• Nenhum resultado encontrado

A estrutura semântica da ação: a trama conceitual como síntese

2. MIMESIS 1: O ENTENDIMENTO PARTILHADO SOBRE O MUNDO DA

2.2. TRÊS DIMENSÕES DA COMPREENSÃO DO MUNDO DA AÇÃO

2.2.1. A estrutura semântica da ação: a trama conceitual como síntese

Uma ação requer uma estrutura mínima. É a isso que respondem as perguntas: Quem? Onde? Por quê? O quê? Como? Para quê? Com quem? Contra quem? Quando essas perguntas são consideradas conjuntamente, a estrutura ganha uma perspectiva narrativa, que compõe as repostas a estas perguntas, numa relação de intersignificação, na qual os seguintes elementos são considerados essenciais da ação: a) metas: uma ação também implica finalidades, na medida em que há sempre uma idéia de futuro envolvida em nossas ações; b)

motivos: nós agimos movidos por crenças, desejos, intenções, convicções que impulsionam o fazer humano; c) o agente: não existe ação sem que um agente a tenha realizado, alguém atuou de alguma forma; d) circunstâncias: uma ação não acontece isolada, ela está sempre inserida em suas circunstâncias; e) interação: assumpção do caráter relacional das ações; f) desfecho: uma ação sempre leva a um fechamento finalizador da ação.

Esses elementos da estrutura da ação, considerados conjuntamente na narrativa, respondem por uma trama conceitual. Ao traduzir a estrutura semântica da ação como uma trama conceitual, Ricoeur (1994) enfatiza a significação da ação como uma relação com cada um e com todos os seus termos: as metas, os motivos, o agente, as interações, as circunstâncias e o desfecho. A significação no discurso narrativo torna esses elementos integrados. O significado de cada um no todo narrativo depende dessa integração, ou seja, depende de seu lugar na trama conceitual. A esse respeito, Ricoeur ressalta que:

O fato decisivo é que empregar de modo significativo um ou outro desses termos, numa situação de pergunta e resposta, é ser capaz de ligá-los a qualquer outro membro do mesmo conjunto. Nesse sentido, todos os membros do conjunto estão numa relação de intersignificação (RICOEUR, 1994, p. 89).

Essa relação de intersignificação entre os termos de um conjunto que compõem a estrutura semântica leva a funcionar, numa síntese estética, os elementos da estrutura da ação. Através da síntese estética proporcionada pela recriação narrativa da experiência, os elementos da estrutura semântica da ação se tornam elementos estruturais da narrativa.

A concepção de trama conceitual como uma síntese estética deve-se ao fato de que a recriação narrativa é um processo da linguagem. Na narrativa, os elementos da estrutura semântica da ação são recriados conjuntamente por palavras. Portanto, essa recriação é também uma nomeação. Na narrativa, são as palavras que configuram conjuntamente as metas, os motivos, o agente, as circunstâncias as interações e o desfecho numa imitação criativa da ação.

Freeman (1993) ilustra a natureza lingüística da recriação envolvida na mimesis narrativa da experiência utilizando-se da análise de um trecho da biografia de Helen Keller, no momento em que ela narra sua súbita descoberta do mundo da linguagem. Essa descoberta aconteceu momentos depois de ela ter lançado ao chão e quebrado, em um rompante de raiva, uma boneca que acabara de ganhar. Então, sua professora, Miss Sullivan, a leva para um passeio perto do poço. Lá, estava alguém tirando água e a professora pôs a mão de Helen sob o jorro e, seguidamente, soletrou a palavra água no alfabeto táctil que estava tentando ensinar- lhe (lembremo-nos que Helen Keller era cega e surda). Foi aí que Helen subitamente se deu conta de que os toques da professora na sua mão eram símbolos e que, juntos, tinham sentido, formavam uma palavra. Ela percebeu, pela primeira vez, que aqueles toques em sua mão significavam aquele líquido que escorria entre as suas mãos. Helen, então, relata que se sentiu como se sua alma tivesse sido liberta.

