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A poética do anônimo na poesia de Ana Paula Tavares

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Academic year: 2021

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NATAL/RN 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

LANUK NAGIBSON ARAÚJO SILVA

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Natal/RN 2019

LANUK NAGIBSON ARAÚJO SILVA

A POÉTICA DO ANÔNIMO NA POESIA DE ANA PAULA TAVARES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção de título de Mestre em Estudos da Linguagem.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.

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3 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Silva, Lanuk Nagibson Araújo.

A poética do anônimo na poesia de Ana Paula Tavares / Lanuk Nagibson Araújo Silva. - 2019.

102f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem,

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Natal, RN, 2019.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marta Aparecida Garcia Gonçalves.

1. Tavares, Ana Paula, 1952- - Dissertação. 2. Subalterno - Dissertação. 3. Poesia e anonimato - Dissertação. I. Gonçalves, Marta Aparecida Garcia. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de iniciar meus agradecimentos dedicando-os a Ele: Deus. Por simplesmente Ele ser Deus, já me é uma grande razão para agradecê-lo. Pelo dom da vida, pelo ar que respiro, pela casa, pela cama, pelo pão na mesa todos os dias, pelo melhor presente que me foi dado: o perdão. Podem continuar me falando que Deus é uma mentira ou delírio, se for, tem sido uma mentira que tem feito de mim um homem melhor e um cidadão de bem. Obrigado, Abba.

Quero expressar minha gratidão a minha família, meus pais e minha irmã, Kadigna Araújo Silva, Lúcio Nagibson Cabral Silva e Maria Letícia Araújo Silva. Com certeza tudo o que vivemos até aqui fortaleceu nossos laços. Obrigado aos meus pais que sempre fizeram de tudo para me ensinar o que era certo, me deram valores, me ensinaram a respeitar o próximo, seja ele semelhante ou diferente a mim. Obrigado porque com vocês aprendi a sobreviver na guerra que é a vida.

Também registro a minha eterna gratidão à avó que a universidade me deu: Professora Conceição Flores, como sempre digo: a senhora é minha Musa Inspiradora. Um dos meus maiores objetivos enquanto professor é conseguir ser pelo menos metade do que a senhora foi durante minha graduação. Anseio marcar a vida dos meus alunos como a senhora marcou a minha.

Agradeço a minha orientadora, Professora Doutora Marta Gonçalves, por ser esta sensibilidade metaforizada em pessoa. Obrigado por me ajudar a dar um sentido e um norte ao projeto olhando aqueles que realmente me afeiçoam: os subalternos e os invisíveis. Obrigado pelo auxílio na expansão de minha visão e me tornar mais sensível ao mundo.

Por fim, e não menos especial, dedico a cada pessoa em situação de rua, prostituta, travesti e criança órfã que cruzou minha vida. Quando estou com vocês me sinto vivo. Obrigado, Zé Márcio e Ana (casal que cuidei no Alecrim, ainda quero conhecer a pequena Ester), a Thazia, Elisangela, Marinez, Adriana Bombom, Renatinha Brasil, ao ‘Requebra’, enfim, as Marias, aos Joãos, as Joyces, os Pedros, as Renatas, aos invisíveis sempre presentes que compõem os cenários caóticos da nossa cidade. Eu amo vocês. Obrigado, a todos!

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5 [...] Nossa voz lua cheia em noite escura de desesperança

nossa voz farol em mar de tempestade nossa voz limando grades, grades seculares nossa voz, irmão! Nossa voz, milhares, nossa voz milhões de vozes clamando!

Nossa voz gemendo, sacudindo sacas imundas,

nossa voz gorda de miséria, nossa voz arrastando grilhetas nossa voz nostálgica de ímpis nossa voz África

nossa voz cansada da masturbação dos batuques de guerra

nossa voz negra, gritando, gritando! nossa voz que descobriu até o fundo, lá onde coaxam as rãs,

a amargura imensa, inexprimível, enorme como o mundo,

Da simples palavra: ESCRAVIDÃO [...]

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RESUMO

Nascida em 1952, em Lubango, província de Huíla, Angola, Ana Paula Tavares é graduada em História pela Universidade de Lisboa (1982). Possui Mestrado em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de Lisboa (1969) e é Doutora em Antropologia da História pela Universidade Nova de Lisboa (2010). Diante dos tabus impostos sobre a sexualidade feminina, Paula Tavares nos confronta ao nos colocar diante do corpo da mulher e apresentá-lo como território misterioso que somente a dona o conhece com profundidade. A escritora apresenta uma escrita marcada por temas que tratam sobre o que é ser mulher em Angola pós- descolonização. Este trabalho tem como corpus poemas da antologia poética Amargos como os frutos, publicada no Brasil em 2011, e objetiva um estudo sobre a voz do anônimo, sobre quem são esses anônimos que compõem a poesia de Tavares e como a poetisa utiliza sua escrita e voz para representar e ficcionalizar os oprimidos. A pesquisa tem como aporte teórico os conceitos de literatura comparada e influência de Sandra Nitrini (2015), a distinção entre sexualidade e erotismo dado por Octávio Paz em A dupla chama (1995), o conceito de erotismo por Georges Bataille (2014), os estudos acerca do corpo, oferecidos pela crítica feminista de Lúcia Osana Zolin e de Elódia Xavier (2007), assim como as considerações da teoria pós-colonial de Thomas Bonnici (2009). Os estudos acerca do anonimato se dão por Jacques Rancière em La palabra muda (2009), O fio perdido (2017), Políticas da escrita (2017) e os estudos de subalternidade por Gayatri Spivak em Pode o subalterno falar? (2014), as considerações sobre lugar de fala por Djamila Ribeiro no ensaio: O que é lugar de fala (2017) e os apontamentos sobre feminismo e estudos de gênero pela escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em Sejamos todos feministas (2015) e Para educar crianças feministas: um manifesto (2017).

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ABSTRACT

Ana Paula Tavares was born in 1952, in the city of Huíla, Angola. Ana Paula Tavares was graduated in History from the Universidade Lisboa (1982). She holds a Master's. in the African’s Literatures and Ph.D in History’s Anthropology by the Universidade Nova de Lisboa (2010). Faced with the taboos imposed on women's sexuality, Paula Tavares confronts the woman's body and presents as a mysterious should de discovered. The writer presents a writing marked by themes that deal with women in Angola after decolonization, but all her poemas were published in Brazil just in 2011. This master’s work aims study the voice of the anonymous, who are these anonymous that compose a poetry of Tavares and how the poet uses her writing to give voice to the oppressed. The research has as a theoretical contribution, the concepts of comparative literature and influence by Sandra Nitrini, the distinction between sexuality and eroticism given by Octavio Paz in A dupla chama (1995), the concept of eroticism by Georges Bataille, studies about the body, offered by the feminist critique of Lúcia Osana Zolin and Eloída Xavier, as well as the considerations of the postcolonial theory of Thomas Bonnici. Studies on anonymity are based on Jacques Rancière’s studies like La palabra muda (2009), O fio perdido (2017), Políticas da escrita (2017) and the subaltern studies by Gayatri Spivak in Pode o subalterno falar? (2014), and on the Djamila Ribeiro's essay: O que é lugar de fala? (2017) and Notes on feminism was based in Studies of feminism by the Nigerian Writer, Chimamanda Ngozi Adichie, in Sejamos todos feministas (2015) and Para educar crianças feministas: manifesto (2017).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 9

1 MENINA, MOÇA E MULHER ... 18

1.1 A menina ... 22

1.2 A moça ... 29

1.3 A mulher ... 36

2 SANTA E LOUCA ... 42

2.1 A mulher reescrevendo e se reescrevendo na história por meio do erótico e do sagrado ... 45

2.1.1 “Devia olhar o rei” ... 45

2.1.1.1 O eu-lírico transgressor ... 46

2.1.1.2 O interdito real ... 49

2.1.1.3 O escravo: a transgressão prescrita ... 50

2.1.2 O corpo erotizado em “Deixa as mãos cegas” ... 52

2.1.3 O sagrado como emancipação: uma breve comparativa com Cântico dos Cânticos ... 54

2.1.4 Entre a santa e a louca ... 71

3 A HISTÓRIA DOS QUE FICAM ... 77

3.1 A esposa ... 78

3.2 O canto materno ... 86

3.3 As crianças ... 90

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 94

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INTRODUÇÃO

Seres humanos não deveriam ser pensados da mesma forma, pois isso seria destituir-lhes de humanidade.

