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O anarquismo de Feyerabend e os estudos sociais da ciência: explicações psicológicas e

A virada histórica na filosofia da ciência, com seu olhar para a prática científica, destacou as complexas relações sociais que interferem direta ou indiretamente na produção do conhecimento científico: os contextos social, econômico e político, a colaboração e a competição entre cientistas e instituições etc. O estudo da ciência da perspectiva sociológica, em tese, é neutro com respeito à problemática do realismo científico, mas, na prática, as abordagens sociológicas da ciência em sua esmagadora maioria são implícita ou explicitamente antirrealistas. A consideração do papel (determinante) desempenhado pelos fatores sociais na produção do conhecimento científico, comumente, conduz a alguma forma de construtivismo social e esse compromisso filosófico construtivista é inconsistente com o realismo científico. Se, para o construtivista social, fatores sociais determinam o que é aceito como verdadeiro ou falso na ciência, se o significado dos termos científicos é produto de negociação social, se a própria realidade em que a comunidade científica trabalha é construída historicamente, então ele se opõe à argumentação realista científica de que as teorias oferecem conhecimento objetivo da realidade independente da mente, do discurso.

Neste contexto, outra explicação, diferente da apresentada pelo realista científico, para o êxito da ciência é oferecida por Paul Feyerabend (1975). Essa explicação está estreitamente vinculada a uma concepção peculiar da ciência e da prática científica por ele apresentadas.

Para Feyerabend (1975), não há uma entidade chamada “Ciência” com princípios e métodos próprios e claramente definidos ou “à espera” dessa definição, mas, antes, a ciência compreende uma grande variedade de abordagens teóricas, experimentais, fenomenológicas, retóricas etc. Mesmo se nos limitarmos a considerar apenas uma ciência particular como a física, que tradicionalmente constituiu um modelo de procedimento científico, veremos que consiste em uma coleção de assuntos variados, cada um deles contendo procedimentos específicos e tendências muitas vezes não só diferentes, mas até conflitantes.

Com efeito, ele apresenta a tese37 do Contra o método nos seguintes termos:

[...] os eventos, os procedimentos e os resultados que constituem as ciências

não têm uma estrutura comum; não há elementos que ocorram em toda

investigação científica e que estejam ausentes em outros lugares. Desenvolvimentos concretos (como a derrubada das cosmologias do estado estacionário e a descoberta da estrutura do DNA) têm características distintas e podemos com frequência explicar como e por que essas características conduziram ao êxito. Mas nem toda descoberta pode ser explicada da mesma maneira, e procedimentos que deram resultado no passado podem causar danos quando impostos no futuro. A pesquisa bem- sucedida não obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em outro, de outro [...].(FEYERABEND, [1975] 2007, p. 19)

Ele diz ainda:

[a] unidade [da ciência] desaparece ainda mais quando prestamos atenção não apenas em rupturas no nível teórico, mas na experimentação e, especialmente, na moderna ciência de laboratório. [...] termos como “experimentação” e “observação” abrangem complexos processos contendo muitos elementos. “Fatos” surgem de negociações entre grupos diferentes, e o produto final – o relatório publicado – é influenciado por eventos físicos, processadores de dados, soluções conciliatórias, exaustão, falta de dinheiro, orgulho nacional e assim por diante. [...] estamos bem longe da velha ideia (platônica) de ciência como um sistema de enunciados desenvolvendo-se por meio de experimentação e observação e mantido em ordem por padrões racionais duradouros. (FEYERABEND, [1975] 2007, p. 14)

Para Feyerabend ([1975] 2007, p. 37-43;178), não há sequer uma regra que não seja violada pelos cientistas em algum momento de sua prática, ainda que seja bastante plausível e bem fundamentada em alguma epistemologia. Ocorre que essas violações não são apenas acidentes, não são eventuais, resultantes de falta de conhecimento, de descuido ou de qualquer coisa que poderia ser evitada por mais atenção, conhecimento, instrumentos melhores etc. Essas violações não constituem apenas um “fato” da história da ciência, mas um passo necessário (e, razoável, ao contrário do que possa parecer a um racionalista tradicional) para o desenvolvimento do conhecimento. Interesses, forças (políticas, econômicas, ideológicas

