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“- Vou te contar um segredo – ela começou. - Anda conta – perdi o pirilampo de vista.

- Dizem que quando um silêncio chega e fica entre duas pessoas...

- Sim?

- É porque passou um anjo e lhes roubou a voz. - Tu acreditas em anjos?

- Tu não acreditas em silêncios?”

Ondjaki

É ao som das armas ecoando que a voz da esposa surge enquanto vê o seu esposo retornar ao lar após mais uma luta, como conta Paula Tavares no poema que se segue:

AMARGOS COMO OS FRUTOS Amado, por que voltas

com a morte nos olhos e sem sandálias

como se um ouro te habitasse num tempo

para além do tempo todo

Amado, onde perdeste tua língua de metal a dos sinais e do provérbio

com o meu nome inscrito Onde deixaste a tua voz macia de capim e veludo semeada de estrelas

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Amado, meu amado, o que regressou de ti é a tua sombra divida ao meio é um antes de ti as falas amargas como os frutos. (TAVARES, 2011, p. 119).

“Amargos como os frutos” foi, originalmente, publicado no livro Diz-me coisas

amargas como os frutos (2001). No poema vê-se uma mulher – a amada –

descrevendo o estado emocional do seu esposo – o amado – após regressar das batalhas. A começar pelo título, pode-se perceber um jogo semântico, compreendendo que o que este homem tem a falar são verdades amargas e fatos difíceis de serem escutados e aceitos, assim como os frutos típicos da região angolana. A poetisa contará aos seus leitores a história do seu país, os “filhos do povo”, como denomina Rancière (2010, p. 70), que utilizam da história coletiva para se emanciparem e reconfigurarem o ambiente em que vivem:

Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e da distribuição das capacidades e das incapacidades. [...] A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É antes a colectivização das capacidades investidas nesses cenários de dissentimento. É o pôr em acção da capacidade de qualquer indivíduo, de qualidade dos homens sem qualidades (RANCIÈRE, 2010, p. 73).

É por meio do indivíduo qualquer, dos homens anônimos sem qualidades, que a fala do povo é representada na poesia de Paula Tavares. Nas confissões da mulher, nos questionamentos da esposa, na mesa da jantar – perante os filhos – e na intimidade do quarto, a guerra se presentifica, afetando a vida do espectador que não apenas assiste a história, mas que atua diretamente nela e que se emancipa: “É este o significado da palavra emancipação: desmantelar a fronteira entre os que agem e os que veem, entre os indivíduos e membros de um corpo coletivo” (RANCIÈRE, 2010, p. 31), ou seja, em locais que há subalternidade e anonimato, há silêncio, porém é neste silêncio que habita a fala do povo e é neste local que a escritora angolana recupera estas falas silenciadas pela hegemonia opressora.

Narrado em primeira pessoa e escrito em versos livres, Paula Tavares metaforiza-se na voz daquela que ficou cuidando do lar e preparando o ambiente para o regresso do amado, e que ao vê-lo cruzar a porta de entrada percebe algo diferente do normal, há algo de diferente entre aquele que saiu e aquele que voltou. A esposa

80 cabe questionar: “Amado/por que voltas/com a morte nos olhos [...]” (TAVARES, 2011, p. 119), ela necessita entender o que está acontecendo, o que as armas e as trincheiras causaram em seu esposo. Ele regressa vivo, porém morto. Seus olhos estão abertos noutra dimensão, contudo parecem fechados e sem vida aos que convivem com ele, assim como Dulce Maria Cardoso (2013, p. 251) nos demonstra:

O pai nunca falou da prisão. Nem uma palavra, talvez por isso eu não consiga olhar para as cicatrizes do pai quando o vejo em tronco nu. O silêncio do pai faz com que as cicatrizes contem coisas mais terríveis do que as que o pai poderia alguma vez contar, as cicatrizes mostram-me as feridas a serem abertas, o pai a gritar, a implorar, o pai deve ter chorado [...] Quando olho para as cicatrizes do pai é como se estivesse assistir ao que eles lhe fizeram, como se estivesse a assistir a tudo e continuasse sem conseguir mexer-se como quando levaram o pai.

No romance O Retorno, Dulce Maria Cardoso aborda a descolonização de Angola pela ótica dos portugueses que viveram no país africano e, agora, regressavam a sua terra natal, tornando-se conhecidos e estigmatizados como “os retornados”. Na voz de Rui, protagonista do romance, conhecemos a história de sua família, portugueses que regressavam a Portugal e eram abandonados pela família local e pelos amigos, sendo obrigados a viverem com ajuda humanitária, em um hotel, com tantos outros retornados desabrigados. Rui, sua mãe e sua irmã voltam às terras portuguesas enquanto seu pai é obrigado a continuar em Angola e lutar na guerra de libertação do país, tendo perdido as esperanças que o seu pai viria ao seu encontro, Rui começa a confabular uma fuga para a América, entretanto é surpreendido pela chegada do tio Zé e do seu pai. Este retorna mudo, calado, sem dar detalhes das lutas, mas chega com seu corpo ferido e sua alma marcada pelo que ficou a viver em Angola.

