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2.1 A mulher reescrevendo e se reescrevendo na história por meio do erótico

2.1.1.1 O eu-lírico transgressor

Sobre o erotismo, Georges Bataille define-o como a aprovação da vida até na morte, propondo:

Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte. Propriamente falado, não é uma definição, mas penso que essa formula dá o sentido do erotismo melhor do que qualquer outra. Se se tratasse de uma definição precisa, seria necessário certamente partir da atividade sexual de reprodução de que o erotismo é uma forma particular. A atividade sexual de reprodução é comum aos animais sexuados e aos homens, mas, aparentemente, apenas os homens fizeram de sua atividade sexual uma atividade erótica (BATAILLE, 2014, p. 35).

Indo ao encontro de Bataille, Octávio Paz (1995, p. 12) define o ato erótico como uma das formas de transgredir a sexualidade, chegando a definir o erotismo como uma poética corporal, sobre esta transgressão afirma:

O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. O agente move tanto o acto erótico como o poético é a imaginação. [...] A imagem poética é um abraço de realidades opostas e a rima é uma cópula dos sons; a poesia

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erotisa a linguagem e o mundo porque ela mesma, no seu modo de operar, é já erótica (PAZ, 1995, p. 10).

A poetisa inaugura uma fala singular, de dicção própria, que se destaca em meio aos demais escritores angolanos do século XX, primeiro pelo fato de ser uma mulher, e por que não dizer, uma mulher anônima escrevendo, segundo por ser uma mulher que destaca um eu-lírico feminino e que, por sua vez, dialoga, sem medo, com o leitor sobre desejo, sexualidade, temores e anseios em uma sociedade patriarcal. Com uma escrita marcada pelo que é ser mulher e anônima na contemporaneidade, desvia-se do que a crítica feminista classifica como mulher-objeto, assumindo o papel de mulher-sujeito. Paula Tavares expõe em seus versos o que é ser mulher em África no meio de tantos conflitos, expondo que o pensamento do feminino busca desconstruir a neutralidade que supostamente marcaria a construção do saber, como afirma Zolin:

Trata-se de escritoras que, tendo em vista a mudança da mentalidade descortinada pelo feminismo em relação à condição social da mulher, lançam-se no mundo da ficção, até então genuinamente masculino, engendrando narrativas povoadas de personagens femininas conscientes do estado de dependência e submissão que a ideologia patriarcal relegou a mulher (ZOLIN, 2009, p. 329).

Paula Tavares mostra que ser escritora é participar na formação da identidade nacional. Todas essas afirmações podem ser vistas no poema analisado, porque é perceptível que há um eu-lírico que convive com o conflito de seguir uma tradição, reproduzir atitudes e entregar-se ao rei, ou de subvertê-la. O sujeito-lírico vê-se diante do banquete do rei, da cama confortável do palácio, de uma submissão que deveria prestar a tamanha realeza, porém há uma preferência pelo corpo do escravo, esse que chegou para semear no seu corpo a “erva rasteira”, esse pelo qual ela trocou a confortável cama pelo chão onde deixou a marca do seu corpo. Foi a ele que entregou as tranças do seu cabelo, a sua sexualidade reprimida pelo patriarcado, pois é o escravo que possui a mão do tamanho exato dos seus seios. A ele se rende ao dizer: “[...] Devia olhar o rei mas baixei a cabeça/doce e terna/diante do escravo” (TAVARES, 2011, p. 191).

A relação entre o escravo e a mulher não se trata apenas de um mero ato sexual, mas de uma relação erótica. Sobre esse assunto, Octavio Paz (1995) discorre que o erotismo é invenção, variação incessante, porém o sexo é sempre o mesmo, ou seja, para o autor, como já foi citado o erotismo é uma metáfora, é a transfiguração

48 da sexualidade, pois no ato erótico há um mover-se tanto do poético como da imaginação. Não se pode falar do que é o erótico sem antes esclarecer que um dos principais conflitos, a confusão entre o que são sexualidade e erotismo, pois podem parecer semelhantes, porém são bem distintos e possuem finalidades diferentes como Octávio Paz ressalta:

Na sexualidade, o prazer serve a procriação; nos rituais eróticos, o prazer é um fim em si mesmo ou tem fins diferentes da reprodução. A esterilidade não é só uma nota frequente do erotismo como em certas cerimônias é uma das suas condições [...]. Na sexualidade a violência e a agressão são componentes necessariamente ligados à copulação e, assim, à reprodução; no erotismo as tendências agressivas emancipam-se, quero dizer: deixam de servir a procriação e tornam-se fins autônomos (PAZ, 1995, p. 10).

Paz (1995) propõe que a sexualidade, a prática do sexo em si, tem como objetivo final a mera reprodução da espécie, contudo o erotismo é um prazer em si mesmo, por isso o escritor afirma que a esterilidade é uma marca do erotismo, pois nesse caso a copulação não busca a procriação, mas uma busca pelos seus próprios objetivos. No poema “Devia olhar o rei” é perceptível a presença de um eu-lírico que vai além, que se desvia da obrigação imposta e escolhe o que mais lhe satisfaz, lançando-se no que Georges Bataille caracteriza como uma vertigem como a que é sentida quando se está prestes a jogar-se de um abismo. Sensação de tontura. Perda de sentidos e controle. Frio na barriga. Nada disso impede que se lance nesse abismo, mesmo sem saber o que está por vir. Assim acontece no ato erótico, lançando-se um no outro.

Bataille (2014) caracteriza o erotismo como violência, o teórico ainda afirma que os animais possuem o aspecto de se reproduzir, contudo somente ao homem foi entregue o erotismo. Só a raça humana possui um mundo subjetivo que busca no outro a correspondência aos seus desejos. No poema existe um eu-lírico que está diante de uma situação que lhe foi imposta, de uma obrigação, tradição a ser seguida, contudo essa mulher abre seu corpo e revela seus desejos mais íntimos, abre seu peito e mostra sua subjetividade, revela que seu prazer não está em cumprir um mero rito de passagem, como confessa: “Devia olhar o rei/mas baixei a cabeça/doce e terna/diante do escravo” (TAVARES, 2011, p. 191). Este sujeito-lírico anseia por lançar-se na satisfação de desejos mais profundos que só serão realizados pela transgressão. Desviando-se do padrão, assim como o erótico se desvia da mera reprodução, o eu-lírico se desloca do castelo até a senzala para satisfazer seu

49 erotismo, se arruma para o rei, contudo se entrega ao escravo, metaforizando nessa relação o que o erotismo possui em relação à sexualidade e a independência da mulher em suas escolhas.

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