conforme os movimentos do corpo. Elas contêm milhares de fibras ciliadas, que reagem ao movimento do líquido, enviando pequenos impulsos para o cérebro. Este, por sua vez, decodifica esses impulsos para conservar o equilíbrio do corpo.16

A fisiologia da audição depende da adequada conversão da atividade vibratória do som no ar, em atividade dinâmica nos núcleos cocleares. Estudos apontam que o pavilhão auricular tem papel importante na localização da fonte sonora. Ele capta as ondas sonoras que serão conduzidas para o conduto auditivo externo. Quando o fluxo de energia sonora incide sobre a

14 Cf. DANGELO, José Geraldo; FATTINI, Carlo Américo. Op. cit., p. 167-168. 15 Cf. ibid., p. 168.

16 Cf. HEAR IT [O ouvido interno]. Disponível em: <http:www.hear-it.org/pt/o-ouvido-interno>. Acesso em: 19 maio 2016.

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16 membrana timpânica, faz com que esta vibre com o mesmo padrão de vibração do estímulo sonoro. Com a saída da membrana timpânica de sua posição de equilíbrio, ocorre a movimentação da cadeia ossicular, que está ligada a ela pelo cabo do martelo. Esse movimento vibratório é idêntico ao do estímulo sonoro.17

O ouvido médio é exatamente o recurso criado pela natureza para transformar a energia vibratória aérea em energia vibratória no meio líquido. Sem a perda de suas características físicas, é capaz de transformar uma energia em outra sem perder suas características e qualidades. Por esse motivo, o ouvido médio recebe o nome de transformador mecânico. A vibração da cadeia ossicular permite o deslocamento de ondas mecânicas dentro dos líquidos do ouvido interno. Esse deslocamento provoca a movimentação de todo o ducto coclear. Sabe-se também que a estrutura do ouvido interno pode Sabe-ser feita por meio das vibrações que a energia sonora provoca nos ossos do corpo humano, particularmente nos ossos do crânio.18

Portanto, a fisiologia do ouvido requer uma ginástica permanente para se afinar como instrumento musical. O que interessa é dispor-se dos sentidos físicos do corpo com um nível de destreza e domínio, para valer-se dele e sentir a manifestação natural e cultural do mundo. Para tanto, é preciso servir-se do uso físico dos aparatos auditivos para escutar o que é sonoro no mundo. O ouvido humano não é igualmente sensível a todos os tons. Ele é mais sensível a tons cuja frequência oscila entre 20 e 20 mil ciclos por segundos (cps). As ondas sonoras penetram pelo canal auditivo e atingem a membrana timpânica, que passa a vibrar na mesma frequência que a fonte sonora.19

Por meio do sistema auditivo, muitos objetos e elementos podem ser identificados. O cérebro extrai informações sobre a localização da fonte sonora do espaço. Os órgãos sensoriais da visão e audição captam as informações simetricamente localizadas na cabeça. Quando se olha uma pessoa que está falando, a discrepância de ver com os dois olhos e ouvir com os dois ouvidos é mínima. A intensidade do som fornece a informação sobre a distância em que se encontra uma fonte sonora conhecida. A audição é apenas um aspecto da complexa percepção espacial do ser humano.20

Para Baitello Junior, em “A era da iconofagia”, falando sobre a cultura do ouvir, ao se considerarem as características físicas do som, constata-se que a recepção de todo som se dá

17 Cf. RUSSO, Iêda C. Pacheco; DOS SANTOS, Teresa M. Momensohn. Op. cit., p. 36-37. 18 Cf. ibid., p. 37-41.

19 Cf. SIMÕES, Edda A. Quirino; TIEDEMANN, Klaus B. Psicologia da percepção. São Paulo: EPU, 1985. p. 22.

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17 não apenas por um pedaço pequeno da pele chamado tímpano, mas por toda a pele. Portanto, a audição é uma operação corporal e não apenas pontual. Som é vibração. E a vibração opera sobre a pele. Pode-se dizer que toda voz e todo som são um tipo de massagem, uma estimulação tátil, uma sutil forma de toque.21 Esse autor salienta ainda “a necessidade de uma nova cultura do ouvir e de um novo desenvolvimento da percepção humana para relações e nexos mais profundos, para os sentidos e para sentir”.22

No entanto, o barulho, principalmente nos grandes centros, é intenso e crescente. Pesquisas com seres humanos e animais mostram as consequências dessa poluição sonora para a saúde física e mental. No ser humano, a poluição sonora é responsável por distúrbios circulatórios, gástricos e perda da audição. A saúde mental pode ser afetada quando o indivíduo não consegue dormir o número mínimo de horas necessárias para o repouso adequado, ou quando a poluição sonora o impede de raciocinar, dificultando a execução de tarefas que exigem concentração. Disso pode resultar um elevado grau de ansiedade que dificulta o ajustamento do sujeito ao seu ambiente.23

1.1.2 A escuta em sentido metafórico

Uma definição do escutar e do ouvir faz-se necessária para compreender o sentido metafórico da escuta. Do ponto de vista de Cerqueira, existe uma diferença relevante entre o escutar e o ouvir. Ouvir está relacionado aos cinco sentidos – audição, tato, gosto, visão e olfato. O ouvir relaciona-se ao que é dito, restrito a simples audição do que é falado. O escutar exige percepção, sensibilidade de compreensão para aquilo que fica no íntimo do sujeito. Enquanto a audição se refere à captação dos sons, a escuta diz respeito à captação das sensações do outro, realizando a integração ouvir-ver-sentir.24

