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Na liturgia cristã, há uma íntima reciprocidade entre a Palavra de Deus e a ação sacramental. Uma reciprocidade já evidente na ordem evangelizadora aos discípulos: “Ide por todo o mundo e proclamai a Boa-Nova a toda criatura. Aquele que crer e for batizado se salvará” (Mc 16,15; Mt 28,19; Lc 24,27-31). Mais ainda, a ação litúrgico-sacramental concentra em si palavra e ação, anúncio e testemunho, proclamação e expressão simbólica. A ação sacramental é palavra, pois também é memorial do Mistério Pascal do Senhor e anuncia a tríplice dimensão do mistério de Cristo. Ele veio e acampou entre nós (Jo 1,14). Virá um dia cercado de glória e vem constantemente mediante a ação celebrativa (SC, 7).84 Foi ele quem disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Lc 18,20).

A Palavra de Deus escutada na liturgia é sacramento. Ela potencializa na comunidade o mistério da Encarnação do Verbo e suscita a fé dos membros da assembleia que a acolhem com veneração (Rm 10,17).85 A Sacrosanctum Concilium fala sobre a relação entre o rito sacramental e a Palavra, para mostrar com clareza a íntima conexão entre a Palavra e o rito na liturgia. Pede ainda que se restaure o uso abundante, variado e bem distribuído das Sagradas Escrituras nas celebrações litúrgicas. Afirma também que a pregação como parte da ação litúrgica se baseia na Escritura e na própria liturgia, sendo anúncio das maravilhas de Deus na história da Salvação e do mistério de Cristo, que está sempre presente de maneira ativa nas ações litúrgicas.86

82 Cf. ibid., n. 9, p. 193.

83 Cf. ibid., n. 10, p. 193-194. 84 Cf. SC, n. 7.

85 Cf. CELAM. Manual de liturgia II. Op. cit., p. 163. 86 Cf. SC, n. 35.

71 A Palavra-sacramento é a Palavra de Deus “acontecida” uma vez para sempre nas Sagradas Escrituras, que volta a ser “realidade ativa” toda vez que a Igreja as proclama com autoridade, e o Espírito, que as inspirou, volta a suscitá-las no coração de quem as escuta. Ao falar da Palavra como “sacramento”, não no sentido técnico e restrito dos “sete sacramentos”, mas sim no sentido mais amplo, em que se fala de Cristo como “sacramento primordial do Pai” e da Igreja, como “sacramento universal de salvação”. Levando em consideração a definição de Santo Agostinho, “sacramento como uma palavra que se vê”, ficou o hábito de definir a Palavra de Deus como “um sacramento que se ouve”.87

A palavra que se lê, nas Sagradas Escrituras, não é senão um sinal material, palavra do vocabulário humano; entretanto, por intervenção da fé e da iluminação do Espírito Santo, entra misteriosamente em contato com a verdade vivente e a vontade de Deus, e se escuta a própria voz de Cristo. O caráter sacramental da Palavra de Deus revela-se no fato de que, por vezes, age manifestamente para além da compreensão da pessoa, que pode ser limitada e imperfeita; age quase por si mesma. Nas palavras da Escritura, existe algo que atua além de toda explicação humana; existe uma desproporção evidente entre o sinal e a realidade por ela produzida, o que sugere, de fato, a ação dos sacramentos.88

2.4.1 A escuta da Palavra de Deus nas celebrações dos sacramentos

A escuta da Palavra de Deus nas celebrações de cada sacramento é um elemento decisivo na Igreja. É na relação entre Palavra e gesto sacramental que se mostra de forma litúrgica o agir próprio de Deus na história, por meio do caráter performativo da Palavra. Pois, na história da salvação, não há separação entre o que Deus diz e faz, porque sua palavra é viva e eficaz (Hb 4,12), como indica o termo hebraico dabar. No contexto litúrgico, a Palavra realiza aquilo que diz. Quando o povo de Deus é ajudado a descobrir o caráter performativo da Palavra de Deus na liturgia, ele é ajudado também a perceber o agir de Deus na história da salvação e na vida pessoal de cada um dos seus membros.89

A Dei Verbum, Constituição dogmática sobre a revelação divina, do Vaticano II, afirma que a Igreja sempre venerou a divina Escritura, sobretudo, na sagrada liturgia. Nunca deixou de tomar e distribuir aos fiéis, da mesa tanto da Palavra de Deus como do corpo de Cristo, o pão da vida. Sempre considerou as divinas Escrituras como regra suprema da fé. Nelas,

87 Cf. CANTALAMESSA, Raniero Pe. O mistério da Palavra de Deus. São Paulo: Canção Nova, 2014. p. 30- 31.

88 Cf. ibid., p. 31-32. 89 Cf. VD, n. 53.

72 inspiradas por Deus, inscritas para sempre, se fazem ouvir a voz do Espírito Santo através das palavras dos profetas e dos Apóstolos. É preciso que a religião cristã e a pregação sejam alimentadas pelas Sagradas Escrituras. Alerta o Concílio: “Lembrem-se, porém, de que a oração deve acompanhar a leitura das Sagradas Escrituras, para que haja colóquio entre Deus e o homem, e recordando uma frase de Santo Ambrósio conclui: ‘pois com ele falamos quando rezamos, e a ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos’”.90

