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A essencialidade e interdependência das teses características do realismo científico

Como foi possível observarmos até aqui, as teses metafísica, epistemológica, metodológica e semântica são representativas do realismo científico, ou seja, são comumente apresentadas na caracterização de tal doutrina filosófica e identificadas historicamente nas abordagens de natureza realista científica. Nas seções precedentes deste capítulo, vimos como essas teses são questionadas e as respostas realistas às objeções que lhes são dirigidas. Não obstante, há um questionamento, mais fundamental, quanto à essencialidade de tais teses para

a defesa da postura realista científica, isto é, podemos perguntar se tais teses são, de fato, indispensáveis ao realismo científico e, ainda, se existe algum tipo de relação de interdependência entre elas. Desse modo, analisaremos a natureza da relação de cada uma delas com o realismo científico e, por fim, concluiremos respondendo se existe interdependência entre elas.

A tese metafísica “[...] sobre a natureza subjacente do mundo em geral” (DEVITT, 1991, p. 47) é necessária para uma doutrina ser caracterizada como realista científica? Manter essa tese metafísica é suficiente para a caracterização do realismo científico?

Sim, a tese metafísica é necessária ao realismo científico. Isso porque o realismo científico, como o próprio nome indica, diz respeito exatamente à existência e realidade independente das entidades científicas. O background de qualquer sujeito do conhecimento pode ser entendido como uma visão de mundo e, portanto, como uma metafísica. Assim, a tese metafísica, como observa Psillos (1999, p. 40), é a mais básica ou fundamental para o realismo científico: qualquer perspectiva realista científica por si só já envolve a pressuposição de que o mundo possui uma “estrutura de espécies naturais”.

No entanto, manter apenas essa tese não é suficiente para o realismo científico. Boyd (1973) observa que alguns filósofos antirrealistas admitem que o compromisso ontológico com entidades teóricas seja metodológica ou epistemologicamente legítimo e até mesmo eficaz. Aliás, eles afirmam que isso é tudo o que um realista poderia afirmar. “A diferença entre essa posição e o realismo científico é esta: o realismo científico oferece uma explicação para a legitimidade do compromisso ontológico com entidades teóricas” (p. 2).

Leplin (2006, p. 686-7) ilustra a situação, trazendo à discussão a tese do “realismo de entidades” defendida por Hacking (1983), que será discutida posteriormente:

[...] seu realismo [de Hacking] é exclusivamente metafísico, comprometido apenas com as entidades em virtude de suas aplicações tecnológicas no estudo de aspectos da natureza ainda mais especulativos. Ele acredita que os elétrons existem porque os cientistas dizem que os usam para estudar outras coisas, mas ele não professa crenças teóricas como sobre a natureza dos elétrons. Como Hacking não se permite os recursos para explicar como uma entidade teórica consegue ser tecnologicamente útil, considerar [deference] como os cientistas descrevem a sua própria prática é seu único meio de identificação das entidades a que seu realismo é comprometido. Isso o deixa aberto para uma leitura antirrealista de tal descrição como uma maneira útil de expressão sem importância ontológica. Um realismo viável deve endossar algumas propriedades teóricas, bem como uma ontologia teórica. A dificuldade, à qual o minimalismo de Hacking é suscetível [responsive], é fazer mais este compromisso específico.

Pelos motivos apresentados acima, consideramos a tese metafísica necessária, mas não suficiente, para a doutrina realista científica.

Quanto à tese epistemológica, que especifica o que é o conhecimento científico e qual a sua origem e fundamentação, ela é necessária para uma doutrina ser caracterizada como realista científica? Manter essa tese epistemológica é suficiente para a caracterização do realismo científico?

Afirmar que podemos conhecer o mundo sem dizer o que é o mundo parece absurdo. O que nos mostra que a defesa exclusiva da tese epistemológica não é suficiente para uma doutrina ser realista científica. Mas, como vimos acima, manter apenas a tese metafísica também não é suficiente. As espécies naturais inobserváveis postuladas pelas teorias científicas existem e sua existência não depende da capacidade humana de apreendê-las, como indica a tese metafísica. Tal afirmação, no entanto, não é suficiente para o realismo científico, é necessário que se explique a possibilidade de se ter acesso epistêmico a elas.

Segundo Psillos (1999, p. xix), “[m]anter o realismo é manter um pacote filosófico que inclui uma abordagem naturalizada do conhecimento humano e a crença de que o mundo tem uma estrutura objetiva de espécie natural.”

E, para Leplin (1984, p. 2),

[o] que os realistas têm em comum são as convicções de que a mudança científica é, no cômputo geral, progressiva e que a ciência torna possível o conhecimento do mundo, além de suas acessíveis manifestações empíricas. A não ser que o progresso seja entendido em termos puramente pragmáticos e o conhecimento mantido não exija a verdade por correspondência, antirrealistas rejeitarão essas convicções.

A justificativa para a crença realista científica na verdade das asserções teóricas vem principalmente da confiança na legitimidade dos métodos abdutivo-ampliativos empregados pelos cientistas.