Djamila Ribeiro

A legitimação da estrutura poliforma do funcionamento legal, “internamente” incoerente e aberta nos dois extremos, por meio de uma visão binária, é a narrativa da codificação que ofereço como um exemplo de violência epistêmica.

Gayatri Spivak

Dentre os questionamentos que serão levantados nesta dissertação1, pensamentos me surgem por todas as partes, perguntas como: O que faz com que uma história seja verídica?; Quem está contando a verdadeira história?; Como classificar uma história como verdadeira ou falsa?. Enfim, são diversas questões que me envolvem e me fazem pensar, dependendo da resposta, saberemos para onde tem caminhado a humanidade. De modo geral, somos ensinados e reproduzimos em nossas escolas o lado “branco” da história: portugueses fortes e corajosos desbravaram o mar e nos aproximaram da civilização, nos fizeram gente. Contudo, reflito: A custa de que e de quem isto foi feito?. Somos doutrinados que devemos ser gratos à Europa, pois graças a eles, temos uma língua, nação e somos um povo. Não. Paro, mais uma vez, e pergunto-me: À custa de quem a história foi construída? Um dos nossos grandes problemas, problemas do mundo é o que a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2010) define como “O perigo de uma história única”, em uma palestra com nome homônimo – transcrita pelo GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra – na qual afirmou:

E quando comecei a escrever, por volta dos sete anos, histórias com ilustrações em giz de cera, que minha pobre mãe era obrigada a ler, eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs. E eles falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido. Apesar do fato que eu morava na Nigéria [...]. A meu ver, o que isso demonstra é como nós somos impressionáveis e vulneráveis em face de uma história, principalmente quando somos crianças. Porque tudo que eu 1 Todas as traduções ao longo deste trabalho foram realizadas pelo autor. Mantivemos, em todas as citações ao longo deste trabalho de dissertação, a ortografia e a sintaxe originais dos textos teóricos e literários de cada autor.

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havia lido eram livros nos quais as personagens eram estrangeiras, eu convenci-me de que os livros, por sua própria natureza, tinham que ter estrangeiros e tinham que ser sobre coisas com as quais eu não podia me identificar [...] (ADICHIE, 2010).

Vivemos em um mundo em que não procuramos investigar os diversos lados dos fatos, conhecemos uma História Oficial que foi – politicamente e ideologicamente – cristalizada, aceitamos e a tomamos como uma verdade absoluta, esquecemo-nos de olhar o outro lado, conhecer o ainda obscuro. Temos como verdade a história dos portugueses que colonizaram o Brasil, “salvaram” a nossa pátria e nos civilizaram. Não paramos para pensar que esta não é a única face da história que merece ser contada, houve pessoas que pagaram um alto preço para que hoje eu pudesse estar aqui fazendo esta pesquisa que muito me desafia. Se quisermos conhecer a verdadeira história de um povo, de uma nação, não é para os poderosos que devemos prestar a nossa atenção, para Jacques Rancière, devemos:

Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos, identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização os detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstruir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário antes de ser científico. [...] O conhecimento histórico integrou a oposição quando contrapôs à velha história dos príncipes, batalhas e tratados, fundada na crônica das cortes e relatórios diplomáticos, a história dos modos de vida das massas e dos ciclos da vida material, fundada na leitura e interpretação das “testemunhas mudas” (RANCIÈRE, 2015, p. 49-50).

O olhar da história deve se voltar para os anônimos, para aqueles que, calados, lançaram mão de suas vidas para construir a história do mundo. São histórias que se perderam, propositalmente, nas senzalas, nos porões dos navios e nas curvas do tempo, pois “A própria literatura se constitui como uma determinada sintomatologia da sociedade e contrapõe essa sintomatologia aos gritos e ficções da cena pública” (RANCIÈRE, 2015, p. 49).

Apesar de ter iniciado falando sobre a dominação colonial dos portugueses sobre africanos e brasileiros, nesta pesquisa, irei analisar como o anônimo possuiu um papel fundamental na construção da sociedade Angolana, não em uma Angola colonial, mas em uma Angola que ao longo do seu processo histórico lutou para se constituir enquanto nação. Apesar do desafio temporal, geográfico e principalmente cultural, me arriscarei em adentrar em musseques2 de Angola e conhecer quem fez história naquela nação, quem são os seus verdadeiros heróis, pois devemos saber

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11 “Que uma época e uma sociedade possam ser lidas nos traços, vestimentas ou gestos de um indivíduo qualquer [...] que o esgoto seja revelador de uma civilização [...]” (RANCIÈRE, 2015, p. 47), e será por meio da representação dos anônimos nos poemas de Ana Paula Tavares, que iremos perceber aqueles que se fazem presentes por meio de sua ausência.

Ana Paula Tavares nasceu em Lubango, província de Huíla, localizada no sul de Angola, em 30 de outubro de 1952. É historiadora, formada pela Universidade de Lisboa, possui mestrado em Literaturas Africanas e Doutorado em História e Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa. Dona de uma escrita enigmática, simbólica e metafórica, Paula Tavares usa imagens do coloquial e do cotidiano para descrever a vida da mulher em Angola de 1980. Utilizando-se do sangue, dos ritos, da água, das frutas, dos rios, desertos, cânticos, provérbios populares e, principalmente, do grito, Tavares transcreve os signos e as metáforas para dar a sua versão de como a história se fez. De acordo com a estudiosa Carmem Lúcia Tindó Secco é possível afirmar que:

Paula foi uma das responsáveis pela fundação, em Angola, de uma nova dicção poética que repensava a questão da sexualidade reprimida das mulheres e não se eximia de refletir sobre as desilusões sociais, mostrando- se contrária à opressão e à dor. [...] As águas que umedecem sua poesia são as das lágrimas femininas e as dos lagos de sua região natal. Águas doces, que, entretanto, se apresentam, por vezes, amargas, em razão dos constantes sofrimentos vividos pelos povos angolanos, em especial pelas mulheres que, além de vítimas do machismo [...] o foram, também de guerras que perduraram mais de 40 anos em Angola (SECCO, 2011, p. 262).

Sua carreira literária conta com a publicação de oito livros, entre prosa e poemas. Podemos encontrar no Brasil apenas a sua obra poética reunida na antologia Amargos como os frutos (2011), composto pelos livros: Ritos de passagem (1985), O lago da lua (1999), Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), Ex-votos (2003), Manual para amantes desesperados (2007) e Como veias finas na terra (2010), e o livro de crônicas Um rio preso nas mãos (2019) lançado pela editora Kapulana. Acerca de sua fortuna crítica temos pesquisas que seguem, em sua maioria, estudando sobre as relações de seus poemas com o corpo da mulher, como: “A pele de uma escrita: a dicção feminina na poesia de Paula Tavares” por Cannigia de Carvalho Gomes (UFRN, 2017), “Corpo lavrado – a poesia telúrica de Ana Paula Tavares”, de Maria Lúcia Outeiro Fernandes (Unesp, 2011), “O erotismo e as representações do feminino em Ritos de Passagem”, de Paula Tavares por Mailza Rodrigues Toledo Souza,

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12 pesquisa publicada na Revista de Estudos em Língua e Literatura (UFS, 2010) e além de outras pesquisas em torno da relação poesia/corpo. Concordamos que na poética de Paula Tavares não há como desvincular a relação existente entre poesia e corpo, mas o que proponho a estudar vai para além desta relação, posto que investigo de quem é esse corpo inscrito nos poemas, quem são as vozes que o habitam e qual sua relação com a sociedade em que está inserida.

Nascida e criada em um país assolado pelas guerras, Paula Tavares representa, metonimicamente, o grito das mulheres que ecoou em meio ao som das armas. No seu livro de estreia, o eu-lírico de Tavares critica as práticas falocêntricas e autoritárias para com as mulheres. A poetisa põe em questão como a mulher é vista e tratada pela sociedade patriarcal da época, ousadamente expõe a cultura do alambamento3, revolta-se contra os interditores do comportamento feminino.