A ação litúrgica atualiza o Mistério da Salvação por intermédio da unidade de palavra e acontecimento. A palavra acompanha o rito sacramental, e este se realiza não somente por gestos e objetos sagrados, mas, sobretudo, pela palavra proclamada. Só a Palavra pode expressar o conteúdo e a grandeza daquilo que a ação sacramental torna presente. Na celebração litúrgica são inseparáveis palavra e ação, profecia e memorial. A estrutura ritual da palavra que constitui o núcleo de toda liturgia é de natureza integrada. Dessa forma, palavra e rito sacramental constituem a textura de toda ação litúrgica cristã.91

2.4.2 A escuta da Palavra de Deus na celebração da Liturgia das Horas

O Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini, escreve que os Padres Sinodais afirmaram que a Liturgia das Horas constitui uma forma privilegiada da escuta da Palavra de Deus, porque põe os fiéis em contato com as Sagradas Escrituras e com a Tradição viva da Igreja. Recorda a profunda dignidade teológica e eclesial desta oração. Na Liturgia das Horas, a Igreja exerce a função sacerdotal da sua Cabeça, “oferecendo ininterruptamente” (Ts 5,17) a Deus o sacrifício de louvor (Hb 13,15). É a oração da voz da Esposa a falar ao Esposo e também a oração que o próprio Cristo, unido a seu corpo, eleva ao Pai.92

Já o Concílio Vaticano II afirma que todos os que rezam a Liturgia das Horas cumprem, por um lado, a obrigação própria da Igreja e, por outro, participam na imensa honra da esposa de Cristo, porque estão em nome da Igreja, diante do trono de Deus, a louvar o Senhor. Nesta oração, a Igreja manifesta publicamente o ideal cristão de santificação do dia inteiro, ritmado pela escuta da Palavra de Deus e pela oração dos Salmos, de modo que toda atividade encontre o seu ponto de referência no louvor prestado a Deus.93

90 Cf. DV, n. 21.

91 Cf. CELAM. Manual de liturgia II. Op. cit., p. 163-164. 92 Cf. VD, n. 62.

73 O Papa Bento XVI, na Verbum Domini, encoraja as comunidades de vida consagrada a serem exemplares na celebração da Liturgia das Horas, a fim de poderem constituir uma ponte de referência e inspiração para a vida espiritual e pastoral de toda a Igreja. O Sínodo, segundo o Papa, exprimiu o desejo de uma maior difusão da Liturgia das Horas para o povo de Deus poder conhecê-la, especialmente a recitação das Laudes e Vésperas. Este incremento fará crescer no coração dos fiéis a familiaridade com a Palavra de Deus. Ele conclui recomendando que, onde for possível, as paróquias e as comunidades de vida religiosa favoreçam esta oração com a participação dos fiéis.94

2.4.3 A escuta da Palavra de Deus nas celebrações dos sacramentais

Com relação à escuta da Palavra de Deus nas celebrações dos sacramentais, na Exortação Pós-Sinodal Verbum Domini, o Papa Bento XVI escreve que, no uso do Cerimonial das Bênçãos, uma especial atenção é necessária, no espaço previsto para a proclamação, a escuta e a explicação da Palavra de Deus, por meio de breves advertências. O gesto da bênção, nos casos previstos pela Igreja e quando pedido pelos fiéis, não deve aparecer isolado em si mesmo, mas relacionado, no grau que lhe é próprio, com a vida litúrgica do povo de Deus.95

A bênção apresenta basicamente duas partes principais, sendo a primeira a proclamação da Palavra de Deus e a segunda, o louvor da bondade divina com impetração do auxílio celeste. A meta é que a bênção se torne realmente um sinal sagrado e adquira sentido e eficácia na proclamação e escuta da Palavra de Deus. E para melhor despertar a fé dos que participam da bênção, intercalam-se oportunamente um Salmo, ou um canto, ou um momento de silêncio sagrado, no caso de várias leituras. A proclamação das Sagradas Escrituras e a oração da Igreja nunca poderão ser omitidas, mesmo em ritos breves.96

Foi a Igreja que instituiu os sacramentais. São sinais sagrados e têm certo parentesco com os sacramentos, significando os efeitos espirituais que a Igreja obtém com suas preces. A liturgia dos sacramentos e sacramentais coloca o ser humano em relação com o mistério pascal da morte e da ressurreição de Cristo, em quase todas as ocasiões da vida. Todo o uso honesto das coisas materiais pode ser orientado para a santificação das pessoas e para o louvor de

94 Cf. VD, n. 62.

95 Cf. VD, n. 62.

96 Cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Presbiteral: Introdução Geral ao Ritual de Bênçãos. Petrópolis: Vozes, 2007, n. 20-21.23, p. 623.