Assim como em Amargos como frutos, existe uma tentativa de se compreender o que aconteceu com este homem anônimo que guerreou pelos seus direitos, seja ele português ou angolano, compreendendo que o desespero dos que ficam revela que a guerra trouxe consequências à vida diária daquele homem, e consequentemente à toda a família, pois ele retorna ausente de júbilo “[...] e sem sandália/como se um outro te habitasse/num tempo/para além/do tempo todo” (TAVARES, 2011, p. 119). O que este eu-lírico vê ali é outro homem habitando aquele que outrora foi seu homem, o de agora voltou habitado por outro, voltou vivo e cheio de morte pulsando em suas veias, trocou a fala e a conversa pelo silêncio promovido com o sangue dos que morreram na luta.

81 O amado voltou, porém agora veio sem voz e a amada, mais uma vez, questiona-o: “Amado, onde perdeste tua língua de metal/a dos sinais e do provérbio/com o meu nome inscrito” (TAVARES, 2011, p. 119). Este homem não está morto, mas está ausente de vida, as boas memórias, as lembranças dos antepassados e os votos de amor foram aniquilados enquanto este presenciava os horrores da guerra e lutava pelo seu país. A mulher, em tom nostálgico, continua a perguntar por onde seu amado perdeu a voz “macia de capim e veludo/semeada de estrelas”. Tavares relata em tom saudoso o passado amoroso e feliz que foi destruído e roubado.

A estória contada neste poema não é o relato de uma viúva, mas o segredar de alguém que teve os seus de volta. Este homem, anônimo como tantos outros, não morreu na guerra, ele regressou ao lar, porém sobre o seu retorno Paula Tavares alerta: “Amado, meu amado/o que regressou de ti/é a tua sombra/dividida ao meio/é um antes de ti/as falas amargas/como os frutos” (TAVARES, 2011, p. 119). O homem, sem nome, o anônimo do poema, que agora volta, é um vivo-morto, perdido enquanto lutava e representava seus ideais na disputa de Outros pelo poder, desapareceu junto com os companheiros que morreram na guerra, ao lado das crianças órfãs exploradas pelas guerrilhas. O que regressou foi o que sobrou dele: a dor, a decepção, a distopia, o desespero e a própria morte. Sua fala não é mais doce, mas amarga como os frutos.

Todo este relato é feito pelo sujeito-lírico daquelas mulheres que viram seus esposos e companheiros serem convocados por algum dos partidos para lutar, defender ideologias e buscar o poder. Estes homens junto com suas esposas escreveram a história da nação, porém aqui jaz o lado oculto e silenciado da história do país: os relatos do que ficam. Os sentimentos daqueles que enxergaram além de toda destruição física do país, a guerra, a exploração e os conflitos armados que estão destruindo as humanidades presentes na sociedade. Aqui, o eu-lírico no poema Amargo como os frutos, cabe a todas as mulheres, filhos e famílias angolanas anônimas que puderam sentir as consequências dos conflitos dentro do próprio lar. Pode-se dizer que se aumentou o número de viúvas em Angola, contudo agora, viúvas de esposos vivos, como se pode também ver em “Sombras” (TAVARES, 2011, p. 132).

SOMBRAS Tristeza os olhos

que não têm o brilho de contar estão riscados de sombras

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como se o rasto dos caminhos o longe da viagem

fosse, neles deixando pistas. Tristezas os olhos

de onde me olhas

detrás de um tempo passado o tempo das promessas antigas. Teus olhos, amado,

são os olhos de alguém que já morreu

e ainda não sabe.

Como o próprio nome do poema sugere – “Sombras” – somos convidados por Paula Tavares a refletir sobre aqueles que foram destituídos de suas identidades, autônomas, os anônimos que são uma projeção de sangue e dor que assolou a nação. Um poema marcado por signos como “tristeza” e “olhos”, que se repetem nos primeiros versos das duas primeiras estrofes: “Tristezas os olhos” (TAVARES, 2011, p. 132), nos remete a ideia de olhos pesados, que guardam segredos dolorosos e escondem imagens dolorosas o qual não deseja compartilhá-las com ninguém. Ilhado em si, o amado possui os olhares que: “[...] estão riscados de sombras/como se o rasto dos caminhos/o longe da viagem/fosse, neles deixando pistas”, cabe aos que agora convivem com ele decifrar os caminhos traçados por estes olhos, as viagens e “paisagens” por ele contemplado, assim recolhem-se as pistas como uma tentativa de resgatar este homem que foi e que ainda continua na guerra, ou melhor, este homem que agora está em guerra.