O ouvido permite aprender a dialogar com o receptor por meio da escuta do outro. A natureza primária da palavra com seu eco seria a escuta de si mesmo e do outro. A palavra é a voz que convoca o outro para compartilhar e sentir o que se transmite em sua fala. É esse encontro que torna possível a alteridade da palavra com o outro que a escuta. O reconhecimento dos códigos de cada palavra escutada pode recriar o sentido da palavra e suas significações. O significado das palavras para quem as escuta sempre está aberto para deliberações sobre aquilo

21 Cf. JUNIOR, Norval Baitello. A era da iconofagia: reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014. p. 142.

22 Ibid., p. 146.

23 Cf. SIMÕES, Edda A. Quirino; TIEDEMANN, Klaus B. Op. cit., p. 24.

24 Cf. CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira (org.). (Con)Textos em escuta sensível. Brasília: Thesaurus, 2011. p. 17.

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18 que elas expressam e comunicam. Elas gestam uma reciprocidade que serve de autorreferência e contexto significativo. A escuta da palavra é a principal manifestação da consciência racional e sensível.25

A palavra, na sua origem, é verbal; a não verbal é uma metapalavra encarnada nos signos dos gestos corporais ou pelos artifícios da escrita. A palavra do diálogo é a da escuta. A imagem das palavras presente na voz é um metassentido carregado pelas palavras. Ela requer um auditório, necessita de audiência dos que escutam o que se fala. Esse domínio no campo da escuta, em que as palavras faladas situam as pessoas, outorga maior cuidado para enriquecer com sua polifonia. O ato fônico da palavra é o código tonal que resulta da consciência auditiva que se recupera na escuta do outro. É um pensar que se manifesta no mundo por meio de uma voz que se declara sempre expectante, pragmática e mediadora. Ela transforma a linguagem decodificada pela escuta.26

O sujeito expressa-se de variadas formas. Ele pode ser entendido até por meio do silêncio. Cabe ao observador a sensível percepção para compreendê-lo na sua completude e complexidade. O silêncio é uma das grandes formas de expressão. A linguagem silenciosa possibilita a percepção das ações subjetivas do indivíduo. O sujeito é composto de características objetivas e subjetivas. A objetiva é mais fácil de ser identificada e reconhecida; já a subjetiva tem traços que necessitam de maior sensibilidade para que possa ser descoberta. O homem permanecerá para sempre um ser dividido entre o silêncio e a palavra. Somente a escuta do pesquisador poderá penetrar e captar os significados do não dito. É necessário que a pessoa que se dispõe a escutar silencie a sua alma para perceber aquilo que não foi dito em palavras, mas por gestos ou outra forma de expressão.27

A escuta é um processo fundamental nas relações interpessoais. Ela propicia uma maior aproximação dos sujeitos que se relacionam. Proporciona o reconhecimento do outro, a aceitação, a confiança de quem escuta.28

A arte da escuta promove um clima de graça que envolve pessoas num processo de interlocução amorosa, de mudança de quem fala e de quem escuta. Percebe-se a necessidade de repensar o processo de escuta pessoal no processo de escuta do outro. Escutar a si mesmo é um exercício que traz à memória a voz de Deus que fala, consola, confronta e encoraja cada pessoa.

25 Cf. MÁRQUEZ-FERNÁNDEZ, Álvaro B. Op. cit., p. 64-66. 26 Cf. ibid., p. 66-69.

27 Cf. CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. Op. cit., p. 18. 28 Cf. ibid., p. 20-21.

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19 Ser intérprete da voz de Deus é uma tarefa árdua. A primeira condição da verdadeira escuta é o silêncio: um silêncio de abertura, que concede a prioridade ao outro e estabelece o diálogo e a comunhão.29

1.2 A escuta como metáfora do compromisso humano

Escutar é a ação de receber o outro sem prejulgamentos, o que exige do ouvinte um exercício profundo da escuta para não fazer interpretações errôneas. Percebe-se que o ato de escutar o outro significa esvaziar-se de si mesmo para poder reconhecer o outro na sua singularidade. O ouvinte faz a experiência de sair de si para compreender o outro e realiza um movimento de compreensão, sem adesão ou identificação ao que é dito ou feito. É um ato complexo porque o ser humano, no contexto em que vive, não consegue ser tão generoso com o outro. Há uma dificuldade em se comprometer com o outro na sociedade de hoje, o que dificulta a escuta.30

Para Cerqueira, “a beleza da aproximação do eu com o outro, de compreensão desse sujeito que nos fala, que fala querendo ser escutado, foi perdida, já não se enxerga beleza no silêncio”.31 O individualismo impede essa interação com o outro na sua singularidade.