Um aspecto importante no discurso poético de Paula Tavares é sua estreita relação com o anônimo, definido por Rancière (2015, p. 50) como as “testemunhas mudas” da sociedade. Verifica-se que sua relação com o subalterno não é algo que ocorre em uma obra ou em um conjunto de poemas específicos, mas se presentifica em toda sua antologia poética. Os esquecidos e silenciados, aqui, se fazem presentes e falantes, tornam-se sujeitos. Então, o que seriam e quem seriam estes anônimos presentes e responsáveis por compor a “poesia de Tavares”? Jacques Rancière (2005) os define como aqueles que: “[...] adquiere consistencia gracias a su misma ausencia4” e aprofunda:

Aquella que resumió aquel día esta fuerza política es alguien que estaba allí como habría podido estar em otra parte, que pertenecía a la masa indiscriminada de aquellos cuya vida no hace la historia. Pero por otro lado, este anonimato, una vez transformado em subjetivación política, experimenta uma segunda transformación. Cobra uma dimensión propiamente estética. [...] Lo anónimo no es por tanto ninguna sustancia. Es una relación de tres términos, de tres anonimatos; el anonimato ordinario de una condición social, el devenir-anónimo de una subjetivación política, el devenir-anónimo

3 Chevalier e Gheerbrant (2002) atestam que o casamento é tido como algo sagrado, simbolizando não apenas a origem da vida humana, mas constituindo-se em uma das cerimônias mais importantes dentro das sociedades. Em Angola, a união de duas pessoas ou casamento apresenta também, algumas características universais como: a necessidade de reconhecimento social da união, a garantia da continuidade por meio da geração de filhos. Assim, ocorre o alambamento, uma série de rituais da tradição cultural angolana, vinculados à união de duas pessoas, como ofertas em bens ou dinheiro, pedido da mão da noiva, tudo com vistas a garantir o fortalecimento dos vínculos culturais, afetivos e mesmo financeiros existentes entre os membros das famílias envolvidas, gerando uma célula social nova.

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característico de un modo de representación artística (RANCIÈRE, 2005, p. 82-83)5.

Em entrevista6 cedida pela TAAG – Linhas Aéreas de Angola ao Portal Buala – Tavares (2010) declarou: “Nasci [...] no meio de uma sociedade colonial injusta”. Crescida em um país movido por guerras e conflitos, Paula Tavares traz em sua escrita a voz daqueles que se fizeram presentes por meio da ausência. São as meninas, moças, mulheres, órfãos, guerrilheiros, viúvas e muitos outros “personagens” que protagonizam o sujeito-lírico da escritora. Ana Paula Tavares conta a mesma história que já conhecemos, porém agora sob uma nova perspectiva: o olhar daqueles que fundem as suas experiências pessoais às batalhas travadas no país e que, também, fizeram a história acontecer. Os mudos falam como propõe Spivak:

O subalterno não pode falar. Não há valor nenhum atribuído a “mulher” como um item respeitoso a lista de prioridades globais. A representação não definhou. A mulher como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com floreio (SPIVAK, 2014, p. 165).

Posto em lugares onde suas humanidades não são reconhecidas, sua subalternidade e anonimato são evidenciados por um lugar silenciado, restando apenas à resistência destes grupos, oprimidos, que devem e podem falar por si. São estes fatores que Tavares incorpora em sua escrita, seu desejo não é falar por ninguém, muito menos falar de alguém. A poetisa não está sendo mais uma contadora de histórias alheias, ela está (re)contando a história de sua terra, do seu povo, a sua própria história, como confessa em “Desossaste-me” (TAVARES, 2011, p. 55):

Desossaste-me Inscrevendo-me

cuidadosamente no teu universo como tua ferida uma prótese maldita necessária conduziste todas as minhas veias

para que desaguassem

5 Aquele, que resumiu esta força política naquele dia, é alguém que estava lá e não poderia estar em

outro lugar, pois pertencia à massa indiscriminada daqueles cuja vida não faz parte da história. Por outro lado, esse anonimato, uma vez transformado em subjetivação política, passa por uma segunda transformação. É preciso enxergar uma dimensão estética adequada. [...] O anônimo não é, portanto, um simples sujeito. É uma relação dividida em três instâncias, em três tipos de anonimatos: o anonimato comum dado por uma condição social, o tornar-se anônimo por meio de uma subjetivação política e a característica de tornar-se anônimo por um modo de representação artística”.

6 Entrevista realizada com Paula Tavares pelo jornalista Pedro Cardoso, publicada pela TAAG – Linhas Aéreas de Angola e cedida ao Portal Buala.

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nas tuas

sem remédio meio pulmão respira em ti

o outro, que me lembre

mal existe Hoje levantei-me cedo

pintei de tacula e água fria o corpo aceso não bato a manteiga não ponho o cinto VOU

para o sul saltar o cercado.

Poema presente em seu primeiro livro, Ritos de passagem (1985), a poetisa prepara seu leitor para o que vem pela frente, convidando-o a uma reflexão sobre uma das figuras mais silenciadas em África: a mulher. De maneira “leve” e metafórica, Paula Tavares (2011, p. 55) relata como é ser mulher sob a ótica angolana, descreve- a como: “[...] tua ferida/uma prótese/maldita necessária [...]”, ou seja, a figura da mulher está presente por ser algo que não possui muito valor, o lado feio, ferido e machucado da sociedade, mas que se faz necessária e essencial para que as coisas aconteçam. Uma figura isenta de autonomia, afinal: “[...] meio pulmão respira em ti/o outro, que me lembre/mal existe” (TAVARES, 2011, p. 55). É por meio desta ausência que a figura anônima da mulher e da escritora se fazem presente, ao se reconhecer como subalterna, enxergando o seu lugar de silêncio, contudo respondendo a subjugação com resistência e voz, afronta os opressores: “[...] Hoje levantei cedo/pintei o corpo de tacula e água fria [...] VOU/para o sul saltar o cercado” (TAVARES, 2011, p. 55). Ana Paula reage à opressão preparando-se para a guerra, com o corpo pintado de tacula e não só vai, como voa, não para o norte, lugar de certezas e seguranças, mas alça vou para o sul, saltando todo tipo de cercado, prisão ou mordaça que a tente silenciar.

A voz da poetisa quebra tabus, transpõe barreiras de uma cultura eurocêntrica e falocêntrica, rompe o cânone marcado pela presença masculina e faz nascer um eu- lírico feminino que fala do que é ser mulher em um país africano, onde a “mulher foi duplamente colonizada” (BONNICI, 2009, p. 266). A escritora se faz viúva, mãe, órfã, noiva e amada, torna a mulher sujeito, elevando a sexualidade feminina ao sagrado e ao poético. Seu corpo tem voz, seus poemas nos deslocam, desconcertam e nos convidam a uma constante desconstrução dos limites erguidos pelo patriarcado. A escritora utiliza elementos típicos da cultura e geografia angolana – a tacula, a

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15 manteiga, o cinto, o sul e o cercado – para metaforizar o corpo da mulher e elevá-lo ao sagrado.

Estudando a voz do anônimo mediada pela poesia de Tavares, veremos como este sujeito-lírico mimetiza a voz deste outro, transparece como os excluídos que participam da sociedade e como utiliza da arte para ressignificar a existência destes na sociedade, sobre isto Rancière (2015, p. 47) diz:

Pode-se até inverter a fórmula: porque o anônimo tornou-se um tema artístico, sua gravação pode ser uma arte. Que o anônimo seja não só capaz de tornar-se arte, mas também depositário de uma beleza específica, é algo que caracteriza propriamente o regime estético das artes. [...] foi ele que, com sua nova maneira de pensar a arte e seus temas, tornou-as possível. O regime estético das artes é, antes de tudo, a ruína do sistema de representação, isto é, um sistema em que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos gêneros de representação [...] que o esgoto seja revelador de uma civilização [...].