A tese metodológica, por sua vez, que especifica qual a abordagem ou metodologia adequada a se adotar na investigação científica e epistemológica, é necessária para uma doutrina ser caracterizada como realista científica? Manter essa tese metodológica é suficiente para a caracterização do realismo científico?

Está implícito na tese epistemológica que a metodologia científica é, de algum modo, eficaz, mas não parece necessário, nem suficiente, para o realista científico decifrar os mecanismos da prática científica, e sim apenas aceitar que esse empreendimento funciona para os propósitos a que se destina.

Assim, de acordo com Psillos (1999, p. xx), que, como vimos no capítulo 1, seção 1.1, no rol das teses realistas científicas enumera apenas a metafísica, a epistemológica e a semântica, deixando de lado a metodológica, “[d]everia ser considerado estar implícito na tese realista que os métodos abdutivo-ampliativos utilizados pelos cientistas para chegar a suas crenças teóricas são confiáveis: eles tendem a gerar crenças e teorias aproximadamente verdadeiras.”

Embora a tese metodológica não seja necessária ao realismo científico, a partir dela, Boyd e outros encontram uma forma de fortalecer o argumento do milagre. Para esses pensadores, com certo entendimento e sofisticação da tese metodológica, podemos responder mais adequadamente a críticas como da subdeterminação, da indução pessimista e circularidade viciosa.

Por fim, a tese semântica, que especifica como os termos que usamos para descrever as coisas obtêm seu significado, é necessária para uma doutrina ser caracterizada como realista científica? Manter essa tese semântica é suficiente para a caracterização do realismo científico?

Segundo Leplin (2006), tendo em vista o conteúdo da tese metafísica, afirmar, semanticamente, o sucesso referencial dos termos teóricos e a verdade para as afirmações de existência das teorias científicas é redundante e, desse modo, desnecessário. Nesse sentido, “[a]firmar que p é verdadeiro é afirmar que p, e afirmar que a refere é afirmar que há a. Essas propriedades descitacionais eliminam ‘verdadeiro’ e ‘refere’ dos contextos onde p e a estão explícitos” (p. 686).

No entanto, podemos utilizar uma visão minimalista da verdade e da referência, sem chegar à conclusão de que as considerações semânticas são dispensáveis. Para se poder dizer que as teorias científicas são descritivas (com a bipolaridade do verdadeiro ou falso), que devem ser interpretadas literalmente (e não como regras ou instrumentos) etc. é preciso fazer considerações semânticas. O próprio esquema T descitacional só se aplica a sentenças que compreendemos, que não sejam muito vagas etc., além de admitir o princípio do terceiro excluído (ou da bivalência). Tudo isso pode envolver considerações semânticas. Outra coisa é dizer que o realismo científico não depende de uma particular concepção semântica da verdade ou da referência. Por exemplo, não depende da teoria da verdade como correspondência, podendo o realista científico adotar uma abordagem minimalista da verdade. Concluímos que a defesa das teses metafísica, epistemológica e semântica é necessária e suficiente para o realista científica. A interdependência das teses realistas científicas parece se restringir nas metafísica, epistemológica e semântica.

O próximo capítulo, central desta tese, tem como objetivo a análise do argumento do milagre na defesa do realismo científico.

Capítulo 4

O argumento do milagre

O argumento do milagre ganha versões cada vez mais sofisticadas na dinâmica do desenvolvimento filosófico e também sofre denominações diferenciadas nesse processo. É chamado, por exemplo, de argumento do sucesso, argumento do não-milagre ou sem milagres, argumento último, argumento explicacionista realista. Psillos (1999) o denomina de argumento Putnam-Boyd. Isso porque Putnam (1975a) o formula apoiando-se em algumas considerações feitas por Boyd em sua defesa do realismo científico. Veremos, na seção 4.1, algumas dessas formulações do argumento do milagre. Inicialmente, apresentaremos o argumento da coincidência cósmica de John J. C. Smart (1963) e o argumento da necessidade de explicação de Maxwell (1962) como formulações preliminares do argumento do milagre. Na sequência, apresentaremos a formulação inicial de Putnam (1975) do argumento do milagre e, depois, sua sofisticação na defesa explicacionista do realismo científico realizada por Leplin (1984) e na perspectiva naturalista de Boyd (1984). Na seção 4.2, analisaremos algumas críticas e defesas do argumento do milagre: a crítica de Laudan ([1981] 1984) a partir da indução pessimista, a objeção de Arthur Fine (1984) de circularidade viciosa e, paralelamente, as respectivas respostas a elas. O princípio da caridade será apresentado na seção 4.3, ao analisarmos a explicação realista da convergência das teorias científicas. Nas seções 4.4 e 4.5, traremos para discussão os fenômenos da novidade preditiva abordado por Leplin (1997, 2006) e da fecundidade teórica examinado por Ernan McMullin (1984), visando oferecer um fortalecimento ao argumento do milagre. Por fim, na seção 4.6, responderemos negativamente ao questionamento de se a fecundidade pode ser reduzida a virtudes científicas mais fundamentais.