Esquece-se de que a pessoa humana é formada por parte de um todo. Querer compreender apenas parte do outro é o mesmo que dizer que ele não é sujeito de seu contexto. A pessoa que se propõe a escutar o outro é receptiva, está disposta a acolhê-lo na sua singularidade. É um processo de relação interpessoal. Propicia a aproximação do sujeito, do outro, que se relaciona e escuta. Estabelece confiança mútua entre quem fala e quem escuta. A escuta é uma das pontes que permitem a aproximação do sujeito e estabelece a confiança para as relações interpessoais entre quem fala para ser escutado e quem se permite escutar.32

O corre-corre do homem moderno o impede de estar com o outro. Os afazeres do trabalho, a academia, a faculdade etc. acabam se resumindo em uma conversa rápida sem muito nexo na hora do almoço, isto quando não se fala dos estresses do trabalho. Nesse contexto o espaço para relações interpessoais fica sem prioridade. As novidades do século XXI, com as inovações tecnológicas, estabelecem um modelo de relação virtual que distancia o próximo e aproxima os distantes de forma superficial. Sendo assim, esse novo modelo de se relacionar

29 Cf. PAULA, Blanches de (org.). A escuta libertadora: temas emergentes para o Aconselhamento Pastoral. Belo Horizonte: Filhos da Graça, 2013. p. 15-17.

30 Cf. CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. Op. cit., p. 18-19. 31 Ibid., p. 19.

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20 com o “outro virtual” acaba substituindo o momento de estar com os amigos, com a namorada(o), com alguém importante, porque a falta de contato já foi suprida através das redes tecnológicas virtuais.33

Para o teólogo jesuíta Spadaro, o conceito de amizade que se faz nas redes sociais, com o desenvolvimento da Web 2.0, ajuda a entender como as relações entre as pessoas se encontram no centro do sistema e da troca de conteúdos, aparecendo cada vez mais fortemente ligadas a quem os produz ou assinala. Daí, então, o ressurgimento vigoroso dos conceitos de pessoa, autor, relação, amizade, intimidade etc. Nesse contexto surge a necessidade de compreender bem o conceito de “próximo”, que se modifica e se desenvolve na rede de amigos. A necessidade de conhecer e de se fazer conhecer é uma coisa “séria” que deve, porém, ser equilibrada devido ao risco de se confundir relações superficiais com amizade, comunicação de si mesmo com exibicionismo, vontade de conhecer com voyeurismo.34

Segundo Spadaro, todas as plataformas de redes sociais são em seu conjunto uma ajuda potencial para as relações, mas também uma ameaça. Ele afirma que seria muito triste se o desejo de sustentar e desenvolver amizades on-line se desse à custa da disponibilidade para as relações cara a cara no próprio mundo cotidiano, composto de encontros no contexto da vida “real”: com a família, os amigos, os vizinhos, aqueles que se encontram no dia a dia, no local de trabalho, na escola, no tempo livre. Desse modo, as redes de contatos sociais podem ser um perigo e interromper a interação social real, tornando-se sempre um desafio para as relações humanas. Como fato e realidade, as redes sociais exigem de cada pessoa um amadurecimento para uma integração salutar entre a vida cotidiana e as potencialidades proporcionadas pelo ambiente “virtual”. Sem maturidade antropológica e afetiva não há comunicação real entre as pessoas, e as redes serão uma fuga para o vazio existencial. Spadaro conclui dizendo que a “internet não deve ser configurada como um substituto alienante da realidade, mas como um local capaz de incrementar a vida comum com potencialidade e, portanto, também os relacionamentos. O desafio bastante exigente está aí”.35

Percebe-se, mediante os desafios apresentados, que a nova geração “perdeu a vontade de estar junto, de estar com o outro, de escutar o outro. Dessa forma, as relações humanas ficam fragilizadas, e, se já não há tempo para estar junto, muito menos haverá disposição para

33 Cf. ibid., p. 20-21.

34 Cf. SPADARO, Antonio. Web 2.0: redes sociais. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 7. 35 Cf. ibid., p. 8.

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21 escutar”.36 Porque escutar exige sensibilidade. O escutar não se limita ao campo da fala, mas

busca perscrutar o mundo interpessoal que constitui a subjetividade humana para cartografar o movimento da força da vida que engendra a sua singularidade. Trata-se de captar o que não foi dito, mas que foi compreendido, percebido pelo ouvinte. Em contrapartida o ouvinte faz o mesmo processo de captação e compreensão em sua totalidade.37

Esse movimento de escuta se apoia na empatia, que reconhece e aceita o outro com seus defeitos e qualidades, complexidades e simplicidades. Não é mera interpretação de fatos e situações, ao contrário, é busca de compreensão do outro para poder imaginar a situação pela qual ele passa, e assim aproximar-se dele. Entender o outro, por meio de percepções e sentimentos, reconhecer seus medos e fragilidades, capacidades e limitações é o que leva à sua aceitação incondicional. A escuta exige humanização das relações. Este é um princípio fundamental. Quem tem uma prática humanizada dificilmente vai ter uma postura insensível e intempestiva. Isso facilita o espaço para as ações solidárias, o espaço para estar disponível ao outro num simples gesto de escutar. O que consequentemente ocasiona uma prática diferenciada, proporcionando a sensação de acolhimento.38

Aquele que escuta não perde o direito de discordar, pois exerce a capacidade de respeitar a opinião do outro que pensa e se expressa diferente. O ouvinte, da mesma forma, faz uso de uma escuta positiva no sentido de não impor uma opinião ou postura autoritária em relação ao que se fala a ele. Esta é uma tarefa difícil, compreender o outro dentro do contexto dele, e não com interpretação pessoal. Nesse contexto, a disciplina do silêncio, assumida pela pessoa que escuta, é uma condição sine qua non para estabelecer uma interação dialógica.39

1.3 A escuta como metáfora do compromisso com Deus e com o outro

No sistema auditivo, como já mencionado anteriormente, orelhas/ouvidos são como antenas táteis e representam mais do que a capacidade de ouvir e perceber sons; eles respondem fisicamente pelo sentido da audição. Têm a importante função de manter o equilíbrio e o sentido espacial da pessoa. Os ouvidos, simbolicamente, estão associados à capacidade de escuta mística, interior, vibracional da pessoa, à inteligência cósmica, à capacidade de situar-se no

36 CERQUEIRA, Teresa Cristina Siqueira. Op. cit., p. 21. 37 Cf. ibid., p. 22.

38 Cf. ibid., p. 22-23. 39 Cf. ibid., p. 26.

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22 espaço e no universo.40 Santo Ambrósio de Milão, no século IV, ao falar da importância da função da audição humana, diz que é uma graça quase igual à visão.

