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2.1 A mulher reescrevendo e se reescrevendo na história por meio do erótico

2.1.4 Entre a santa e a louca

Agora que aprendeste a incendiar-me e me advinhas inteira dentro do vestido

agora que invadiste a sala e o chão de minha casa agora que fechaste a porta

72 e me calaste com teus lábios e língua

peço-te afoitamente que me faças assim

ínfima e sagrada

muito mais pornográfica do que lírica muito mais profana que tântrica muito mais vadia do que tua

Iracema Macedo

Durante tempos creditou-se ao homem a figura de ativo e a mulher foi associada à passividade nas relações entre sexos, sejam sociais, profissionais, sexuais ou de qualquer outro caráter. Sabe-se que biologicamente não há o que discutir: homens e mulheres são diferentes. Possuem uma carga hormonal diferente e atributos biológicos únicos a cada sexo. Em geral, homens têm mais testosterona, o que de modo generalizado os fazem mais fortes – fisicamente – do que as mulheres, porém isso não nos dá o direito de subalternizar um corpo em função do protagonismo de outro, pois:

A pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não existem hormônios para esses atributos. Tanto um homem como uma mulher podem ser inteligentes, inovadores, criativos. Nós evoluímos. Mas nossas ideias de gênero ainda deixam a desejar (ADICHIE, 2015, p. 21).

Tratadas como o “segundo sexo”, o silêncio nos âmbitos sociais começou em casa, na estereotipização do ser mulher. Rótulos e obrigações estipulam qual o correto para uma mulher, automaticamente contribuímos para que a arma do machismo seja disparada e jogue a mulher no local do ser passivo, como afirma Chimamanda Ngozi Adichie (2015, p. 31):

Ensinamos as meninas a se encolher, a se diminuir, dizendo-lhes: “Você pode ter ambição, mas não muita. Deve almejar sucesso, mas não muito. Senão você ameaça o homem. Se você é a provedora da família, finja que não é, sobretudo em público. Senão você estará emasculando o homem”. Por que, então, não questionar essa premissa? Por que o sucesso da mulher ameaça o homem? Bastaria descartar uma palavra [...] emasculação.

A preocupação da grande massa não é se todos estão sendo tratados com respeito e equidade, mas se a mulher não está “invadindo” o espaço do homem e o colocando como ser passivo na relação. Sobre o lugar do ser ativo e passivo na relação homem X mulher, Georges Bataille (2014, p. 41) reafirma este constructo

73 social, mas na mesma medida que edifica seu argumento em cima do que é socialmente aceito, ele destrói a construção social e nos faz ter uma nova visão dos “papéis” socialmente distribuídos nesta relação:

No movimento de dissolução dos seres, o parceiro masculino tem em principio um papel ativo, a parte feminina é passiva. É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser desconstruído. Mas, para um parceiro masculino, a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara para a fusão em que se misturam dois seres chegando juntos, no final, ao mesmo ponto de dissolução.

Bataille nos (re)ensina uma palavra há tempos esquecida pelo Homem: companheirismo. A princípio concorda que o homem, socialmente falando, possui um papel de ativo na relação dos corpos e que a mulher – figura passiva – dissolve-se nesta relação, porém Bataille destrói o machismo ao afirmar que a parte passiva se faz parte ativa na preparação da fusão dos corpos, ela torna-se responsável por conduzir a dança que é a relação erótico-sexual e fazer com que ambos usufruam, juntos, do mesmo ponto de dissolução. Isto acontece, porque segundo Bataille (2014, p. 41) o erotismo, em si próprio, é um ato transgressor: “Toda relação erótica tem por princípio uma destruição da estrutura do ser fechado que é, no estado normal, um parceiro de jogo”. O ser fechado na imagem da mulher recebe atributos de virgem, pura e imaculada, são estas que de maneira generalizada servem para cuidar da casa, dos filhos e dos maridos, contudo, na hora de transcender, a “parte ativa” da relação irá buscar aquela que corresponda aos seus desejos, que se torne ativa e ajude no caminho da dissolução, como afirma Paula Tavares (2011, p. 201):

Das duas de mim só percebestes A louca

A voz de íntima nudez O grito surdo da fêmea. Das duas de mim Só percebeste a outra A dos ventos soltos Cabaças no ventre E um demónio Nos cabelos Das duas de mim

Só percebestes a sombra A embriaguez do vinho O brilho da palavra O sonho

Agora que um mapa estranho

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O sonho apareceu despido Ainda voltas

De vez em quando

Com as palavras da louca.