A “Tristeza os olhos/de onde me olhas/detrás de um tempo passado/o tempo das promessas antigas” (TAVARES, 2011, p. 132) é visto pela amada como uma busca da utopia perdida por este homem enquanto foi à guerra lutar pela sua nação, agora triste regressa, vazio de si, habitado pela tristeza e pela morte, vivendo aquilo que se denomina de “retrotopia22”: “O que chamo de retrotopia é um derivativo do já

22 Em Retrotopia (2017), o filósofo Zigmunt Bauman analisa a insegurança e o medo do futuro nas sociedades contemporâneas. Bauman defende que há uma ruptura cada vez maior entre o poder exercido nas sociedades e a política. Esse distanciamento incapacitou os Estados-nação de cumprirem as promessas de uma vida melhor sintonizada no olhar para o futuro. Na retrotopia, impossibilitado de realizar esse futuro, o olhar contemporâneo desvia-se para o passado, que, “com mais virtudes que vícios, é marcada na coluna do crédito – como um lugar ainda de livre escolha e do investimento ainda não-desacreditado de esperança”. Para Bauman, tanto nas utopias do futuro quanto a retrotopia do passado, “os holofotes da atenção são focalizados numa densa sombra. Isso possibilita a ambos ser territórios ideais (imaginados) onde localizar o estado de coisas (imaginado) ideal, ou ao menos uma versão corrigida do presente estado de coisas.” Uma nostalgia que funciona mais como um mecanismo de defesa do que na busca por um mundo melhor: “O que realmente separa os dois é a mudança de

83 mencionado segundo grau da negação – a negação da utopia” (BAUMAN, 2017, p. 13). A negação da utopia, dos sonhos, da esperança de que dias melhores estão por vir, faz-se presente no olhar deste amado, que sem perspectiva sobrevive à realidade que lhe cabe, a realidade de uma alma que agora é a sombra de uma nação que se fez independente graças às forças de suas mãos que seguravam as armas, uma realidade rompida e repleta de rupturas:

[...] os habitantes de uma era de rupturas e discrepâncias, um tipo de era em que tudo – ou quase tudo – pode acontecer, ao passo que nada – ou quase nada – pode ser empreendido com convicção e certeza de se chegar ao fim; uma era de causas tentando identificar seus efeitos e de efeitos em busca de rastrear suas causas, com um grau mínimo e sempre decrescente de sucesso [...] (BAUMAN, 2017, p. 143).

Para esta amada, os olhos do seu amado se tornou o espelho da morte, ele ainda é alguém que vive, porém sobrevive convivendo com a ruptura de si em si, é alguém que busca viver, mas que já não encontra prazer nos dias e no aconchego do lar, alguém que não consegue sonhar com a esperança de dias melhores.

Não foram somente as esposas que lamentaram e sentiram os efeitos dos conflitos dentro na própria pele, em “Entre Lagos”, o eu-lírico proposto por Tavares traz o lamento da jovem que viu seu futuro esposo sair para luta e que até hoje o espera:

ENTRE LAGOS

Esperei-te do nascer ao pôr do sol e não vinhas, amado.

Mudaram de cor as tranças do meu cabelo e não vinhas, amado.

Limpei a casa o cercado

fui enchendo de milho o silo maior do terreiro balancei ao vento a cabaça da manteiga e não vinhas, amado.

Chamei os bois pelo nome todos me responderam, amado. Só tua voz se perdeu, amado, para lá da curva do rio

depois da montanha sagrada entre os lagos.

(TAVARES, 2011, p. 125).

Como se lê acima, Paula Tavares continua contando os relatos daqueles que permaneceram do outro lado da trincheira. Agora, vê-se o relato da menina que tinha

lugar entre confiança e desconfiança: a confiança sendo movida do futuro para o passado, a desconfiança na direção oposta”.

84 a promessa do matrimônio, que esperava o noivo amado entre “os lagos” regressar, lagos estes que nos remetem a ideia de tempo, tempo este que não passa e encontra- se parado, assim como as águas estagnadas do lago, nos lembrando que, para esta jovem o tempo parou. A água do lago recolhe em si as memórias e as lágrimas dos dias, meses e anos da noiva que incansavelmente espera o noivo voltar. Mudam-se os dias, os anos e as estações. Muda-se a vida. Entre “os lagos” que ali se encontram, as águas também presenciam o passar dos anos e as mudanças nas paisagens que agora permanecem como testemunhas. Lê-se a triste história daquela que na juventude viu o jovem rapaz partir para lutar pela honra do país e que não regressou, até que “Mudaram de cor as tranças do meu cabelo/e não vinhas, amado [...]” (TAVARES, 2011, p. 125). Mesmo com a idade avançada, esta mulher esperou por aquele que um dia prometeu voltar, mas que ainda está lá, distante, lutando pelo seu povo, enquanto ela paciente e sofregamente espera seu regresso.