Quando se refere às orelhas, Ambrósio diz que elas são mais salientes para captar tudo quanto escorre da cabeça, cerume ou líquido, e que a voz repercutida em suas cavidades entra na sinuosidade interna sem perturbação. Caso contrário, ficaríamos atordoados ou ensurdecidos com qualquer barulho mais forte. Segundo ele, “as orelhas estendem uma espécie de trincheira contra a aspereza do frio e a intensidade do calor, de modo que nem o frio penetre nos canais abertos, nem os esquente um calor excessivo”.41 E continua escrevendo:

Por sua vez, a sinuosidade interna das orelhas é responsável por certa medida e disciplina musicais, pois através da curvatura das orelhas é produzido um certo ritmo e o som da voz que nelas entrou é como que transformado em melodias. Além disso, o próprio uso das orelhas nos ensina que as curvas são fiéis receptores da palavra, pois nas concavidades das montanhas, no recesso das grutas ou nas curvas dos rios se escuta uma voz mais doce, que ecoa em suas respostas. Até mesmo o cerume das orelhas tem sua utilidade, porque liga os sons, tornando mais fiel em nós sua lembrança e graça.42

Como podemos notar, Ambrósio de Milão dá um sentido novo, de transcendência, para a audição, que é a dimensão espiritual da escuta. Por meio da escuta, a pessoa se compromete com o Senhor da vida no cuidado de si e do outro (frágil), de maneira integral, vivendo com alegria e autenticidade, testemunhando com a prática o que se apreende pela escuta.43 Nesse contexto, o homem é chamado a “escutar-se” para escutá-Lo. Escutar o meio onde está situado para poder se comunicar melhor com o outro. O seu interagir com o outro é reflexo do modo como se relaciona e se comunica consigo mesmo.44 Neste ponto, a compreensão espiritual da palavra orelha na Bíblia é muito importante.

A palavra “orelha” na Bíblia, ozen em hebraico, aparece aproximadamente 100 vezes, e em grego, Ευρυδίκη (tradução literal de Eurydíkē), aparece 108 vezes.45 O ouvir é combinado muitas vezes com expressões como: prestar ouvidos, endurecer os ouvidos, inclinar ouvidos, dar ouvidos etc. As orelhas são uma abertura fecunda para perceber os sons inaudíveis do Mistério, um receptor da luz auricular.46 Elas dão acesso a uma obediência, palavra que

traduzida literalmente do grego hypakouein significa “prestar escuta”, no sentido de executar

40 Cf. MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Corpo, território do sagrado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 209. 41 AMBRÓSIO, Santo. Examerão: os seis dias da criação. São Paulo: Paulus, 2009. p. 270-271.

42 Ibid., p. 271. 43 Cf. LS, n. 10-11. 44 Cf. LS, n. 11.

45 Cf. MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Op. cit., p. 210. 46 Cf. ibid.

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23 aquilo que se escutou,47 diferentemente da servidão. É o órgão da compreensão interior profunda. Representa a obediência à palavra divina por ter ouvido a Palavra, no sentido pleno da compreensão e da aceitação.48

Na tradição cristã, Maria concebe livremente o Messias por meio da escuta. Esse vínculo entre escuta e Verbo atravessa todo o texto bíblico. Maria é um arquétipo neotestamentário da escuta. Porque, ao ouvir o anúncio do Anjo e não entendê-lo de pronto, pergunta o que aconteceria com o que acabara de ouvir e, após a explicação do Anjo, ela responde: “Faça-se em mim conforme a tua palavra” (Lc 1,26-38). Maria, grávida da Palavra, imediatamente se põe a caminho para servir sua prima Isabel, que também está grávida e tem idade avançada. Ela simboliza os que escutam e praticam a Palavra de Deus.

O texto lucano diz que, certa vez, enquanto Jesus pregava, uma mulher levantou a voz e disse-lhe: “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!” (Lc 11,27). A resposta de Jesus àquela mulher é: “Felizes, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a observam” (Lc 11,28). Trata-se de uma escuta que leva o ouvinte à práxis (Lc 8,21), pois pode haver uma escuta sem práxis: “Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que pratica a vontade do meu Pai que está nos céus” (Mt 7,21). Jesus ainda reclama daqueles que o chamam de mestre mas não fazem o que ele manda (Lc 6,46).

Maria é a figura daqueles que, pela escuta da Palavra, se colocam à disposição de Deus na liberdade da obediência: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).49 A obediência a Deus leva Israel à libertação. A prece judaica Shemá Israel, rezada pelo povo judeu, expressa o treinamento da vontade, do desejo e da consciência a uma unidade primária, ao estado de Infinito. Maria é a figura do novo Israel do Segundo Testamento que escuta a Palavra de Deus e a põe em prática. Maria compreendeu o que significa o Shemá! Ela escutou e amou com todo o coração, a alma e a força.