Tavares nos expõe o ordinário, o dia a dia, o cotidiano, em meio à rotina fatigante, a poetisa põe em cena os musseques angolanos e convida a passear por eles conhecendo os que a habitam. Em sua poesia são os silenciados que contam o que é ser angolano, Paula Tavares como o “qualquer um” em ascensão:

[...] a assunção de qualquer um: [...] A revolução técnica vem depois da revelação estética. Mas a revolução estética é antes de tudo a glória do qualquer um – que é pictural e literária, antes de ser fotográfica ou cinematográfica. Acrescentamos que ela pertence à ciência do escritor antes de pertencer à do historiador. [...] São a nova ciência histórica e as artes da reprodução mecânica que se inscrevem na mesma lógica da revolução estética. Passar dos grandes acontecimentos e personagens à vida dos anônimos identificar os sintomas de uma época, sociedade ou civilização nos detalhes ínfimos da vida ordinária, explicar a superfície pelas camadas subterrâneas e reconstruir mundos a partir de seus vestígios, é um programa literário, antes de ser científico (RANCIÈRE, 2005 p. 48-49).

Assim, com o intuito de conhecer os anônimos apresentados pela poesia de Paula Tavares, esta pesquisa divide-se em quatro capítulos. No capítulo 1, por meio dos poemas, “A abóbora menina”, “A anona”, “A nocha” e “A nêspera”, analisaremos como as meninas se enxergam na história de Angola e o quanto elas se sentem participantes desta nação. Ainda no primeiro capítulo, analisaremos os poemas “Cerimônia de passagem” comparando-o com “No lago branco da lua” e “A manga” com “Ex-votos”, agora na perspectiva das moças angolanas, que deixaram de ser meninas e estão prontas para a procriação, relatando o seu papel na sociedade e, por fim, estudaremos os poemas “A ternura tem som, riso e lágrimas”, “Colonizámos a vida” e “Vieram muitos”, estudando uma das principais figuras anônimas que se

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16 presentifica na poesia tavariana, a mulher, e como esta também possui a sua versão da história sobre como Angola se construiu e sobre como a mulher é enxergada no país.

No capítulo que se segue, intitulado de “Santa e louca”, veremos como a figura subalterna e anônima da mulher, que predomina na poesia de Paula Tavares, utiliza corpo, erotismo e sagrado para sair do lugar de subjugação. Na primeira parte, analisando os poemas “Deixa mão pousada na duna”, “Devia olhar o rei”, “Deixa as mãos cegas”, “Das duas de mim só percebeste”, veremos como este eu-lírico se comporta perante os interditos sociais e o que faz para transgredi-los. Na segunda parte, fará uma breve comparativa com o livro sagrado Cântico dos cânticos e como o eu-lírico proposto por Paula Tavares dialoga com o eu-lírico feminino, sulamita do livro bíblico.

No capítulo 3, por meio dos poemas “O meu amado chega”, “Amargos como os frutos”, “November without water”, “O leite”, “A mãe”, “A mãe e a irmã”, “Entre Lagos” e “O carcado”, estudaremos como a guerra civil afetou a vida dos moradores de Angola e quais foram as consequências na vida da população. Nesta seção escuta- se o choro da mãe que perdeu o filho, o lamento das crianças anônimas que ficaram órfãs, a espera interminável da noiva que aguarda incessantemente o regresso do amado e a esposa que recolhe em si as falas amargas do esposo psicologicamente afetado pelos confrontos armados.

Na tentativa de subverter as ordens impostas, não possuo a intenção de falar por ninguém, mas de me fazer um com aqueles que de algum modo me construíram e me ajudaram a me entender no mundo. E é por meio da literatura angolana, que em dias brancos, me sinto representado neste mundo limitado, é através da poesia feminina e feminista de Paula Tavares que também encontro minha voz. A palavra muda7 na poesia de Tavares fala o que deve e o que não deve a quem queira e não queira ouvi-la. Tendo em vista que:

O que esse entrelaçamento determina, então, não é a relação do poeta com a política, nem a presença da política no poema. É a própria política da poesia, a maneira pela qual ela configura o espaço em que se inscrevem suas produções. Ela faz isso instituindo uma comunidade tripla. Em primeiro lugar [...] as palavras e as presenças que elas suscitam [...] são as figuras, as 7 Conforme Rancière, ‘a palavra muda’ é aquela dita pelos anônimos, a palavra que se esquiva ao registro da história oficial e é colocada novamente na cena histórica a partir de outros modos de falar, escrever e ler, conseguindo atingir “o estatuto da visibilidade, audibilidade e legibilidade”. Para Rancière, é por meio das palavras mudas que os anônimos aparecem como sujeitos da história.

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histórias que as agrupam, os universos que elas desdobram ou os ritmos que acompanham suas aparições e desaparições. Em segundo lugar [...] os que o poeta escreve e os que ele não escreveu: os que continuarão a ser visões de sue espírito [...] finalmente, os que a nova sensibilidade da era das revoluções já vê presente em todas as manifestações da vida (RANCIÈRE, 2017a, p. 81-82).

Analisando o que Paula Tavares escreve, as situações que ela constrói e as populações que ela convoca em sua escrita, será feita a reflexão acerca do anônimo nesta pesquisa, utilizando-se de Jacques Rancière, em ensaios como A partilha do sensível (2015), O fio perdido (2013), Políticas da escrita (2017), Sobre políticas e estéticas (2005), La palavra muda (2009). Também há um diálogo com Gayatri Spivak em torno do subalterno no ensaio Pode o subalterno falar? (2014).

Sobre as questões da crítica feminista utilizaremos as considerações de Djamila Ribeiro em O que é lugar de fala? (2017) e da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie em Sejamos todos feministas (2014) e Para educar crianças feministas: um manifesto (2017). Para estruturar alguns aspectos acerca do corpo, tratei a temática do “corpo erotizado” sugerido por Elódia Xavier em Que corpo é esse? (2007). Georges Bataille e Octávio Paz trarão considerações acerca do erotismo, em O Erotismo (2014) e em A dupla chama (1982).

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18

1 MENINA, MOÇA E MULHER

ele costumava dizer: “você só é doce quando quer” mas moço, eu sou mulher não sobremesa. Adélia Danielli

Ser mulher é resistir. Nascer mulher é nascer – suponho – condenada a uma série de imposições sociais que a categoriza em uma tentativa de dominância, aquelas que aparentemente são mais frágeis e submissas do que o homem, afinal, este foi criado primeiro e foi feito para governar, inclusive ser dono do corpo da parceira. Gera-se uma relação altamente hierárquica e de marginalização para com a mulher, seu corpo, suas funções e atributos. Sobre isso a poetisa potiguar, Marize Castro (2016, p. 23), no poema “Perigo”, afirma:

PERIGO

É perigoso, menina, sair de casa sem seu guarda-chuva perolado sem seu fogo mortífero

sem seu sexo sempre aberto aos apelos do mundo.

É perigoso, menina, se deixar para trás, e de lá não se jogar.

É perigoso, menina (muito perigoso) não parar de buscar o paraíso e se lambuzar de prazeres alheios. É perigoso, menina, beijar a boca de alguém tão mais velho

e se perder assim:

não mais saber onde reside

a primeira luminância, a última escuridão. É perigoso, menina, acreditar na memória jogar-se de tal altura

inflar-se de clichês

quebrar suas asas tão jovens asas e não cair.

É perigoso, menina, proteger-se

e se armar demais, querer o outro, ser o outro -habitar o inabitável.

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19 É perigoso ser menina, moça e mulher. Cercadas por estereótipos as mulheres tentam sobreviver a esta verdadeira guerra que é a vida. A máquina do patriarcado8 está à disposição de todos, ainda que de modo inconsciente, a acionem e sejam mais um a reproduzir o discurso machista e falocêntrico. De tanto que repetimos algo, isto acaba se tornando uma “verdade” para a sociedade, toma-se como certo e fecha-se o cerco para novos pensamentos, ideias e vozes, como diz Chimamanda Ngozi Adichie:

Se repetimos várias vezes uma coisa, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. [...] Se só os homens ocupam cargos de chefia nas empresas começamos a achar “normal” que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens (ADICHIE, 2015, p. 16).

