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O sagrado como emancipação: uma breve comparativa com Cântico dos

2.1 A mulher reescrevendo e se reescrevendo na história por meio do erótico

2.1.3 O sagrado como emancipação: uma breve comparativa com Cântico dos

Não consegue esquecer Maria

seu olhar azul ardente

de harmonia e suspeita

de onde fita Gabriel através do equívoco

e atentamente o espreita

Maria Teresa Horta

Diante dos tabus impostos sobre a sexualidade feminina, creio que não é mais surpresa que Paula Tavares nos confronta ao nos colocar diante do corpo da mulher e apresentá-lo como território misterioso que somente a dona o conhece com

55 profundidade. Assim como houve resistência para estudar o corpo subalternizado da mulher e tantas outras questões abordadas por Tavares, também, durante muito tempo, interditou-se e associou-se o erotismo ao desejo carnal e devasso, imagem do negativo, tântrico, destinado aos pecadores dignos da condenação eterna, como esclarece Octávio Paz (1995, p. 18):

Como no caso dos Cântico dos cânticos, os sentidos religiosos do poema não podem separar-se do seu sentido profano: são dois aspectos da mesma realidade [...] esta coleção de amor profano, uma das obras eróticas mais formosas que a palavra poética criou, não tem cessado de alimentar a imaginação e a sensualidade dos homens desde a mais de dois mil anos [...]. São uma e outra coisa sem o qual não seriam o que são: poesia.

Paz define o erotismo como: uma poética corporal e a poesia como uma erótica verbal, profunda, classificando-o como:

[...] o erotismo é exclusivamente humano: é sexualidade socializada e transfigurada pela imaginação e a vontade dos homens. A primeira nota que diferencia o erotismo da sexualidade é a infinita variedade de formas em que ela se manifesta, em todas as épocas e em todas as terras [...]. O erotismo é invenção, variação incessante; o sexo é sempre o mesmo [...]. O plural é de rigor porque, inclusive nos prazeres chamados solitários, o desejo sexual inventa sempre um par imaginário... ou muitos (PAZ, 1995, p. 13).

Octávio Paz apresenta o desejo erótico presente em todos nós, dos mais santos aos mais profanos, revelando que o ser humano é um ser por essência erótico. O erotismo é o desvio da reprodução, assim como a poesia é o desvio da prosa, da linguagem gregária, do habitual e do real. Talvez por medo ou por preconceito, o erotismo foi entregue ao diabo e aos seus seguidores, e assim, aquilo que deveria ser um instrumento de transcendência, tornou-se um caminho para a interdição, diagnosticado como pecado. Censuramos Deus e demos o crédito a Lúcifer, afirma- se que as relações eróticas estão destinadas a quem não tem Deus, como desconstrói a portuguesa Maria Teresa Horta no livro Anunciações, o qual, por meio de poemas divididos em 14 estações, conta uma possível relação amorosa entre o anjo Gabriel e a virgem Maria: SEDUÇÃO - Dalila? Admirou-se Maria jugando ouvir Gabriel Falar-lhe de sedução

56

(HORTA, 2016, p. 97).

Quando o anjo fala sobre Dalila, um estereótipo bíblico negativo, a virgem – de imediato – associa a personagem com um símbolo do erotismo e da sedução, ligando- os diretamente com aspectos negativos, tendo em vista que Dalila, segundo a tradição, traiu seu esposo Sansão quando cortou o seu cabelo, eliminando sua força. Enquanto erótica verbal, a poesia, ou porque não dizer a literatura, rompe com limites humanos estabelecidos, com fatos reguladores e procura aquilo que está no além, além do nominal, além do normal, além do preto e do branco, ela procura o que há entre o preto e o branco. Jacques Rancière (2017b, p. 35) define-a como sendo:

E prossegue:

O ser da literatura seria o ser da língua onde esta se furta às ordenações que dão aos corpos vozes próprias para coloca-los em seu lugar e em sua função: uma perturbação na língua análoga à perturbação democrática dos corpos quando só a contingência igualitária os põe juntos.