Como escreve Santo Agostinho, ao povo de Israel foi dito, pela voz divina dirigida a Moisés: “Escuta Israel, o Senhor teu Deus é o único Senhor” (Dt 6,4). Continua agostinho: quem poderá dizer que Cristo e os cristão não pertencem a Israel e Israel seja neto de Abraão? Abrão o primeiro a receber a promessa já mencionada, “por tua posteridade serão abençoadas todos as nações da terra, porque tu me obedeceste” (Gn 22,18; 26,4; 28,14). A mesma promessa se repetiu a Isaac e a Israel. Vê-se também que tal promessa realizou-se em Cristo, posto que

47 Cf. CANTALAMESSA, Raniero. O mistério da Palavra de Deus. São Paulo: Canção Nova, 2014. p. 109. 48 Cf. MIRANDA, Evaristo. Op. cit., p. 210-211.

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24 também da mesma promessa nasceu aquela Virgem da qual o profeta do povo de Israel e do próprio Deus de Israel cantou, ao dizer: “Eis que a jovem está grávida e dará à luz um filho e dar-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14). O que significa “Deus está conosco” (Mt 1,23). Santo Agostinho diz: “O Anjo traz a mensagem. A Virgem escuta, crê e concebe. Na alma, a fé; no seio, cristo”.50

Maria tornou-se mais feliz recebendo a fé de Cristo do que concebendo Cristo na carne. Certa vez, quando Jesus estava falando, uma mulher levantou a voz do meio da multidão e lhe disse: “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram!” (Lc 11,27). Jesus respondeu a essa mulher: “Felizes antes os que ouvem a Palavra de Deus e a observa” (Lc 11,28). Para Santo Agostinho, de nada haveria aproveitado as entranhas e os seios maternos de Maria, se ela não tivesse sido mais feliz por ter trazido Cristo em seu coração do que em sua carne.51 Portanto, Maria é feliz porque ouviu e guardou a Palavra de Deus. Guardou a Verdade na mente mais do que em seu seio. Cristo é Verdade. Cristo é carne. Cristo-Verdade esteve na mente de Maria. Cristo-carne, no seio de Maria. O que está na mente é maior do que o trazido no seio.52

Maria, ao fazer a vontade de Deus, é corporalmente não só a mãe de Cristo mas também espiritualmente a sua mãe e irmã (Mt 12,50). Santo Agostinho diz que todos são membros de Cristo e Corpo de Cristo por participarem da família de Jesus. Como escreve o evangelista: “Aqui estão minha mãe, e meus irmãos, porque aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mt 12,49). Ao relacionar a Mãe Igreja a Maria, na sua maternidade, Agostinho afirma: “A Mãe Igreja! Esta santa e honrada mãe, semelhantemente a Maria, dá a luz e é virgem!”. Ele convoca os cristãos membros de Cristo a procriarem em espírito, imitando Maria, que deu à luz em seu ventre, e levando o batismo a quantos for possível, para que, como filhos nascidos da graça do batismo, sejam também mães de Cristo, cooperando com o nascimento espiritual de muitos, pelo batismo.53

Vale ressaltar também as atitudes de Maria apresentadas por Santo Agostinho. Segundo ele, a atitude do coração de Maria ao receber o anúncio do Anjo é a compreensão do anúncio: como é que vai ser isso se eu não conheço homem algum? (Lc 1,34). Ela tinha conhecimento do seu propósito com José. Ela está pronta a aceitar o plano de Deus em sua vida, mas quer

50 AGOSTINHO, Santo. A virgem Maria: cem textos Marianos com comentários. São Paulo: Paulus, 1996, p. 39-41.107.

51 Cf. ibid., p. 50. 52 Cf. ibid., p. 79. 53 Cf. ibid., p. 54.80-81.

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25 entender, compreender de que maneira a criança nascerá, “como vai ser isso”. Maria recebe a instrução do Anjo. E ela concebe mediante a fé e fica grávida, não pela união com um homem, mas por obediência. Ela gerou o Cristo por obediência espiritual, e não por desejo carnal. Ela mereceu, por sua obediência, piedade e fé, que o santo gérmen de Cristo fosse formado em suas entranhas. Aí está aquela que compreendeu o que significa o Shemá Israel. Ela escutou e praticou a Palavra de Deus.

1.3.1 O Shemá Israel (Dt 6,4)

Segundo Alonso Schökel, a palavra Shemá significa “ouvir, escutar, atender, prestar atenção, aquiescer, obedecer”.54 Esta palavra aparece inúmeras vezes no texto do Antigo

Testamento (texto hebraico, massoreta). A expressão Shemá Israel ocorre 5 vezes (Dt 4,1; 5,2; 6,4; 9,1; 20,3). No texto grego dos LXX (Septuaginta), a expressão é “Escuta, Israel”, ou seja,

Shemá foi traduzido por akoue, que, em grego, significa ouvir, escutar, vir a saber.55 Segundo Rusconi, akoyeinouakoyô significa “perceber, ouvir, vir a saber, conhecer, prestar atenção, compreender”.56