De cara consigo mesmo, o eu-lírico revela as várias partes que habitam o seu ser, entre elas, a santa e a louca. Paradoxos que se somam e se repelem ao mesmo tempo, as personalidades antagónicas fazem com que esta mulher seja completa, é descobrindo sua outridade21 que a anônima reconhece sua voz e o poder que esta tem. Esvaziando-se a si mesma, este sujeito-lírico abdica e toma posse do que ela é e o do que sabe e esperam que seja. Diante de si mesma esta voz assombra-se e fascina-se simultaneamente, horrorizada ela conhece a si mesmo, como diz Octávio Paz (2014, p. 140):

Esvaziar-se. Ser nada: ser tudo: ser: Força da gravidade da morte, esquecimento de si, abdicação e, simultaneamente, um instantâneo dar-se conta de que essa presença estranha também somos nós. Isso que me repele também me atrai. Esse outro também é eu. A fascinação seria inexplicável se o horror diante da “outridade” não estivesse tingindo, desde a raiz, pela suspeita da nossa identidade final com aquilo que nos parece de tal maneira estranho e alheio.

Sendo nada, a voz do poema sente-se tudo e dona, principalmente, de si. Consciente de que em sua imagem habitam os estereótipos do que ela deve ser perante uma sociedade, uma casa e um homem, a poetisa alerta: “Das duas de mim só percebeste/a louca/a voz da íntima nudez/o grito surdo da fêmea.” (TAVARES, 2011, p. 201), podendo ser percebido que o eu-lírico está em diálogo com alguém, com outro e é neste outro que, a princípio, está a identidade deste eu-lírico, por meio dele, ela se enxerga como a louca, na mais intensa intimidade, comparada com a nudez, é que sua voz é escutada, pois na nudez podemos conhecer de maneira mais inteira e plena o outro, porque

a nudez se opõe ao estado fechado, ou seja, ao estado da existência descontínua. É um estado de comunicação, que revela a busca descontínua. É um estado do ser para além do fechamento em si mesmo. Os corpos se abrem à continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscuridade. [...] O desnudamento, considerado nas civilizações em que tem um sentido pleno, é, senão um simulacro, ao menos uma equivalência sem gravidade da imolação (BATAILLE, 2014, p. 41). 21 Conforme Gonçalves (2011) outridade, também traduzido por alteridade, é um “termo utilizado por Octavio Paz, poeta e teórico mexicano, no livro Signos em Rotação (1996). Para Paz, a alteridade constitui-se da experiência da busca do eu no diverso, no nós. Encontramo-nos conosco quando encontramos o diverso ao nosso extrato, à nossa natureza enquanto ser, à nossa essência, que resultará do encontro do eu nos outros. Observe-se o caráter cíclico do postulado de Paz, um eterno retorno a nós mesmos”. (GONÇALVES, 2011, p. 67).

75 Buscando e procurando nessa caça a continuidade perdida, esta persona permite que sua voz seja achada através da sua nudez que agora está posta diante do outro e é neste estado que a mulher permite que o “[...] grito surdo da fêmea” (TAVARES, 2011, p. 201) seja ouvido.

Nos primeiros versos das três primeiras estrofes do poema, o eu-lírico reclama: “Das duas de mim só percebeste [...]” a louca, a outra e a sombra. Por um “Outro” o sujeito-lírico foi reconhecida como a secundária, a silenciosa, a calada, a sombra, ou seja, aquela que não tem autonomia, a anônima, mas que existe graças a um “Outro” que a projeta. Objetificada reconhece-se como a outra que pelos ventos soltos possuem um demônio nos cabelos, a outra que em seu ventre habitam as cabaças que carregam as sementes geradoras da vida, reduzidas a serem conhecidas como uma máquina de filhos, fatores aos quais elas acabam acreditando tendo em vista que:

Existe um olhar do colonizador sobre nossos corpos, saberes, produções e, para além de refutar esse olhar, é preciso que partamos de outros pontos. [...] que a mulher não é definida em si mesma, mas em relação ao homem e através do olhar do homem. Olhar este que confina num papel de submissão que comporta significações hierarquizadas (RIBEIRO, 2017, p. 37-38).

Buscando a autonomia da sua voz e tentando alcançar este empoderamento através do seu corpo, o sujeito-lírico vê-se entre a santa e a louca. Como que em um ato epifânico, no poema de Tavares, mais uma vez se compreende que de si só foi percebida aquela que opressor quer: a sombra, a sem voz e sem vida, aquela que chega como um devaneio, ou que vem igual ao prazer do vinho quando embriaga alguém, ela é como um sonho que eleva o homem ao mundo da fantasia e o faz passear pelo paraíso perdido, mas que tem um começo, meio e fim.

Por fim, a voz lírica do poema diz que: “Agora que um mapa estranho/traçou na face os caminhos da santa [...]” (TAVARES, 2011, p. 201). Ao começar a última estrofe com um “Agora”, a poetisa quebra todo o ciclo que vinha sendo gerado no poema. Toda forma de aceitação inconsciente do lugar de menosprezo que estava condenada pela figura masculina, agora, se coloca como alguém que percebeu toda aquela realidade de subalternização e não se apresenta mais como a louca, a sombra ou o sonho, mas como um mapa estranho, mapa que conduz ao tesouro escondido, o prazer, mapa que não possui sequência lógica ou grande confiabilidade, porém permite com que o caminho conduza e modifique os sentimentos do peregrino e com

76 que o peregrino transforme e tenha como sua a paisagem pela qual caminha, “agora [...]” – por meio do erotismo – ela reconhece o corpo como seu.