[...] A literatura não é simplesmente essa zona indeterminada de discurso que estaria alojada nos vazios ou nas margens esquecidas das histórias da poesia e da eloquência. A literatura é uma dramática da escrita, desse trajeto de letra desincorporada que pode tomar qualquer corpo. Ela tem seu lugar nessa disjunção própria ao conceito de escrita que faz com que a própria oposição do logos vivo e da escrita morta só se coloque à custa de instituir o mito de outra escrita, de um escrito mais que escrito (RANCIÈRE, 2017b, p. 45).

Em uma tentativa de reproduzir os simulacros sociais, a literatura não é simplesmente mais uma contadora de histórias, logo se pode inferir que como bem coloca Rancière, Tavares conta a história do povo, suas narrativas, são dramáticas das escritas anônimas que denunciam o caráter do Homem, colocando-os de frente ao espelho da alma e os confrontando, mostrando o que sempre esteve ali, mas o que ninguém gostaria de ver. Sendo mais claro, Rancière (2017b, p. 53) define a Bíblia como sendo “O Livro da Vida” e explica:

[...] os relatos do Antigo Testamento não são historinhas para uso do povo que dissimulam um sentido religioso profundo para uso dos sacerdotes e dos filósofos. São figuras, prefigurações de coisas vindouras. Uma figura não é uma imagem a ser convertida em seu sentido, ela é um corpo que anuncia outro corpo, aquele que a realizará ao representar corporalmente sua verdade. [...] a transferência de significação se faz de corpo para corpo. A letra só é transformada em seu espírito pelo verbo que ganha carne. Os acontecimentos do Antigo Testamento não apresentam outro sentido se não o de prefigurar a vinda daquele que realizará a verdade deles pela encarnação e a paixão.

57 O que está sendo sugerido por Jacques Rancière é que tudo na Bíblia aponta para a imagem messiânica de Jesus, desde a criação do mundo – o Éden –, a arca de Noé, o resgate da prostituta Raabe, o relato de Jonas no ventre do grande peixe, tudo está contando a história de um povo, afirmando suas verdades, denunciando suas hipocrisias. Tudo culminará na encarnação sofredora do verbo e na glória do túmulo vazio. Como afirma o filósofo: “A literatura se liga ao livro da vida através desse “susto” e dessa conjunção que desemboca no silêncio [...]” (RANCIÈRE, 2017b, p. 58- 59), defino esta sensação como assombro. Esta é a nossa reação ao nos depararmos com livros bíblicos como o Cântico dos cânticos, um livro alegórico e simbólico, de alto teor erótico presente no cânone sagrado. Assim como encontramos com Paula Tavares, cujo eu-lírico se faz mulher e usa do seu corpo para denunciar objetificação do ser mulher e sair do lugar que foi concedido aos anônimos. Depois de todo este arrodeio, quero chegar aqui: ao livro sagrado de Cântico dos cânticos. Se a Bíblia é o livro do povo, o livro de Cantares de Salomão também tem algo para contar sobre este povo.

Por se tratar de um livro altamente misterioso e cheio de símbolos, podendo ser uma porta de entrada para várias interpretações: pode ser estudado pelo viés naturalista e/ou realista, ou seja, procura-se fazer uma leitura ao pé da letra. Pode-se estudá-lo pelo lado alegórico, buscando uma compreensão espiritual do texto, ou ainda, por um caminho mítico-cultural, fazendo referências a cultos e mitos do antigo Oriente, ou, pode-se ter um olhar histórico-crítico, o qual o utiliza como uma fonte de crítica a acontecimentos históricos. Contudo, independente do viés tomado, há sempre uma incompreensão em torno do mistério da sexualidade e do erotismo. Segundo Jardilino e Lopes (2009, p. 4), “A celebração do amor erótico na Bíblia é um desafio aos cristãos a se alegrarem com o fato de Deus tê-los criados sexuados, pois nenhum ser humano seria completo sem o outro”, e por que não?

Integrado ao Megillot, conjunto de cinco livros que compõem um Pentateuco feminino na Bíblia, são eles: Livros históricos: Rute e Ester; Poéticos: Eclesiastes e Cânticos dos cânticos e Proféticos: Lamentações. O livro de Cantares de Salomão é apresentado por um protagonismo feminino, expondo as tradições orais retratadas em canções temáticas como: a vida, as escolhas, os sentimentos, os desejos e os sentimentos de amor que anunciam por parte da protagonista uma explosão de amor.