O verbo ouvir, do latim áudio-is,ire,-iui,-itum, significa “ouvir, estar atento a, escutar. Entender, compreender. Ouvir dizer, obedecer, acreditar. Ser discípulo. Ouvir lições”.57 Já o

verbo escutar, do latim ausculto,-as,-are,-aui,-atum (auris), significa escutar, dar ouvido e obedecer.58 Está ligado à obediência dos ouvidos, ob-au-dire, que significa estar à escuta.59 Nesse sentido, obedecer denota e se refere à Palavra de Deus. O termo grego usado no Novo Testamento para designar a obediência, hypakouein, traduzido literalmente, significa escutar ou ouvir atentamente.60 Está ligado ao sentido de executar aquilo que se escutou. O lamento de Deus pelos lábios do salmista é reflexo da não escuta e da desobediência de Israel: “Meu povo não ouviu a minha voz, Israel não me obedeceu” (Sl 81,12). Portanto, escuta e obediência se entrelaçam, não no sentido teórico, mas prático, isto é, fazer o que a Palavra de Deus ordena.61 São Bento (480-547), no prólogo de sua Regra de vida para os seus monges, assim escreve:

54 ALONSO SCHÖKEL, Luis. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997. p. 681. 55 BALZ, Horst; SCHNEIDER, Gerhard. Dizionario Esegetico del Nuovo Testamento. Brescia: Paideia, 1995.

p. 139-140.

56 RUSCONI, Carlo. Vocabulario del Greco del Nuovo Testamento. Bologna: EDB, 1997. p. 12-13.

57 REZENDE, Antônio Martinez de; BIANCHET, Sandra Braga. Dicionário do latim essencial. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. p. 48.

58 Ibid., p. 50.

59 Cf. CATALAMESSA, Raniero. Obediência. São Paulo: Loyola, 2002. p. 15. 60 Cf. ibid., p. 16.

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Escuta, filho, os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste pela negligência da desobediência […]. E, com os olhos abertos para a luz deífica, ouçamos, ouvidos atentos, o que nos adverte a voz divina que clama todos os dias: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não permitais que endureçam os vossos corações” (Sl 94,8).62

São Bento, ao pedir ao monge “escuta os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração”, exorta-o ao exercício da obediência por meio da escuta. Escutando o Mestre Jesus, entenderá o conselho do “pai espiritual”. Ele conclui o prólogo dizendo que é preciso preparar os corações e os corpos para militar na santa obediência aos preceitos. Ao falar da natureza humana, ele exorta os monges a rogarem ao Senhor que ordene a sua graça e seu auxílio para bem viverem os seus preceitos.63 A escuta obediente requer necessariamente uma atitude humano-religiosa fundamental da Palavra de Deus. Certos de que Deus é o primeiro a escutar o seu povo.

A escuta primeira é de Deus: “Eu escutei o clamor do meu povo” (Ex 3,7). “Se ele gritar a mim, escutarei o seu grito” (Ex 22,22). O mistério mais profundo da fé do êxodo é que Deus escuta o grito do povo sofrido (Ex 2,23-25; 3,7-9; 14,10-31; 15,24-25; 22,22.26; Nm 11,3; 20,16). O grito do povo oprimido está no centro do credo israelita: “Gritamos a Iahweh, o Deus dos nossos pais, e Iahweh escutou a nossa voz” (Dt 26,7). A decisão de Moisés de gritar a

Iahweh causa esperança, pois o grito deu origem ao projeto do êxodo.64 O Deus de Israel escuta o grito do pobre (Ex 22,26), porque é misericordioso. Ele se compadece sempre do sofrimento do necessitado.65 Constata-se então o cultivo da esperança de o Senhor escutar o grito de seu povo sofrido por meio do líder da comunidade, Moisés. Nesse sentido, a comunidade do êxodo faz a experiência da providência divina de transformação e superação dos obstáculos para continuar o seu caminho rumo à terra da liberdade, por meio da fé no único Senhor.66

Nesse contexto, inculca no povo de Israel essa primeira disposição diante de Deus, a escuta. “Escuta, Israel!” (Dt 6,4), o famoso Shemá Israel, é o resumo da fé judaica, rezado pela manhã e à tarde.67 O texto de Deuteronômio 6,4: “Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é único” “expressa uma íntima relação entre Deus e Israel”.68 Israel é solenemente interpelado a ouvir o

62 BENTO, São. A Regra de São Bento. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 2003. p. 17-18. 63 Cf. ibid., p. 19.

64 Cf. GRENZER, Matthias. O projeto do Êxodo. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 90-91. 65 Cf. ibid., p. 176.

66 Cf. FERNANDES, Leonardo Agostini; GRENZER, Matthias. Êxodo 15,22–18,27. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 24.

67 Cf. ALDAZÁBAL, José. Vocabulário básico de liturgia. São Paulo: Paulinas, 2013. p. 132. 68 ARAUJO, Gilvan Leite de. História da festa judaica das Tendas. São Paulo: Paulinas, 2011. p. 58.