37 De acordo com Feyerabend ([1975] 2007, p. 20), essa tese é apoiada em exemplos históricos, mas “[t]al lastro não a estabelece; ele a faz plausível”. Para ele, a história não tem qualquer privilégio em relação às outras formas de conhecimento. Ela não consiste em um conjunto de fatos (nem mesmo existem “fatos nus”) e conclusões deles extraídas. Ela é complexa, muitas vezes caótica, repleta de enganos e interesses. Não obstante, é uma forma de saber a ser considerada, assim como os saberes dos não-especialistas, do senso comum, da religião etc. A história da ciência, bem como a filosofia da ciência (a despeito dos recursos “didáticos” ou habituais), é parte inseparável da própria ciência. Assim como a separação entre ciência e não-ciência é apenas artificial.

etc.), propagandas e até mesmo “técnicas de lavagem cerebral” (como a educação, no mínimo inibidora, que recebemos) desempenham um papel muito maior no desenvolvimento da ciência e do nosso conhecimento em geral, do que se acredita. Para ele, “nem a lógica nem a experiência podem limitar a especulação”.

Ao destacar a inconsistência entre as teorias adotadas, bem como entre estas e os experimentos, “fatos” e “observações”, Feyerabend (1975) não está desenvolvendo uma crítica à ciência, mas sim a uma visão simplista de alguns filósofos da ciência. Para ele, a ciência só chega a ser o que é devido a tais procedimentos contraindutivos, inconsistentes teórica e experiencialmente, multiformes, ambíguos, irracionais, inseparáveis de um background histórico etc. Para uma nova teoria conquistar o espaço da estrutura já estabelecida da antiga teoria, o seu propositor terá mesmo que ser perspicaz e usar de todos os recursos disponíveis: retórica, propaganda, insistência de que se trata de uma espécie de resultado conquistado de certa forma pela anterior, para resolução de problemas detectados, e não uma ruptura que apresenta novos problemas. Em suas palavras:

[...] um novo período da história da ciência começa com um movimento de

recuo que nos conduz de volta a um estágio anterior em que as teorias eram

mais vagas e tinham conteúdo empírico mais reduzido. [...]

Esse movimento de recuo é de fato essencial [...] a adesão a novas ideias terá de ser produzida por outros meios que não argumentos. Terá de ser produzida por meios irracionais, como propaganda, emoção, hipóteses ad

hoc e recurso a preconceitos de todos os tipos. Precisamos desses “meios

irracionais” a fim de sustentar o que não passa de uma fé cega até que tenhamos encontrado as ciências auxiliares, os fatos, os argumentos que transformem a fé em “conhecimento” sólido.

[...] o copernicanismo e outras concepções “racionais” só existem hoje

porque, em seu passado, a razão foi posta de lado em certas ocasiões.

(FEYERABEND, [1975] 2007, p. 166-7; 169)

O movimento de recuo acaba se tornando em um passo à frente, no sentido de que deixa para trás uma teoria solidificada e esgotada em si mesma, um modelo improdutivo (que pode apenas ser polido e adaptado para uso) para dar vazão a um modelo fértil. Depois de estabelecida, dispondo-se de uma nova linguagem e visão de mundo, pode-se fazer uma reconstrução racional da teoria e das situações envolvidas no processo de sua edificação, justificando-se a escolha feita.

Feyerabend (1975) não ignora a clássica distinção entre contexto da descoberta e da justificação: a descoberta, por um lado, pode ser irracional, não seguir um método, ter origem histórica, em que o acaso, os aspectos psicológicos e as condições sociopolítico-econômicas podem ser determinantes (objeto da história da ciência); mas, por outro lado, a justificação, a

análise crítica, tem lugar depois da descoberta, procedendo de forma ordenada, a partir de uma reconstrução lógica da estrutura conceitual e de testes severos das teorias científicas (objeto da filosofia da ciência). O questionamento é em que medida esta distinção reflete uma diferença real. Para ele, a prática científica não contém dois contextos sequenciais ou paralelos, mas a complexa mistura de procedimentos revela a interação entre esses domínios. Mais do que isso, para Feyerabend (1975), a ciência avança devido justamente a essa mistura.