Agora, o conquistado o espaço no universo literário, até então quase exclusivamente masculino, as escritoras ousam romper o silêncio sobre os prazeres do corpo. Se na poesia isso acontece mais cedo, como provam inúmeras obras de poetisas brasileiras, deve-se ao fato de que se trata de um discurso mais próximo da fantasia, enquanto a narrativa tem maiores vínculos com a realidade. Daí a representação do corpo erotizado ser um dado recente na prosa de autoria feminina (XAVIER, 2007, p. 157).

Somente por meio deste “mapa estranho” o Outro irá se converter em outro, e assim encontrará a sua plenitude na imagem da santa, não a virgem imaculada e inalcançável, contudo, na voz daquelas que simplesmente são mulheres, assim o “[...] sonho aparecerá despido [...]” e esclarecido. Temerosa, ainda reclama e preocupa- se: “Ainda voltas/de vez em quando/com as palavras da louca” (TAVARES, 2011, p. 201). Rejeitando a opressão vivida no passado, refutando a subjugação e objetificação sofrida, o eu-lírico de Paula Tavares faz do seu corpo sua voz, usando do erotismo como uma forma de emancipação para que sua fala seja, ainda que minimamente, notada e assim o seu silêncio e anonimato perante o Outro sejam convertidos em voz e protagonismo perante um povo.

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3 A HISTÓRIA DOS QUE FICAM

“[...] ‘a guerra’, dizia-se, ‘é uma lembrança sempre a sangrar, e a qualquer momento você abre a boca, ou gesticula, e o que sai é um traço encarnado de coisas que você não sabia que sabia’”.

Ondjaki

Referindo-se a um país movido por conflitos, a guerra colonial em Angola ficou conhecida como uma luta armada de libertação nacional, ocorrida entre os diversos grupos que lutavam pela independência de Angola – Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) –, Força Nacional de Libertação de Angola (FNLA) – e a União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA) – e as forças armadas de Portugal, com o objetivo de libertar Angola do colonialismo e da exploração portuguesa. Em solos lusitanos, a guerra colonial era há tempos contestada: a população via seus familiares partirem e morrerem ou retornarem para casa mutilados pela guerra, o país assistia ao esgotamento dos seus recursos financeiros, o decair da produção e o aumento da inflação, todavia foram os oficiais das Forças Armadas Portuguesas que puseram um fim no regime ditatorial que sustentava a guerra. A Revolução de 25 de Abril de 1974, conhecida como a Revolução dos Cravos, levou ao fim da guerra colonial e à independência das colônias portuguesas em África. Tendo 1974 como um ano de efervescência política no país, Isabela Figueiredo (2018, p. 99-100) o descreve no Caderno de memórias coloniais:

No 7 de setembro o meu pai chegou eufórico. As coisas iam voltar a ser como eram. “Isto vai voltar a ser nosso; está tudo no Rádio Clube, ocuparam aquilo, os negos estão lixados, estão a contas. Ainda vamos ganhar isto”. [...] Havia uma multidão branca em frente ao edifício. Homens, sobretudo. Também esposas. Mas vislumbrei o edifício, de uma das esquinas, a da direita. Sei que era a da direita, porque estou a ver essa nesga, sei que estou ligeiramente inclinada para consegui alcançá-la. [...] O ar do fim da tarde fervia de energia de macho, de desejo, de medo. Barulho vão, descargas de voz desafinada, mas em fundo, nos peitos, um enorme silêncio que treme, que devora, uma fome castigada que não sobreviverá ao riscar um fósforo. Tudo o que eu sei sobre o 7 de setembro de 1974 é isto: os brancos estavam a ganhar os pretos, talvez já não houvesse a tal independência de que se falava, e que os brancos tanto temiam.

Entre a utopia da independência e a distopia da colonização, chega-se a 11 de novembro de 1975, dia em que Agostinho Neto proclamou a independência do país, contudo a guerra não findou aqui, pois, tomando novos rumos, Angola se converteu

78 em uma eterna trincheira até meados de 2002, vivendo um prolongado conflito armado entre os partidos: MPLA e FNLA. Uma disputa entre grupos que almejavam o poder, causando um desastroso desequilíbrio social e uma crise humanitária sem precedentes. Na poesia, o que se escuta são as vozes anônimas das esposas que cuidam do lar enquanto os esposos, - também soldados anônimos e involuntários -, enfrentam o combate, das noivas que esperam o noivo regressar para a cerimônia de casamento, as mães que veem os filhos partirem e não mais regressar à casa e as crianças – em muitos casos, órfãs – que não são poupadas de lutar, mesmo sem compreender a causa da luta. E nesta seção da pesquisa, serão a estas vozes anônimas da guerra que prestaremos a nossa atenção e estudo.

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