Se repetirmos que para ser mulher tem que ser assim ou fazer isto e não fazer aquilo; que o lugar da mulher é apenas na cozinha, arrumando a casa, cuidando dos filhos e que o seu corpo é para o seu esposo, no sentido de que ela tem a obrigação de fornecer-lhe prazer e filhos, tais fatos tornam-se reais, na verdade já são reais e hoje lutamos para romper com esta subjugação opressora que as mulheres têm vivido. Quando nos referimos a países que sofreram com a colonização, estamos falando de uma repressão mais profunda, pois temos, segundo Bonnici:

A mulher como metáfora da colônia: “[...] se o homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada. [...] o objetivo dos discursos pós-coloniais e do feminismo é a integração da mulher marginalizada à sociedade. [...] Nesses debates, o feminismo trouxe à luz muitas questões que o pós-colonialismo havia deixado obscuras; por outro lado, o pós-colonialismo ajudou também o feminismo a precaver-se de pressupostos ocidentais do discurso feminista. [...] a dupla colonização causou a objetificação da mulher pela problemática da classe e da raça, da repetição de contos de fadas europeus e da legislação falocêntrica apoiada por potências ocidentais (BONNICI, 2009, p. 25).

Como uma aranha que delicadamente constrói sua teia, Ana Paula Tavares, ou simplesmente Paula Tavares, em seu primeiro livro: Ritos de Passagem (1985), usa dos símbolos e elementos corriqueiros e típicos de Angola para metaforizar – principalmente – o corpo da mulher e por meio deste dá voz aquela que é uma das figuras mais ativas na cultura angolana, porém, na mesma medida, mais condenada

8 Expressão criada pelo sociólogo francês Pierre Félix Bourideu e utilizada pela socióloga Heleieth B. Saffioti para explicar o efeito da dominação patriarcal nas sociedades contemporâneas, apontando que: “Além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, funciona como uma engrenagem quase automática, pois pode ser acionada por qualquer um, inclusive por mulheres” (SAFFIOTI, 2004, p. 101).

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20 ao silêncio e ao anonimato. Sobre ser poeta e usar das palavras como uma arma de combate, podemos ver que:

A indolência poética é assimilada ao trabalho de um inseto cuja a atividade industriosa também é um modelo de composição artística. É imitando a aranha, que se apoia na extremidade das folhas ou nos galhos, que o poeta pode, a partir de quase nada tecer sua tapeçaria celeste [...]. É como um tecido comum, constantemente tecido de novo a partir de tal ou tal pedaço, que a poesia pode pertencer a todos. É preciso, então, a diligência das aranhas sonhadoras, de aranhas cujo trabalho é liberto de sua função utilitária, ou seja, de sua função predadora (RANCIÈRE, 2017a, p.84).

Tavares faz dos seus poemas um ponto inicial para uma metanoia em seus leitores, porque “Tecer a teia não é entrelaçar as sensações em um bordado próprio para atrair o leitor, é fazer delas os pontos de partida, propensas a criarem círculos multiplicados em que são despertados, para alguns leitores ou sonhadores” (RANCIÈRE, 2017a, p. 88). Criadora de confrontos, Ana Paula Tavares afronta a cultura local ao publicar em 1985, poemas que falam do que é ser mulher, por meio de um sujeito-lírico assumidamente feminino, e através do corpo da própria mulher. É por meio dos provérbios, da vegetação, da paisagem, dos lagos e principalmente dos frutos que há esta ressignificação. É por meio da manga, da abóbora, do mamão, do maboque e da anona, que Tavares presentifica o anonimato sofrido pela mulher. A poetisa confronta a história afirmando que: “colonizamos a vida/plantando/cada um no mar do outro” (TAVARES, 2011, p. 31), e por meio de seus poemas, busca um lugar que é seu e que por tempos se viu perdido nas mãos dos homens. É tecendo as palavras que a poetisa escreve o que acha que tem que ser dito, pois

la poesía no inventa, no es la tekhné de un personaje, el artista, que construye una ficción verosímil para complacer a otro personaje llamado espectador, igualmente hábil em el arte de hablar. Es un lenguaje que dice las cosas “como son” para quien se despierta al lenguaje y al pensamiento, como las ve y las dice, como no puede dejar de verlas y decirlas. Es la unión necesaria de una palavra y un pensamiento, de un saber y una ignorancia. Es esa revolución en la idea de poeticidad lo que resume la ertiginosa cascada de sinonimias que abre el capítulo de la lógica poética: “Lógica viene de logos” (RANCIÈRE, 2009a, p. 51)9.

9 A poesia não inventa, não é a história aleatória de um personagem, o artista é quem constrói uma ficção pautada na realidade para agradar a outro personagem chamado espectador, igualmente hábil na arte do falar. É uma linguagem que diz as coisas "como são" para aqueles que concordam com a linguagem e com o pensamento pelo que veem e sentem, pois o ser humano não consegue parar de vê-los e dizê-los. É a união necessária da palavra com o pensamento, do conhecimento com a ignorância. É essa revolução na ideia da poética que resume a cascata inerte de sinônimos que abre o capítulo da lógica poética: ‘A lógica vem de logos’.

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21 Como afirma Rancière, a poesia não inventa, ela não é uma técnica construída pelo artista, mas trata-se de uma linguagem que disseca as coisas, ressignificando seu universo, fazendo dos seus poemas um ponto de encontro entre o Homem e a poesia, afinal como afirma Octávio Paz (2012, p. 27-28):

Não há cores nem sons em si, desprovidos de significação: tocados pela mão do homem, eles mudam de natureza e adentram o mundo das obras. E todas as obras desembocam no significado; o que o homem toca se tinge de intencionalidade: é um ir para... O mundo do homem é o mundo do sentido. [...] O próprio silêncio é povoado de signos.

Paula Tavares tocou no silêncio. Para ela, o sentido habita no silêncio, pois nele os subalternos se fazem presentes. Não foi por acaso que a poetisa deu voz àquelas que, caladas, construíram a história, metáforas da colônia, para a escritora, as mulheres são fundadoras do mundo, e os poetas “fundadores do povo”:

Los “poetas” también son teólogos y fundadores de pueblos. Los “jeroglíficos” a través de los cuales la providencia divina se manifesta a los hombres y les proporciona el conocimiento de sí mismos no son signos enigmáticos, despositarios de una sabiduría escondida, sobre los cuales se han forjado tantas interpretaciones y quimeras. [...] Son los instrumentos y los emblemas, las instituiciones y los monumentos de la vida común (RANCIÈRE, 2009a, p. 53)10.

Assim como seu povo, a palavra de Ana Paula Tavares é muda, contudo, a grande diferença é que no silêncio de seus poemas, a escritora fala tudo a todos, sem dizer absolutamente nada. As palavras estão à disposição de todos aqueles que se permitirem dar ouvidos à angolana, e assim, conhecer a história de Angola por meio do seu sujeito-lírico como veremos a seguir.

10Os ‘poetas’ também são teólogos e fundadores do povo. Os ‘hieróglifos’ através dos quais a providência divina se manifesta aos homens e lhes proporciona autoconhecimento não são sinais enigmáticos, substitutos de sabedoria oculta, sobre as quais tantas interpretações e fabulações foram forjadas. [...] Esses são instrumentos e emblemas, instituições e monumentos da vida comum.

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22

1.1 A menina

Papai nunca me mandou

escolher este daqui ou aquele dali.

Ainda assim,

fui teimosa.

Ana Elisa Ribeiro

Não há melhor maneira de começar a falar sobre a voz da mulher calada se não pelo princípio: a infância. Tempo de ingenuidade, inocência, brincadeiras, sonhos e projetos, para algumas crianças, não para todas. Em um ambiente no qual as meninas são ensinadas a se “realizarem” por meio do matrimônio, da maternidade e dos serviços domésticos, somos alertados pela escritora Chimamanda Ngozi Adichie a mudar a maneira pela qual educamos as meninas e, segundo a nigeriana, devemos educar as meninas de modo feminista:

Condicionamos as meninas a aspirarem ao matrimônio e não fazemos o mesmo om os meninos; assim, de partida, já há um desequilíbrio tremendo. As meninas vão crescer e se tornar mulheres preocupadas com o casamento. Os meninos vão crescer e se tornar homens que não são preocupados com o casamento. As mulheres vão casar com esses homens. A relação é automaticamente desigual porque a instituição tem mais importância para um do que para o outro. Então, qual é a surpresa, se em muitos casamentos, as mulheres sacrificam mais, em detrimento delas mesmas, pois têm de mandar constantemente uma troca desigual? (ADICHIE, 2017, p. 40).