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27 único Senhor capaz de revelar o seu amor, libertá-lo e dar-lhe a vida. A única exigência do Senhor a Israel é amá-lo.69

O “Livro da Lei” inicia-se proclamando a unidade do Senhor (Dt 6,4) e se encerra mencionando Israel como povo numeroso, estabelecido na terra de Canaã (Dt 10,22; 11,10-12). O Senhor escolhe um povo para si (Dt 7,6), o faz sair do Egito, guia-o pelo deserto (Dt 8,14-16) e o faz atravessar o Jordão (Dt 9,1-3), porta de acesso à Terra Prometida. Percebe-se que, com a saída de Israel do Egito e a chegada à Terra Prometida, destacam-se três imagens: a) Um Deus: proclamação solene da unidade do Senhor, união plena e total de Israel com ele (Dt 6,4-9); b) Um povo: Israel é definido como povo consagrado do Senhor, o que implica exigências: amor exclusivo de Israel ao Senhor. Esse amor de Israel ao Senhor tem suas raízes mais profundas na sua eleição como povo da Aliança (Dt 6,4-5; 7,1-6); c) Uma terra: aqui são exaltados os valores da terra e advertências contra seus perigos. A doação da terra é dom por excelência do Senhor a Israel. Israel é chamado a viver com os pés na Terra Prometida, mas com os olhos fixos Naquele que lhes oferece a terra como fruto de seu amor (Dt 8,7-18).70

Nesse sentido, entende-se por que o principal mandamento e a maior confissão, como parte constitutiva do legado mais precioso e mais estimado por judeus e cristãos, se encontram nessa passagem (Dt 6,4-9; 11,13-21; Nm 15,38-41), que forma o célebre Shemá. De todos os textos que compõem a oração judaica do Shemá (Dt 6,4-9), este é o mais importante porque contém a proclamação por excelência da fé judaica: “O Senhor é uno”.71 À pergunta feita a Jesus por um fariseu, sobre qual o maior mandamento da Lei, Jesus responde: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o seu espírito […]. Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Dt 6,5; Mt 22,34-40).

Para melhor compreender Deuteronômio 6,4-9 e Mateus 22,34-40, faz-se necessário entender o significado de Shemá, ehad, ’ahab, lêb, nefesh e me’ôd. Veja bem: Shemá = Escutar: interpretar, comentar a Torá. É neste contexto que o Shemá está diretamente ligado à Torá escrita e oral. Se ela não for comentada, é morta. Ehad = Um: completo, sem divisão interior. Dizer que Deus é Um é dizer que Ele não está em relação com outros deuses. Não existem outros deuses comparáveis a Ele, o Deus de Israel. Ele é indivisível, é Um. ‘Ahab = Amar: é a tarefa de todo judeu. Exige integridade, doação, entrega, crer. Por isso, o amor proclamado em

69 Cf. STORNIOLO, Ivo. Como ler o livro do Deuteronômio: escolher a vida ou a morte. São Paulo: Paulus, 2007. p. 58.

70 Cf. LOPEZ, Félix G. O Deuteronômio: uma lei pregada. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 26. Cadernos Bíblicos. 71 Cf. ibid., p. 26-27.

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28 Dt 6,4-9 perpassa o cotidiano da pessoa, estando sentada, andando, deitada ou de pé. Ele deve ser realizado com o coração, a alma e a força (posses).72

Como compreender o sentido de amar com todo o coração, com toda a alma e com toda a força? Responder a esta questão requer compreender o que significa Lêb, Nefesh e Me’ôd. Eis o significado de cada palavra: Lêb = Coração: sentimento e razão integrados. O povo daquela época entendia o coração mais como sede da razão do que raciocínio. Hoje se pensa que o lugar da razão é a cabeça. Quando o Evangelho diz que Maria guardava tudo no seu coração, quer dizer que ela raciocinava, raciocinava, e não compreendia tão grande mistério; mesmo assim a Ele se entregou com razão e sentimentos integrados. Nefesh = Alma: o que confere dignidade, o que o faz ser. Aquilo que faz o outro também ser. Ela é dignidade, personalidade, individualidade, vida, estado de ânimo, espiritualidade, vontade. Me’ôd = Força: poder aquisitivo, dinheiro, posses. Está relacionado ao que a pessoa possui e que deve ser colocado a serviço do outro.73

Não existe pessoa humana sem essas três dimensões: coração, alma e força. É nessas três dimensões que o bom judeu e o bom cristão são chamados a concentrar o seu amor a Deus. Josias, Rei de Judá, é um rei que seguiu o Shemá. É o que confirma o livro dos Reis: “Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como ele, para o Senhor, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés; nem depois dele houve algum que se pudesse comparar” (2Rs 23,25). A comunidade do Evangelho de Mateus, mais próxima do judaísmo, foi analisando Jesus e seus seguidores na perspectiva do

Shemá.74

Para Jesus, o amor a Deus encarna o valor essencial ao qual devem conformar-se todas as suas outras leis. Dificilmente se poderia encontrar melhor começo para o “Livro da Lei”.75 O mandamento do Senhor não é apenas para ser escutado, mas guardado e praticado (Mt 5,19). No final, como diz o profeta Miqueias: “Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que o Senhor exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a bondade e te sujeitar caminhar com teu Deus!” (Mq 6,8).76

72 Cf. FARIA, Jacir de Freitas. A releitura do Shemá Israel nos Evangelhos e Atos dos Apóstolos. Revista de

Interpretação Bíblica Latino-Americana – RIBLA, Petrópolis: Vozes, n. 40, p. 54-55, 2001.