74 Deus.97 Por isso, é importante aproveitar os momentos de cerimonial de bênçãos para suscitar nos fiéis fome e sede de toda a palavra que sai da boca de Deus (Mt 4,4).98

2.4.4 A escuta da Palavra de Deus na celebração dominical fora da missa

A escuta da Palavra de Deus, em milhares de comunidade cristãs, que não têm condições de participar da celebração eucarística aos domingos, pela escassez de sacerdotes, vivenciam a fé cristã no “Dia do Senhor” ao redor da celebração da Palavra de Deus.99 Como recorda o

Documento de Aparecida, as milhares de comunidades com seus milhões de membros, que não têm a oportunidade de participar da Eucaristia dominical, podem e devem viver o domingo, Dia do Senhor, alimentando o seu espírito e participando da “Celebração dominical da Palavra”, que faz presente o Mistério Pascal no amor que congrega (1Jo 3,14), na Palavra que acolhe (Jo 5,24-25) e na oração comunitária (Mt 18,20).100

O Concílio Vaticano II incentiva: “Promovam-se celebrações da Palavra de Deus nas vigílias das grandes festas, em certos dias da Quaresma e do Advento, nos domingos e dias santos, principalmente nos lugares em que não há sacerdotes”.101 O Papa Bento XVI, na

Exortação Pós-sinodal Verbum Domini, recorda a exortação dos padres sinodais a todos os pastores para difundir, nas comunidades a eles confiadas, momentos de Celebração da Palavra de Deus, que são ocasiões privilegiadas de encontro com o Senhor. Tal prática deve trazer proveito para os fiéis e ser considerada um elemento importante à pastoral litúrgica. A celebração da Palavra de Deus é vivamente recomendada nas comunidades onde não há celebração eucarística no domingo, como já mencionado acima.102

Percebe-se, então, a importância da escuta da Palavra de Deus nos lugares onde não há Eucaristia aos domingos e que, nestes lugares, muitas comunidades cristãs, mediante as diferentes expressões rituais da celebração da Palavra de Deus, mantêm viva a consciência do Dia do Senhor, o sentido de pertença e comunhão eclesial, o ardor pela missão evangelizadora e a busca da prática da solidariedade entre irmãos e irmãs. Amadurecem a convicção de que

97 Cf. SC, n. 60-61.

98 Cf. VD, n. 63.

99 Cf. CELAM. Manual de liturgia IV: a celebração do mistério pascal – Outras expressões celebrativas do mistério pascal e a liturgia na vida da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007. p. 155.

100 Cf. DAp. n. 253. 101 Cf. SC, n. 35. 102 Cf. VD, n. 65.

75 esta prática celebrativa, apoiada na reunião dos fiéis na fé, na Palavra de Deus escutada e na oração, constitui o caminho seguro que anima a estima e o desejo da celebração eucarística.103

2.4.5 A escuta da Palavra de Deus na Lectio Divina

A escuta da Palavra de Deus, por meio da Lectio Divina, é antiquíssima na tradição espiritual da Igreja. Nas Sagradas Escrituras está a eficácia, a potência, o sustentáculo e o vigor da Igreja, e para os filhos da Igreja, a solidez da fé, o alimento da alma e o manancial puro e perene da vida espiritual. A Lectio Divina permite ao fiel escutar a Palavra de Deus, fazer um encontro vital com ela, na leitura do texto bíblico, como palavra viva que interpela, orienta e plasma a existência.104 O Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, diz que a Lectio Divina é uma modalidade concreta para escutar aquilo que o Senhor quer dizer na sua Palavra pela transformação do Espírito. Segundo ele, a leitura da Palavra de Deus num tempo de oração permite uma iluminação e renovação.105

O Sínodo sobre a Palavra de Deus na vida e missão da Igreja insistiu várias vezes sobre a abordagem orante do texto sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de todo fiel, nos diversos ministérios e estados de vida, com particular referência à Lectio Divina. A leitura orante das Sagradas Escrituras, pessoal e comunitária, deve ser vivida sempre em relação com a celebração eucarística. Assim, ela prepara, acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra com a proclamação e escuta da Palavra no âmbito litúrgico.106

O Papa Bento XVI, na Verbum Domini, lembra brevemente os passos fundamentais da

Lectio Divina: a) A leitura do texto suscita uma interrogação: o que diz o texto em si? b) Na

meditação, a pergunta que surge é: O que o texto me diz? Nesta etapa, cada pessoa é convidada a deixar-se sensibilizar pela questão, que fala ao presente de cada um; c) Na oração, supõe outra pergunta: o que digo ao Senhor em relação a sua Palavra? A oração enquanto pedido, intercessão, ação de graças e louvor é o primeiro modo como a Palavra me transforma; d) E finalmente a contemplação: assumir como dom de Deus o meu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogando-me: qual é a conversão da mente, do coração e da vida que o Senhor me pede? Há que recordar ainda que a Lectio Divina não está concluída, na sua dinâmica,

103 Cf. CELAM. Manual de liturgia IV. Op. cit., p. 156. 104 Cf. CANTALAMESSA, Raniero Pe. Op. cit., p. 93-94. 105 Cf. EG, n. 153.

76 enquanto não chegar à ação, o que impele a doar-se aos outros na caridade.107 Esse método é conhecido no Brasil como leitura orante da Bíblia.