58 Sulamita, a protagonista do livro sagrado é uma simples camponesa que se encontra em constante conversa com o glorioso rei Salomão. Em todo diálogo amoroso, a simples pastora tem falas essenciais durante todo o livro e em todo desenrolar da história, assumindo o protagonismo das cenas em diversos momentos. Dividido por seções intituladas de Fala do Amado, Fala da Amada e Coro, é por meio de uma fala de Sulamita que o livro se inicia: “Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1: 2). Não é um pedido delicado, mas uma ordem, um pedido no modo imperativo ao rei: “Beija- me”, e é com uma fala sua que a história se encerra no livro sagrado: “Vem depressa, amado meu [...]” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8: 14a). Por mais que o rei a ame intensamente, é a amada que decide em que momento eles irão se encontrar, é ela que escolhe se abrirá ou não a porta dos seus aposentos para o noivo entrar – como exposto nos capítulos 3 e 5 de Cantares – do mesmo modo que, nos mesmos capítulos, esta jovem, quebra as regras e caminha pelas ruas da cidade procurando seu amado entre as esquinas sujas e escuras, enfrenta o medo, a escuridão. Por fim, os guardas da cidade que a tentam conter e a espancam. Ela é dona de si e não esconde este fato ao afirmar: “Até a vinha que me pertence está ao meu dispor; tu ó Salomão, terás os mil siclos19, e os que guardam o fruto dela, duzentos” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8: 12). Assim como Paula Tavares (2011, p. 167) afirma:

Estou selada na ilha do meu corpo Deito-me no chão

A terra fala por mim

O tempo de acontecer a vida. Estou selada na ilha do meu corpo Deito-me no chão

Comprei o pão de véspera e as carícias.

Tanto Sulamita quanto o sujeito-lírico apresentado por Tavares, ainda que estejam ambas em situação de anonimato, nos demonstram uma autoconfiança e uma autonomia quanto ao que se refere aos aspectos do corpo e quanto ao que este corpo pode oferecer. Aqui não se encontra um corpo objetificado, mas aqueles que, outrora estigmatizados, tomados como subalternos e inferiores, agora falam por si e de si. No poema acima o eu-lírico afirma com muita convicção: “Estou selada na ilha

19 O siclo (em hebraico "shékel", do verbo shakál = pesar, pagar) era uma unidade de peso usada no antigo Egito e na Judéia (de 6 a 12 g).

59 do meu corpo [...]”, ou seja, para explicar o que se passa, a voz do poema utiliza da figura da ilha para metaforizar o seu corpo, lugar onde ela se refugia, se encontra, que faz dele seu palco e lugar de fala como diz: “[...] Deito-me no chão/a terra fala por mim [...]”, assim como a amada de cantares, certa de si, declara:

Estou escura, mas sou bela, ó mulheres de Jerusalém; escura como as tendas do Quedar, bela como as cortinas de Salomão. Não fiquem me olhando assim porque estou escura; foi o sol que me queimou a pele. Os filhos de minha mãe zangaram-se comigo e fizeram-me tomar conta das vinhas da minha própria vinha, porém não pude cuidar. Conte-me, você, a quem amo, onde faz as suas ovelhas descansarem ao meio-dia? Se eu não o souber, serei como uma mulher coberta com véu junto aos rebanhos dos seus amigos (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1: 5-7, NVI).

Partindo do ponto de vista que Sandra Nitrini (2015, p.134) define como influência, pode-se ver que: “A influência recebida não minimiza em nada a originalidade que, no fundo, é uma das formas de influência”, fundamentado no que Paul Valery apud Nitrini esclarece: “Não há escritores originais, pois aqueles que merecem este nome são desconhecidos; e mesmo irreconhecíveis” (1960, p. 677). Pode-se dizer que influenciada pela figura da amada de Cântico dos cânticos, Paula Tavares projeta o sujeito-lírico feminino presente no poema acima. Selada na ilha do seu corpo, ela perde-se na terra que é, deixa-se levar e deixa que a terra fale por si, que a vida se faça através do tempo. Selada na ilha do seu corpo, Sulamita não se rende às ordens do patriarcado, mas reconhece-se como dona de si e que por uma escolha própria está queimada do sol, dona de uma vinha, a qual seus irmãos mandaram-na guardar, a pastora afirma que não a guardou, porém foi em busca do amado que, em algum lugar, pastoreava suas ovelhas. Selada em si, Sulamita pede às outras mulheres: “Não fiquem me olhando assim porque estou escura” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1: 5a). Selada em si, o eu-lírico de Tavares comprou o pão de véspera e as carícias. Perdida e salva no seu corpo, refugiada em seus desejos, Sulamita ordena ao amado:

Coloque-me como um selo sobre o seu coração; pois o amor é tão forte quanto a morte, e o ciúme tão inflexível quanto a sepultura. Suas brasas são fogo ardente. São labaredas do Senhor. Nem as muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-lo na correnteza. Se alguém oferecer todas as riquezas de sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 8: 6-7, NVI).

Não apenas separada em si, entretanto ordena ao seu amado que a coloque como um selo sobre o seu coração para que não se apague com o tempo, nem

60 desapareça com o passar dos dias, mas para que se torne tão profundo como a sepultura e seu sentimento de amor seja tão forte quanto a morte, por isso o sujeito- lírico proposto por Tavares confessa:

Nas tuas mãos começava O mundo

E nada Nem o dia

Podia ser mais perfeito Tu era o bicho cinzento Do entrelaçado dos limos O da multidão

Que deslizava na água Como a sombra.

Agora alguns anos depois Um anjo caído

Encontra ninho

No colo em sangue do meu peito. (TAVARES, 2011, p. 195).

Outrora condenada à procriação, agora ela o oferece ao amado o seu corpo, queimado pelo sol ou não, é no seu colo que o amado, em tempos antigos, privilegiado, agora encontra repouso e refúgio. É selando-a em seu coração que ele corresponde aos seus sentimentos e adentra o território selvagem que é o corpo da amada, não mais um lugar de dominação e objetificação, contudo, este eu-lírico revela-se autônomo e consciente de si, assim como Sulamita convida o amado:

Ah, se ele me beijasse, se a sua boca me cobrisse de beijos... Sim, as suas carícias são mais agradáveis que o vinho. A fragrância dos seus perfumes é suave; o seu nome é como perfume derramado. Não é à toa que as jovens o amam! Leve-me com você! Vamos depressa! Leve-me o rei para os seus aposentos! Estamos alegres e felizes por sua causa; celebraremos o seu amor mais do que o vinho. Com toda a razão você é amado! (CÂNTICOS DOS CÂNTICOS 1: 2-4, NVI).

O desejo se faz real em ambos os eu-líricos, para o sujeito de “Nas tuas mãos começava o mundo”, o mundo começa nas mãos do outro, assim como para o cristianismo o universo originou-se nas mãos de um Deus, para esta voz, é nas mãos do seu companheiro que o complexo mundo vem à existência, assim como a completude do nada também se faz real. O amado ao qual esta mulher se entrega não é qualquer um, mas “[...] O da multidão/que deslizava na água/como sombra” (TAVARES, 2011, p. 195), ou seja, aquele que detinha um papel de destaque entre os demais, contudo agora, a imagem deste homem se converte na de um anjo caído,

61 aquele que foi expulso do gozo celestial e que não mais habitará na morada dos anjos, este desprestigiado encontrará seu abrigo nesta humilde amada. Assim como em Cântico dos cânticos, a camponesa demonstra desejo e excitação ao invocar a imagem do grande rei. É um eu-lírico feminino que no meio do cânone sagrado rompe e confessa: “Ah, se ele me beijasse, se sua boca me cobrisse de beijos. Sim suas carícias são mais agradáveis que o vinho” (CÂNTICO DOS CÂNTICOS 1: 2), e tanto o eu-lírico apresentado por Paula Tavares no poema “Nas tuas mãos começava o mundo” como a personagem revelada pelo rei Salomão descrevem o seu homem e quão suave é a fragrância do seu perfume, homem disputado por todas as jovens. Em uma coisa ambos os sujeitos-líricos concordam, tanto o da poetisa angolana quanto a jovem pastora, em ambas as situações essas mulheres querem ser perdidas e salvas ao lado do amado, pois como afirma Bataille (2014, p. 36-37):

Entre um ser e outro há um abismo, uma descontinuidade. [...] Somos seres descontínuos, indivíduos que morrem isoladamente numa aventura ininteligível, mas temos a nostalgia da continuidade perdida. Suportamos mal a situação que nos prende à individualidade fortuita, à individualidade perecível que somos.