73 Cf. ibid., p. 55. 74 Cf. ibid.

75 Cf. LOPEZ, Félix G. Op. cit., p. 27.

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29 Um aspecto importante de Deuteronômio 6,4 é o imperativo: “Escuta!”, seguido do vocativo: “Israel”, conferindo à fórmula o caráter de chamado. Se o nome no vocativo é o de Deus (Dt 33,7), o chamado se transforma em invocação ou súplica. Mas como o vocativo é o nome de Israel, o chamado toma a forma de convite. Israel é convidado a ouvir que o “Senhor é uno” (Dt 6,4b). O principal mandamento – “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6,5) – está estritamente ligado a essa afirmação de fé. Os versículos seguintes são decorrentes deste e se ligam a ele.77

Compreende-se então a expressão insistente do amor total e sem reserva, “com todo o coração (por isso se fala na circuncisão do coração em Dt 10,16; 30,6; Jr 4,4) e com toda a alma”. Considerados como sedes da vida psíquica e do homem interior, são apresentados aqui como a sede do amor de Deus. As faculdades internas e externas do homem devem pôr-se em ação para gravar bem as palavras do Senhor. Os sinais visíveis, à maneira de lembrete (no punho, na fronte, nos umbrais das casas e nas portas da cidade), devem vir em auxílio das faculdades internas: a vista toca o coração para atingir o objetivo desejado.78

Percebe-se, porém, que tudo é orientado para o Senhor. Deuteronômio 6,4b-5 é o centro e o ponto de convergência dos outros versículos da unidade. A Lei israelita deve corresponder à atitude do povo de Israel para com o seu Deus. A unidade se transforma em convite urgente e premente a se empenhar com o Senhor, por convicção pessoal, por meio da escuta. A abundância dos pronomes pessoais reflete o esforço para se atingir o interior da pessoa, a fim de dar impulso ao engajamento e à ação. Uma vez que o Senhor é uno e é o Deus de Israel, o povo deve amá-lo com amor único, sem divisão. Israel é chamado a escutar e apreender com todo o coração, com toda a alma e com toda a força que o Senhor é o único Senhor, e o centro de todo o seu amor.79

Afirmar que o Senhor é uno significa dizer que Ele não é divisível. Se Ele é uno e indivisível, também o amor a Ele deve ser total e sem divisão nem falha.80 Para Ska, “amar a

Deus e observar os mandamentos são duas faces da mesma moeda e não é possível separá-los. Amar a Deus, temer a Deus, segui-lo, servi-lo, observar a Lei são sinônimos, ou quase”.81 Para

esse autor, trata-se de uma linguagem diplomática da época, que fornece a chave de

77 Cf. LOPEZ, Félix G. Op. cit., p. 28. 78 Cf. ibid., p. 28-29.

79 Cf. ibid., p. 29. 80 Cf. ibid.

81 SKA, Jean-Louis. O canteiro do Pentateuco: problemas de composição e de interpretação – Aspectos literários e teológicos. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 264.

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30 interpretação desses emparelhamentos paradoxais entre amar e temer, amar e observar preceitos.82 Ele faz um breve histórico da época do Pentateuco no contexto de Dt 6,4-5, onde se insiste sobre dois elementos essenciais: YHWH é o único Deus e Israel deve amar somente a ele.83

O autor afirma que a época em que se situa o texto é de relativa paz, porque o Império Assírio se esmigalha rapidamente: Nínive será destruída pelos babilônios e pelos medos em 612 a.C. e o Império desaparecerá definitivamente em 606 a.C. Jerusalém, no tempo do rei Josias (640-609 a.C.), recupera, pelo menos em parte, sua independência porque a Assíria já não controla suas províncias e seus aliados mais distantes. As circunstâncias favoráveis permitem ao rei Josias, à sua corte e às classes dirigentes introduzir a assim chamada “reforma deuteronômica”. A escolha fundamental feita naquele momento – ou, para ser mais preciso, nos textos escritos sobre essa reforma, ou seja, o Deuteronômio e a literatura referente a este livro – é a de retomar a linguagem das negociações de vassalagem em voga naquela época e aplicá-la aos reaplicá-lacionamentos entre YHWH e seu povo.84

Portanto, Israel decide escutar os profetas e não mais buscar sua salvação em alianças aleatórias com potências efêmeras. A experiência lhe ensinou quais podem ser as terríveis consequências de tais escolhas. Por essa razão, no Deuteronômio, Israel escolhe ser vassalo não de um rei poderoso deste mundo, mas sim de seu Deus, YHWH, o Deus que o fez sair do Egito e se revelou a ele no Horeb. Israel não depende de nenhuma potência humana e não reconhece neste mundo nenhum soberano. Reconhece-se devedor somente de YHWH, seu Deus. Por esse motivo, introduz-se na teologia do Deuteronômio o motivo do amor exclusivo pelo próprio soberano. Como qualquer vassalo leal e fiel, Israel promete amar e servir a um único soberano, YHWH, seu Deus. Esse amor exclusivo obriga-o a rejeitar o culto de quaisquer divindades fora do culto de YHWH. Têm-se, portanto, na linguagem dos tratados de vassalagem, não somente a raiz do mandamento neotestamentário do amor, mas também a do monoteísmo. Israel reconhece um só Deus porque pode ter um único soberano.85

Depois de compreender a importância do Shemá para o povo da Aliança no Antigo Testamento, faz-se necessário contextualizar o sentido de Shemá no Novo Testamento e suas consequências para os seguidores de Jesus. Se no Antigo Testamento “escutar” corresponde a

82 Cf. ibid., p. 264.

83 Cf. ibid., p. 272. 84 Cf. ibid.

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