Argumento similar se aplica às distinções entre normas e fatos e entre termos observacionais e termos teóricos. Essas distinções não desempenham papel na prática científica. Quanto à primeira, o desenvolvimento da ciência acontece somente porque a distinção entre o dever e o ser, na prática, não passa de um dispositivo temporário, em vez de uma linha delimitadora fundamental. Quanto à segunda distinção,

[...] talvez tenha tido alguma vez um propósito, mas agora definitivamente o perdeu [...]. Hoje em dia, admite-se, geralmente, que essa distinção não é tão nítida como se pensava ser há apenas poucas décadas. Também se admite, em completa concordância com as opiniões originais de Neurath, que tanto teorias quanto observações podem ser abandonadas: as teorias podem ser abandonadas por causa de observações conflitantes, as observações podem ser suprimidas por razões teóricas. Finalmente, descobrimos que o

aprendizado não vai da observação para a teoria, mas sempre envolve ambos

os elementos.

[...] Contudo, a distinção entre observação e teoria continua a ser sustentada. Mas qual é o sentido dela? Ninguém negará que as sentenças da ciência podem ser classificadas em longas e curtas, ou que seus enunciados podem ser classificados em enunciados que são intuitivamente óbvios e outros que não são. Ninguém negará que tais distinções podem ser feitas. Mas ninguém dará grande peso a elas, nem mesmo as mencionará, pois elas não

desempenham hoje em dia nenhum papel decisivo nos assuntos da ciência.

(FEYERABEND, [1975] 2007, p. 210-1)

Algumas das consequências da adoção dessa visão de ciência envolvem diretamente a noção de êxito científico:

[...] o sucesso científico não pode ser explicado de maneira simples. Não podemos dizer: “a estrutura do núcleo atômico foi descoberta porque as pessoas fizeram A, B, C...”, em que A, B e C são procedimentos que podem ser compreendidos independentemente de seu uso na física nuclear. Tudo o que podemos fazer é dar uma explicação histórica dos detalhes, incluindo circunstâncias sociais, acidentes e idiossincrasias pessoais.

[...] o êxito da “ciência” não pode ser usado como argumento para tratar de

maneira padronizada problemas ainda não resolvidos. Isso poderia ser feito

apenas se houvesse procedimentos que pudessem ser destacados de situações de pesquisa particulares e cuja presença garantisse o êxito. A tese diz que não existem tais procedimentos. Fazer referência ao êxito da “ciência” a fim

de justificar, digamos, a quantificação do comportamento humano é, portanto, um argumento sem substância.

[...] procedimentos “não-científicos” não podem ser postos de lado por

argumentos. Dizer “o procedimento que você usou não é científico, portanto,

não podemos confiar em seus resultados nem dar-lhe dinheiro para pesquisa” pressupõe que a “ciência” seja bem-sucedida e é bem-sucedida porque usa procedimentos uniformes. A primeira parte da asserção (“a ciência é sempre bem-sucedida”) não é verdadeira, caso por “ciência” queiramos nos referir a coisas feitas por cientistas – há também muitos fracassos. A segunda parte – que os sucessos se devem a procedimentos uniformes – não é verdadeira, porque não há tais procedimentos. (FEYERABEND, [1975] 2007, p. 20-1)

Diante dessas consequências, Feyerabend ([1975] 2007, p. 8-9; 225, itálico nosso) conclui que “[...] a ciência deveria ser ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho para a verdade e a realidade” e recomenda “[...] colocar a ciência em seu lugar como uma forma de conhecimento interessante, mas de modo algum exclusiva, que tem muitas vantagens, mas também muitos inconvenientes”.

Em suma, para Feyerabend (1975), é comum na literatura serem destacadas apenas as realizações bem-sucedidas da ciência, deixando de lado os seus fracassos. Porém, de fato, quando considerada na sua integridade, a história da ciência é uma história de muitos fracassos. Além disso, na divulgação do processo de desenvolvimento da ciência também são omitidos aspectos determinantes como os fomentos às pesquisas, os interesses comerciais, as razões militares, a vaidade intelectual, interesses partidários, o orgulho nacional etc.