O primeiro livro de Paula Tavares, Ritos de passagem, surge no cenário angolano como uma semente fértil em terreno de terra seca, iniciando um novo diálogo e uma nova dicção poética no país, criticando coisas que antes não haviam sido criticadas pela literatura, como por exemplo, o alambamento, ou seja, o dote prescrito na cultura local como a troca de noivas por vacas e grãos, como explica Carmen Lúcia Tindó Secco (2011, p. 264). Assim como Tavares fala em “A rapariga”:

A RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar Amarraram-me às costas a tábua Eylekessa

Filha do Tembo organizo o milho

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23

Trago nas pernas pulseiras pesadas Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi Dos meus ancestrais ficou-me a paciência

O sono profundo do deserto,

a falta de limite... Da mistura do boi e da árvore

a efervescência o desejo a intranquilidade a proximidade do mar Filha de Huco

Com a sua primeira esposa Uma vaca sagrada

o favor das suas tetas úberes (TAVARES, 2011, p. 49).

concedeu-me

Em tom confessional e doloroso, Tavares faz-se voz das moças juradas em casamento a homens desconhecidos e a velhos aproveitadores. Elas vêm crescendo junto de si o boi com que brincam, fazem carinho e desejam que ele não cresça, pois será um sinal de que sua infância está findando e o tempo do casamento – indesejado – está se aproximando. O poema fala dos rituais típicos do sul angolano, ao citar a tábua de Eylekessa11, a poetisa faz menção à prática dos povos que colocam a madeira nas costas jovens como simbolismo de que elas estão cedidas ao casamento, as pulseiras que ao invés de adornar e ressaltar vossa beleza, surgem como símbolo da quantidade de animais que correspondem à moça. Filha de Tembo e Filha de Huco, ou seja, filha do povo, filha da nação, não estará livre de oferecer sua juventude em troca da vaca sagrada ao receber o “privilégio” de ser a primeira esposa de um homem.

Tais confissões definem a poesia em Ana Paula Tavares como uma atitude de rebelião contra os hábitos castradores do comportamento feminino, com versos dispostos de modo não convencional, pode-se compreender que sua escrita não virá seguindo um padrão, mas deslocando-o. Abrindo a seção “Do cheiro macio ao tacto”, Tavares escreve:

A ABÓBORA MENINA

11 Paula Tavares refere aqui à tábua de Eylekessa é uma tábua de correção da postura que as jovens são obrigadas a usar para se manterem em posição ereta.

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24

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos vacuda, gordinha

estende-se à distância quem sabe possa

depois é só esperar

de segredos bem escondidos procurando ser terra

acontecer o milagre:

folhinhas verdes flor amarela ventre redondo nela desaguem todos os rapazes.

(TAVARES, 2011, p. 19).

Paula Tavares nos apresenta a realidade da maioria das meninas angolanas: crescem sendo preparadas para o matrimônio. São vistas como um investimento e não como gente. No poema, “A abóbora menina”, a poetisa metaforiza as meninas com um fruto típico de sua região, a abóbora, e em uma relação muito simbólica, a temática da fertilidade se faz presente por meio da imagem do fruto, aquele que guarda as sementes e que gera vida quando plantado. A poetisa inicia o poema descrevendo um fruto gentil, porém distante e macio. Tratando da realidade das garotas que estão prontas para deixar a infância e avançar rumo à vida adulta, Tavares compara o sexo destas meninas com uma abóbora vacuda e gordinha aos que a contemplam e que possui segredos bem escondidos.

Denunciando o hábito que, em alguns países africanos, a menina só tem serventia para a cultura no momento em que menstrua, porque agora pode gerar vida, a escritora compara a menina a esta abóbora que procura por terra para se apoiar, deitar, encostar-se, pois está pesada de tantas sementes que possui e encontra-se pronta para continuar o ciclo da procriação. Esta “abóbora-vagina”, até o momento, de segredos bem guardados, descreve a valorização da virgindade feminina que permanece a distância esperando o milagre acontecer: a vida. Uma abóbora-menina pronta para gerar novos frutos é aquela que tem: “folhinhas verdes/flor amarela/ventre redondo” (TAVARES, 2011, p. 19), a esperança da procriação, o fecundar e o gerar a vida dentro de si.

Ao entrar na puberdade e ao ter seu corpo amadurecido, as meninas angolanas se veem condicionadas a: “[...] só esperar/nela desaguam todos os rapazes” (TAVARES, 2011, p. 19), esperar que sejam escolhidas, alambadas e assim possam ter valor em seu país, e esta supervalorização da menina somente quando se torna mulher é ressaltado no poema “A anona”:

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25

A ANONA

Tem mil e quarenta e cinco caroços

cada um com uma circunferência à volta

agrupam-se todos (arrumadinha) no pequeno útero verde

da casa.

(TAVARES, 2011, p. 23).

Aproximando a anona da cultura brasileira, podemos imaginar como algo semelhante ao que temos conhecido como a pinha ou fruta do conde. É muito curioso que elementos considerados, a princípio, ordinários, chegam a nós pela escrita surpreendente de Paula Tavares que metaforiza o corpo em elementos típicos de cada um desses frutos. A anona é um fruto que possui diversas sementes dentro de si, a qual cada uma pode gerar um novo pé com outras muitas anonas, ou seja, o fruto possui um alto teor de produtividade e procriação, ao comparar este atributo do fruto com as meninas angolanas, a poetisa afirma que, culturalmente, as garotas ao entrarem na puberdade são vistas como um grande potencial para reprodução.

Condenadas ao lugar de máquinas procriadoras, a gestação é vista como algo de grande valia e beleza. Assim como a anona agrupa em si diversas sementes que se tornam novas árvores e, consequentemente, mais frutos, as meninas recém- chegadas à fase adulta são tidas como estes frutos que possuem em si a capacidade de agregar vida, construir uma nação, e são descritas como “[...] cada um com uma circunferência à volta [...]/no pequeno útero verde/da casa” (TAVARES, 2011, p. 23). As meninas são enxergadas como esse pequeno útero que, apesar de verde, possui uma vida inteira pela frente e assim poderá lançar na terra seus mil e quarenta e cinco caroços, tendo em vista que

a estação das frutas não simboliza, então, o engajamento do poema a serviço do trabalho criador de riqueza e da justiça. Mas, contrariamente, o descanso tranquilo da deusa não significa a consagração de um ideal de beleza clássica e serena, despreocupado em relação às turbulências políticas e sociais. O que cria o poema, mas não seu sentido, é a própria relação entre névoa e a fecundidade, o sono e a atividade criadora [...]. Essa identidade dos contrários define a relação do poema com seu tema e a relação desse tema com tudo o que for possível associado a ele – a fuga do tempo ou a fecundidade atemporal da natureza, os sonhos da era de outro e as imagens das paisagens mitológicas dos homens (RANCIÈRE, 2017a, p. 80-81).

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26 O relacionamento entre Paula Tavares e seus poemas dá-se na transgressão do gregário, sua poética tem como característica a destruição de interditos e o desconcerto dos estereótipos e desmonta a cultura que gira em torno de si. Sua poesia existe antes das palavras, habita na história daqueles que durante anos foram condenados a reproduzirem um discurso massificador, olhando para o passado, a poesia escreve desconsertando um presente com o intuito de mudar o futuro. Segundo Hélène Cixous,

o futuro não pode mais ser determinado pelo passado. Não nego que os efeitos do passado estejam ainda aqui. Mas me recuso a consolidá-los, repetindo-os; a lhes conceder um mandato equivalente a um destino; confundir o biológico e o cultural. A antecipação se impõe como urgente (CIXOUS, 2005, p. 129).

No ensaio O riso da medusa publicado, inicialmente, em 1985 por Hélène Cixous, nos chamam a atenção aspectos que dizem respeito à escrita feminina. Defensora de que há uma escrita feminina e feminista, a teórica defende enfaticamente que as mulheres têm que escrever sobre assuntos que somente elas tenham propriedade para expor e debater. Paula Tavares não está simplesmente apontando para um fator cultural, contudo, de maneira metafórica e simbólica, está denunciando uma prática cultural enraizada no seu país e, mais, no seu território: o corpo das meninas. Por meio de sua escrita, contesta a História, pois:

Quase toda a história da escrita se confunde com a história da razão, na qual ela é ao mesmo tempo o efeito, a sustentação e um dos álibis privilegiados. Ela tem sido homogênea à tradição falocêntrica. Ela é o próprio falocentrismo que goza de si mesmo e se felicita (CIXOUS, 2005, p. 134).