Enquanto o espera regressar, a amada, não tão mais jovem, relata que: “[...] Limpei o cercado/fui enchendo de milho o silo maior do terreiro/balancei ao vento a cabaça da manteiga/e não vinhas, amado” (TAVARES, 2011, p. 125). Mesmo aguardando, ela arrumou a casa, limpou o cercado, se fez presente, tentou dar prosseguimento a sua vida, cumpriu todos os afazeres domésticos, contudo, ele não voltou. O amor da juventude, e agora da fase adulta, ainda estava perdido para lá das margens dos rios, ainda encontrava-se lutando e escrevendo a história de Angola. No silêncio invisível da espera há um lamento e uma fala muda que nos serve de rastro, vestígio e fóssil para ouvir este clamor:

A escrita muda, num primeiro sentido, é a palavra que as coisas carregam elas mesmas. É a potência de significação inscrita em seus corpos [...] Toda forma sensível, desde a pedra ou a concha, é falante. Cada um traz consigo, inscritas em estrias e volutas, as marcas de sua história e os signos de sua destinação. A escrita literária se estabelece assim, como decifração e reescrita dos signos escritos nas coisas (RANCIÈRE, 2009b, p. 35).

Na escrita muda de Paula Tavares em “Entre lagos” tem-se como protagonista o choro silencioso das moças anônimas que seguiram suas vidas enquanto esperavam por quem amavam, enquanto a espera infindável prosseguia, o eu-lírico desabafa: “Chamei os bois pelo nome/todos me responderam, amado” (TAVARES, 2011, p. 125), por não ter mais o amado para conversar, a amada nomeou os bois, decorou seus nomes e agora estes se tornaram seus companheiros na dor de esperar por aquele que não estava regressando. Foram os bois que escutaram suas angústias

85 e que enxugaram as lágrimas desta mulher. Ela que preparou tudo para volta, fez dos bois seus companheiros de espera e concluiu que: “Só tua voz se perdeu, amado/para lá da curva do rio/depois da montanha sagrada/entre lagos” (TAVARES, 2011, p.125). O que Paula Tavares contou nos poemas “Amargos como os frutos”, “Sombras” e em “Entre lagos” nada mais é do que um outro ângulo de como a história se fez para os transparentes, para os miúdos, anônimos e subalternos. Estes, porque foram para a luta, deixando para traz casa, família, amores e sonhos e foi sobre eles que os Outros colocaram a responsabilidade de serem guerreiros e do fazer história. Contudo, ainda se tem elas do outro lado, tão anônimas quanto eles, tão guerreiras quanto seus esposos. Aqui, temos a esposa e a noiva contando sua versão e aversão, mostrando o preço que tiveram que pagar para que a vossa nação pudesse chegar aonde chegou. O lamento da que percebe seu marido sem vida e a chama de esperança da que se convence de que o amado nunca mais voltará. Relatos silenciados, desprezados e condenados ao esquecimento, mas que para Paula Tavares torna a matéria prima de sua poesia, o que outrora não havia credibilidade nenhuma, agora, faz-se poesia, faz-se história, como afirma Jacques Rancière (2017a, p. 82-83):

[...] a poesia existe antes das palavras; ela existe como capacidade dos seres humanos de sentirem a poesia já manifestada pelo movimento de uma onda ou pelo desabrochar de uma flor. Ela está presente desde as brincadeiras infantis, desde o olhar dos camponeses observando o arco-íris ou desde o do aprendiz observando as paradas municipais. [...] A poesia, em primeiro lugar, não é uma maneira de escrever, mas uma maneira de ler e de transformar o que se leu em maneira de viver, de fazer disso o suporte de uma multiplicidade de atividades: errar e vaguear, refletir, fazer a exegese, sonhar.

A poetisa angolana realiza tal ato com maestria, é sobre o silêncio do esposo calado e o desespero da esposa, sobre a partida do amado e a espera infindável da amada que Paula Tavares faz poesia, para além das palavras, sua poética habita nos silêncios dos personagens da vida real angolana, poemas escritos com lágrimas das anônimas mulheres angolanas e assinados com o sangue dos anônimos guerreiros. A poesia de Paula Tavares existe antes das palavras, ela existe na maneira de viver e de fazer, pois como ela mesma declarou em entrevista, também publicada pela União dos Escritores Angolanos: “[...] Angola dói-me todos os dias, alegra-me da mesma maneira. Dá-me a medida exacta do meu desconhecimento”.

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