Arranjos financeiros podem levar ao êxito ou ao fracasso de um programa de pesquisa e de uma profissão inteira. Há muitas maneiras de silenciar as pessoas, além de proibi-las de falar – e todas elas estão sendo usadas hoje. O processo de produção e distribuição de conhecimento jamais foi o intercâmbio livre, “objetivo” e puramente intelectual que os racionalistas disseram ser. (FEYERABEND, [1975] 2007, p. 20-1)

Além disso, ele sugere que tal êxito pode ser explicado porque o cientista dirige o seu esforço e atenção para os problemas mais fáceis de serem resolvidos. Apoiando-se no exemplo dado por R. Levins e R. C. Lewontin, Feyerabend (1989, p. 403) diz que o sucesso de um método, bem como de uma visão de mundo, deve-se em parte ao fato histórico de sua pertinência para determinados propósitos: alguns problemas são mais vigorosamente perseguidos, precisamente porque o método foi construído os tendo em vista e, assim, funciona para eles. Outros problemas e fenômenos são deixados para trás, devido ao comprometimento com aquele método e visão de mundo. Os problemas mais difíceis não são

enfrentados: nenhuma carreira científica brilhante é construída a partir de fracassos persistentes, mas sim de sucessos.

De acordo com Feyerabend ([1975] 2007, p. 190-1),

[...] há agora muitos cientistas, especialmente na física de alta energia, que encaram todas as teorias como instrumentos de predição e rejeitam o falar sobre verdade como metafísico e especulativo. Sua razão é que os aparelhos que utilizam são tão obviamente projetados para propósitos de cálculo, e que abordagens teóricas dependem tão claramente de considerações de elegância e fácil aplicabilidade, que essa generalização parece fazer bom sentido. [...] uma inferência direta de teoria a realidade é, portanto, bastante ingênua. Tudo isso era sabido pelos cientistas dos séculos XVI e XVII. Apenas uns poucos astrônomos consideravam deferentes e epiciclos reais caminhos nos céus; a maioria deles os considerava caminhos no papel que podiam auxiliar os cálculos, mas não tinham um correspondente na realidade.

Para Feyerabend ([1975] 2007) parece claro que a nova situação, ou seja, essa tendência histórica, sociológica, requer uma nova filosofia e, acima de tudo, novos termos. Contudo, “[...] alguns dos principais pesquisadores na área ainda estão se perguntando se um exemplo particular de pesquisa produz uma ‘descoberta’ ou uma ‘invenção’, ou até que ponto um resultado (temporário) é ‘objetivo’” (p. 15).

O realista científico concorda com Feyerabend (1975) e com os construtivistas em geral que o progresso científico envolve tanto conhecimento teórico como instrumental e que os métodos científicos são profundamente dependentes da teoria. Enquanto na perspectiva do realismo científico a realidade estudada pelos cientistas é “independente da mente, da teoria”, na concepção construtivista as teorias científicas refletem a construção social da realidade.

De certo modo, a tese da determinação social não necessariamente entra em conflito com o realismo científico. Os fatores sociais podem determinar a direção da pesquisa científica permitida, estimulada e financiada, mas isso não precisa impedir a atitude realista com respeito aos resultados do trabalho científico.

De acordo com o “anarquismo” de Feyerabend (1975), nenhuma teoria teria o privilégio da verdade sobre as outras. A própria história seria apenas uma das possíveis condições de inteligibilidade do real e, baseados nela, é que constatamos a determinação social da ciência e explicamos o sucesso científico por certas artimanhas dos cientistas e não por as teorias científicas representarem a natureza como esta realmente é. Os realistas científicos, em geral, aceitam algumas premissas utilizadas por Feyerabend, o que eles não aceitam é a conclusão. Concordamos com os realistas de que a imagem da ciência tal como retratada por filósofos como Feyerabend não está totalmente equivocada. Reconhece-se a

determinação social da construção das teorias científicas. No entanto, mesmo dentro das amarras das restrições psicossociais consideradas, a atividade científica consegue penetrar a estrutura profunda de parcelas da realidade (aqueles aspectos nos quais se têm os mais diversos interesses a desvelar).

Na próxima seção, apresentaremos a explicação evolucionista-darwiniana para o sucesso da ciência, tal como mantida pelo empirismo construtivo de van Fraassen.

5.3 A explicação evolucionista-darwiniana para o sucesso da ciência de van Fraassen: o