Recusando a voz dos homens escritores do tempo, da história e dos seus corpos, no poema “A nocha”, a poetisa desabafa:

A NOCHA

Modesta filha do planalto combina, farinhenta os vários sabores Cheia de sono

mima as flores e esconde muito tímida

do frio.

o cerne encantado. (TAVARES, 2011, p. 27).

(27)

27 A nocheira, apesar de ser uma árvore de estrutura exuberante, possui uma madeira difícil de ser trabalhada e seu produto é pouco durável. Mesmo estando presente em lugares mal drenados e em ambientes com altitudes moderadas, seu único proveito é o seu fruto, o nocha. Apesar de pouco conhecido, o fruto tem potencial para melhorar a nutrição dos que dele comem, de cor alaranjado, mostra-se modesto, porém essencial para o trabalho rural e sua madeira pode ser utilizada para produção de carvão. Quando trazemos clareza de que fruto é este em paralelo com o poema de Tavares, vemos que seu poema não é um mero texto com palavras agrupadas, contudo, há algo mais profundo sendo dito ali, a poetisa pôs as palavras de maneira selecionada, símbolos que despertassem sensações e sentimentos específicos:

[...] la poesía no es más que um lenguaje de infancia, el lenguaje de una humanidad que pasa del silencio original a la palavra articulada por medio de la imagen-gesto y la sodera del canto. [...] La palabra “muda” de la poesía es también la forma bajo la cual una verdad se revela a los mortales, una humanidad toma consciencia de sí (RANCIÈRE, 2009a, p. 54)12.

A poesia é mais que uma linguagem, é um dizer, um confessar e, neste caso, um denunciar. Por meio da inocência infantil, Tavares articula a imagem do fruto com a imagem da menina, revelando a verdade presente na infância condicionada à um futuro de repressão, o eu-lírico, ao se metaforizar no fruto, toma consciência de si. Comparada com um fruto quase esquecido, porém saboroso e de modesta aparência, descrita como: “Modesta filha do planalto [...]” (TAVARES, 2011, p. 27), assim é a vida das meninas-mulheres em Angola, filhas de um povo, filhas de uma cultura, filhas de um costume, são destinadas a uma vida e um futuro de imposições, estas meninas têm sua sexualidade comparada ao sabor do fruto: “[...] combina, farinhenta/os vários sabores/do frio” (TAVARES, 2011, p. 27). A poetisa finaliza o poema denunciando: “[...] Cheia de sono/mima as flores/e esconde muito tímida/o cerne encantado. ” (TAVARES, 2011, p. 27), cansada da rotina monótona, estas garotas sobrevivem à vida, fatigadas, mimam as flores de modo tímido, e por que não dizer, reprimido; escondem o cerne encantado, ou seja, Paula Tavares nos leva à reflexão de que no silêncio dessas garotas, perante o grito patriarcal que ecoa em seus ouvidos, elas escondem algo, assim como a nocheira dá a nocha que possui um delicioso sabor e

12[...] a poesia nada mais é do que uma linguagem primária, a linguagem de uma humanidade que passa do silêncio original à palavra articulada por meio da imagem-gesto e dos sons de música. [...] A palavra ‘muda’ da poesia é, também, a forma pela qual uma verdade é revelada aos mortais. Por ela, a humanidade se torna consciente de si.

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28 que a riqueza da árvore não está em seus galhos, troncos, flores ou folhas, mas no próprio fruto pouco explorado, e este, dono de grande valor nutricional. Assim é a vida das meninas angolanas: condenadas a serem afirmadas por meio de um homem, porém elas têm sim o seu valor, a sua história e sua própria voz, como coloca Jacques Rancière (2009a, p. 54):

[...] con la manifestación sensible de una verdad, es decir, nuevamente, con la presentación de una comunidad a sí misma a través de sus obras. [...] Por un lado, la poesía no es sino una manifestación particular de la poeticidad de un mundo, es decir de la manera como una verdad se da a una consciencia colectiva bajo la forma de obras e instituiciones13.

Manifestando o sensível do povo angolano por meio dos frutos típicos da região, somos levados a refletir que: em Paula Tavares, a sua Angola se presentifica no corriqueiro, assim como em “A nocha” que representa a subalternidade das mulheres, desde a infância. No poema seguinte, “A nêspera”, somos conduzidos a continuar esta reflexão:

A NÊSPERA

Doce rapariguinha-de-brincos amarelece o sonho

deixa que o orvalho de manso lhe arrepie a pele

SABE A POUCO. (TAVARES, 2011, p. 29)

Conduzindo seu leitor por um caminho alegórico, Paula Tavares colore seu silêncio nos tons dos frutos angolanos, porque “[...] sua carne fala a verdade” (CIXOUS, 2005, p. 137), e fala como a nêspera, doce como as mulheres ornamentadas, trazendo em seu fruto a cor amarela, símbolo da vida e da terra, lugar de germinação e fertilidade, este fruto que aguenta o calor do sol angolano, mas que é confortado pelo orvalho que vem durante a noite, de mansinho, e invadindo sua pele, indo aos lugares mais profundos do seu eu, estas meninas também são Paula Tavares e a voz de Tavares também é a voz destas meninas. A poetisa recolhe em si a voz destas meninas angolanas: figuras presentes no dia a dia, destinadas a um local inferior na sociedade e que assim como os frutos esperam amadurecer para que

13 [...] com a manifestação sensível da verdade, pode-se dizer que a comunidade é apresentada a si mesma através de suas obras. [...] Por um lado, a poesia nada mais é do que uma manifestação particular da poética do mundo, isto é, da maneira em que a verdade é dada como uma consciência coletiva em forma de obras e instituições.

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29 possam ser devorados, sobrando-lhes apenas as sementes que germinarão e darão novas árvores e novos frutos, assim são estas pequenas, filhas da nação que estão sendo amadurecidas para que um dia sejam sexualmente devoradas, restando-lhes apenas o lugar do silêncio, a sala, a cozinha e a cama, assim tornam-se úteis à nação. Por isso, Paula Tavares não diminui a força da sua voz, contudo, como mulher e trazendo em si a voz destas meninas, reconhece que há um lugar que é seu e que é de todas elas. Pela sua escrita a poetisa cobra este lugar ferozmente amordaçado e lançado no esquecimento coletivo:

É escrevendo, de e para mulher, e assumindo o desafio do discurso governado pelo fato, que a mulher irá se afirmar e ocupar outro lugar diferente daquele que lhe foi reservado, em e pelo símbolo, ou seja, o silêncio. Que ela saia do silêncio aprisionador. Que não se deixe enganar, aceitando por domínio a margem ou o harém (CIXOUS, 2005, p. 137).

Não é novidade que a escrita de Tavares é uma escrita feminista, trazendo em si a representatividade das meninas, moças e mulheres angolanas que por tempos viveram à sombra do país e escondidas pelo anonimato obrigatório imposto a estas mulheres. Na ausência em que se encontram e se fazem presentes, falando por meio do silêncio e preenchidas pelo vazio, elas crescem e espalham-se como as sementes do mamão:

O MAMÃO

Frágil vagina semeada pronta, útil, semanal nela se alargam as sedes

no meio cresce insondável (TAVARES, 2011, p. 31). o vazio... 1.2 A moça

Minha menina amanheceu hoje mulher – velha guardiã do tempo. De mim ela herdou o rubi,

rubra semente, que a primavera nos ofertou.

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30 De sua negra e pequena flor

um líquido rúbeo, vida-vazante escorre. Dali pode brotar um corpo,

milagre de uma manhã qualquer. [...]