A voz a Sulamita ecoa entre os pastos, as vinhas e o sol quente do Oriente Médio, Paula Tavares usa da poesia como palco para afirmação e entrega daquelas que durante todo processo histórico do país foram vistas como um objeto do prazer masculino e que agora tentam falam por si convidando o amado, como demonstra:

Compraste o meu amor Com o vinho dos antigos Sedas da índia

anéis de vidro Sou tua, meu senhor

À segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira E também preparo o funje aos sábados Não não me peças o domingo

Todos os deuses descansam E sei também das concubinas O horário de serviço

(TAVARES, 2011, p. 243).

Retomando o que já foi explicado como um fator cultural, Paula Tavares toca nas questões que se referem à prática do alambamento. No primeiro verso diz: “Compraste o meu amor [...]”, confessa que este amor chegou a sua vida pelo modo não natural, não por uma escolha, porém por uma imposição. O seu amor foi comprado, lançando-a em um lugar de anonimato e silenciando seus sentimentos, voz

62 e desejos foram, mais uma vez, calados pelos padrões culturais que falaram mais alto do que a voz da amada. Este amor foi alambado “[...] Com vinho dos antigos/Sedas da índia/anéis de vidro” (TAVARES, 2011, p. 243), sentimento – aparentemente – comprado pelo vinho dos antigos, ou seja, com colaboração da tradição, pela voz dos antepassados, pelo que está imposto há séculos, o amor do eu-lírico foi comprado no hoje. As sedas importadas da Índia valem mais do que os sentimentos do sujeito-lírico do poema em questão, o que nos permite a compreensão de que sempre o que vem de fora é mais valioso e mais quisto do que os bens produzidos na própria terra. De acordo com a poetisa, este sentimento amoroso, também, foi comprado pelos anéis de vidro, símbolos de vaidade e, simultaneamente, de fragilidade, laços muito bem colocados e impostos, entretanto facilmente quebrados. Padrões colocados sobre outros, mas que por meio de um autorreconhecimento do sujeito pode ser desmanchado e estraçalhado, atribuindo ao eu-lírico uma obrigatoriedade de uma identidade sólida e estática.

Fatos que são desconstruídos na estrofe que segue, a poetisa afirma a entrega do seu eu-lírico a este amado quando diz: “Sou tua, meu senhor [...]”, ela foi comprada pelos vinhos, sedas e anéis, porém a decisão de entregar-se por completo está em suas mãos e não nos produtos que pelo senhor foram oferecidos em troca do seu “amor”. Ela escolhe se entregar ao seu senhor, não um Senhor opressor, mas alguém que convive em uma relação de igual para igual. Não um Outro, mas um outro como ela. A este outro ela se entrega “[...] à segunda, terça, quarta, quinta, sexta-feira/e também preparo funje aos sábados [...]” (TAVARES, 2011, p. 243). Para seu senhor, esta amada entregará seu amor todos os dias da semana, incluindo o sábado, aos quais ela prepara funje – um típico pirão com farinha de mandioca que compõe a base das alimentações populares de Angola – ao seu amado. Mesmo diante de tanta entrega, a amada põe-se em posição de destaque na relação e, mais uma vez, equipara sua voz e vida ao nível sagrado dos deuses: “[...] Todos os deuses descansam/E sei também das concubinas/O horário de serviço” (TAVARES, 2011, p. 243). Ousadamente, o eu-lírico relata que se até os deuses escolhem o descanso, ela também pode fazer escolhas. Ao mesmo tempo em que se coloca no nível elevado, ela também se põe no nível do ordinário ao relatar que sabe o horário de serviço das concubinas, aquelas que servem a casa, ao senhor e também à senhora, assim como as amigas – ou o coro – presente no livro de Cântico dos cânticos.

63 Paralelo a este cenário, temos a voz de Sulamita ecoando e dizendo que:

Como uma macieira entre as árvores da floresta é o meu amado entre os

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