Conceição Evaristo

No vazio em que a história das meninas é escrito, podemos continuar encontrando o silêncio na fala das moças. Nem meninas, nem mulheres, jovens. Meninas mulheres ou mulheres meninas. São meninas que estão deixando de ser crianças ou crianças, estão deixando de ser meninas e transitando para o ser mulher. Entrando na fase adulta, momento aguardado por muitas e muitos, a primeira menstruação torna-se algo sagrado em solo angolano, agora a moça está ponta para ser terra que receberá a semente que continuará a dar filhos à nação. O que era para ser um momento de emancipação e independência torna-se mais um meio de repressão e silenciamento destinados às mulheres, como propõe Paula Tavares (2011, p. 15):

CERIMÓNIA DE PASSAGEM “a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu lime” a rapariga provou o sangue o sangue deu fruto

a mulher semeou o campo o campo amadureceu o vinho o homem bebeu o vinho o vinho cresceu o canto o velho começou o círculo o círculo fechou o princípio

“a zebra feriu-se na pedra a pedra produziu o lume”

Poema que abre o primeiro livro de poemas da escritora, Cerimônia de passagem publicado em 1985, é um dos carros chefes da poetisa e a despeito de ser o primeiro, perpassa e se faz lembrado em toda sua escrita, permanece uma base para os demais poemas. No poema podemos enxergar o corpo, o erotismo, a sexualidade, a descoberta e, enxergamos o óbvio, a mulher.

Iniciando e finalizando o poema com um trecho entre parênteses e com versos graficamente deslocados dos outros versos, a poetisa nos dá a entender que o trecho

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31 se refere à tradição oral, em tom ritualístico, pois como já afirmou a escritora em entrevista concedida pela poeta ao jornalista Pedro Cardoso, publicada pelo Portal Buala: “A oralidade é meu culto. As mães embalam os filhos cantando ou dizendo palavras nas nossas línguas todas. Se os meus textos puderem ser lidos em voz alta fico muito contente” (TAVARES, 2010). Os versos anunciam uma cerimônia sagrada, no provérbio, escrito nos extremos do poema, temos a figura da zebra e da pedra. A zebra simbolizando a imagem da mulher e a pedra simbolizando as dores e feridas causadas ao feminino durante a história de Angola. Contudo, a mesma pedra que fere é a que produz lume, ou seja, produz fogo, este símbolo de vida e novos começos, como coloca Fernanda Antunes Gomes da Costa (2014, p. 135): “Se pela pedra sou capaz do aprendizado da dor, também por esta sou capaz da busca pelo prazer silenciado pelo pesar”, é pela ferida feita na zebra que o lume, o fogo, nasce. Ainda de acordo com Bachelard (2008, p. 78-79 apud COSTA, 2014, p. 135), existem dois tipos de fogo que são simbolicamente tidos como: o natural, representando a figura do homem e o antinatural, este representando a imagem da mulher e ainda de acordo com Costa, evocando o pensamento de Bachelard, afirma que: “o dissolvente universal que alimenta os corpos [...]. O fogo antinatural é o que corrompe o composto e, acima de tudo, tem o poder de dissolver o que a Natureza havia fortemente ligado” (2008, p. 78-79 apud COSTA, 2014, p. 135), o que nos leva a concluir que a imagem da mulher e de tudo aquilo que se refere a ela não é visto pela sociedade como algo normal, natural e de primeira instância, porém sempre é compreendido como algo não natural, vindo em segundo lugar e dependente da imagem masculina.

Após ser ferida pela história e produzir a vida, as moças descobriram a si mesmas, por meio do silêncio e de sua própria companhia, foi no seu primeiro sangue, na menarca, que tiveram consciência de sua capacidade. A capacidade de gerar vida, de não mais ser a figura passiva da História, mas a ativa, pois a História está em suas mãos, ou melhor, em seu ventre. Como a poetisa coloca na primeira estrofe após o provérbio: “a rapariga provou o sangue/o sangue deu fruto” (TAVARES, 2011, p. 15), metaforicamente bebendo do seu próprio sangue, a moça descobre a si mesma e apaixona-se por si, entretanto não é de qualquer sangue que ela prova, mas do sangue que dá fruto, o sangue mais puro da mulher, o da menstruação e, enfatizando, da primeira menstruação. Revelando que neste sangue “a mulher semeou o campo/o campo amadureceu o vinho” (TAVARES, 2011, p. 15), Tavares nos mostra que

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32 através das feridas causadas em sua existência pela colonização do país e do seu corpo, durante guerras que assolaram a nação, isso levou a mulher a despertar para o seu potencial e para o ser mulher. O sangue de muitos foi derramado ao longo da história, porém é o seu sangue que vem mês após mês, a partir de agora, será derramado e poderá fecundar uma nova história, como coloca no poema que abre seu segundo livro O lago da lua, publicado originalmente em 1999:

No lago branco da lua lavei meu primeiro sangue Ao lago branco da lua voltaria a cada mês para lavar

meu sangue eterno a cada lua

No lago branco da lua

misturei meu sangue e barro branco e fiz a caneca

onde bebo

a água amarga da minha sede sem fim o mel dos dias claros.

Neste lago deposito minha reserva de sonhos para tomar.

(TAVARES, 2011, p. 73).

Harmonizando entre o ser humano e a natureza, o sujeito-lírico da poesia de Tavares confessa aos seus leitores que a cada ciclo da lua, ela estaria de volta para provar o sangue que dá fruto, o sangue que amadurece o vinho. Associando com o poema “Cerimônia de passagem”, podemos falar sobre os ritos de iniciação das moças quando vão lavar seu primeiro sangue a luz do luar na beira dos lagos. Sobre isso Secco, ao discorrer sobre a poesia de Paula Tavares (2011, p. 266) afirma:

A imagem do lago remete aos sonhos que resistiram à dor e à guerra; funciona como espelho no qual o sujeito poético procura a identidade esboroada. A terra e o barro, embora suas texturas não apresentem reflexos [...] guardam [...] uma função espetacular que se evidencia no trabalho criatividade das oleiras, cuja as mãos moldam [...] na memória da argila, fragmentos de suas histórias [...] (SECCO, 2011, p. 266).

É do sangue puro entregue como oferenda à terra que circunda os rios e as águas, refletindo a luz da lua que estas jovens se entregam e, é moldando o barro com suas próprias mãos que fazem dele canecas nas quais beberão “[...] a água amarga da minha sede sem fim/o mel dos dias claros” (TAVARES, 2011, p. 73), assim elas fazem de sua menarca o vinho que os homens provam, o melhor que essas jovens têm a oferecer: elas mesmas. É por meio deste vinho que o esse canto será

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33 ouvido e irá ecoar como parte da história que, aparentemente é um ciclo, mas que: “[...] o círculo fechou o principio [...]” (TAVARES, 2011, p. 15).

Ensinadas a se diminuírem perante os rapazes, às moças é ensinado que não se pode falar de menstruação, sexo e prazer. Seus corpos tornaram-se locais estranhos em que habitam, pois é mais importante saber o que os meninos e homens vão pensar a respeito das moças e mulheres do que o que elas mesmas pensam acerca de si, como afirma Adichie (2015, p. 27):

Perdemos muito tempo ensinando as meninas a se preocupar com o que os meninos pensam delas. Mas o oposto não acontece. Não ensinamos os meninos a se preocupar em ser “benquistos”. Se, por um lado, perdemos muito tempo dizendo às meninas que elas não podem sentir raiva ou ser agressivas, por outro elogiamos ou perdoamos os meninos pelas mesmas razões.

Paula Tavares incita a cultura. Desafia a ordem e desconstrói as ordens ao poetizar o silêncio das moças angolanas em versos como os que se seguem:

A MANGA Fruta do paraíso

companheira dos deuses as mãos

tiram-lhe a pele dúctil como, se, de mantos

se tratasse surge a carne chegadinha

fio a fio ao coração: leve morno mastigável o cheiro permanece para que a encontrem

os meninos pelo faro.

(TAVARES, 2011, p. 33).

Mais uma vez, de um elemento altamente comum e ordinário ao dia a dia do povo, a manga, fruto descrito pela escritora moçambicana Isabela Figueiredo no livro de memórias Caderno de memórias coloniais como: “As mangas pesavam nas árvores, em cachos, penduradas por fios verdes. Pesavam muito gordas, rosadas, levando os ramos a tocar o chão. Da junção da manga a esse caule que a sustinha, escorriam gotas viscosas de resina transparente” (FIGUEIREDO, 2018, p. 59), Paula Tavares constrói seu poema e desconstrói a lógica do sistema. Subversiva às ordens impostas, a poetisa faz-se transgressão e em suas palavras podemos ver a

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