A análise desse evento, e do que se segue imediatamente, é assim apresentada em Freeman (1993) e, embora a citação seja longa, vale a pena transcrevê-la:

Mas por quê? Por que uma coisa tão aparentemente arbitrária como uma palavra, uma mera concatenação de letras, libertaria a sua alma? Quaisquer que fossem as respostas, ficaria aparente que a cena perto do poço foi, na verdade, monumental – particularmente, talvez, em retrospecto. Logo ficaria claro que o espaço de sua experiência tinha se alargado sobremaneira. Helen tornou-se imediatamente voraz para aprender. ...O único problema era a boneca que ela tinha quebrado momentos antes. “Eu achei o caminho para a lareira e peguei os pedaços. Em vão eu tentei juntá-los. Então meus olhos se encheram de lágrimas, porque eu percebi o que tinha feito e, pela primeira vez, eu senti arrependimento e tristeza” Admiravelmente, neste breve momento, Helen tinha aparentemente adquirido não apenas o significado do cuidado e talvez mesmo do amor... Mas também o significado do significado: de sensações sem palavras emergiu o pensamento genuíno. Por que, então, também, emergiu arrependimento e tristeza? A razão parece ser que, juntamente com a aquisição da linguagem, o que Helen adquiriu foi um sentido de sua própria existência no tempo e, portanto, da ordem narrativa da própria vida.

A aquisição da linguagem, ela concluiu, abrangeu significantemente mais do que meramente anexar nomes a um mundo já significativo. Ao invés, e pelo próprio relato de Helen, a linguagem realmente criou um mundo (FREEMAN, 1993, pp. 56-57).

Para pensar a trama conceitual como síntese estética, além do auxílio desse trecho de Freeman (1993), queremos relembrar também o que foi dito no capítulo anterior sobre as qualidades da participação reflexiva no desenvolvimento humano. É sob a luz da participação reflexiva que devemos entender a composição narrativa dos elementos do mundo da ação como síntese estética.

O principal instrumento da participação reflexiva é o distanciamento psicológico proporcionado pela mediação simbólica que possibilita à pessoa estar inserida e, ao mesmo tempo, distanciada de uma situação de sua experiência. Cremos que, do ponto de vista psicológico, esse recurso da mediação simbólica pode ser visto em funcionamento na construção conjunta dos elementos do mundo da ação que acontece na narrativa. Ainda mais: podemos ver como a participação reflexiva resulta numa nova qualidade de relação do agente com a experiência: a transformação de uma mera experiência em uma experiência. O entendimento do mundo da ação, como parte do processo narrativo, se vincula ao trabalho da mediação simbólica de participação reflexiva sobre seus elementos estruturais.

Esse vínculo se atualiza no processo da composição conjunta de seus elementos estruturais devido a quatro características da participação reflexiva: primeiro, a composição conjunta cria uma dupla perspectiva do agente com relação à experiência - de dentro e além da experiência; segundo, essa dupla perspectiva é um fato da linguagem, é a mediação da palavra que instaura esse duplo funcionamento; terceiro, um salto qualitativo na experiência origina-se desse recurso (este salto aparece como o alargamento da abrangência da experiência humana); quarto, uma nova qualidade estética advém dessa situação.

Com essas quatro características em mente, voltemos à descoberta da linguagem, no texto de Freeman (1993), sobre Helen Keller. A descoberta da linguagem possibilitou a Helen uma dupla perspectiva com relação à experiência anterior com a boneca. Antes da descoberta da linguagem, apenas de dentro da experiência, ela agia, mas não discernia as suas ações. A

mediação da palavra permitiu que ela transpusesse os limites da experiência e pudesse retornar a ela a partir de um tempo que já não era mais o tempo presente da experiência. De fora da experiência, ela pôde reconstruir o passado, compondo os elementos estruturais desse passado conjuntamente. Assim, ela pode se ver como um agente que, de acordo com certos motivos e sob determinadas circunstâncias, impetrou uma ação sobre a boneca, o que terminou em um desfecho específico. A sua relação com a experiência específica era completamente diferente agora. Era outra relação, tinha outra qualidade, uma qualidade de concatenação narrativa, decorrente da síntese estética que a linguagem proporcionou. Entre o primeiro momento da experiência, apenas de dentro, e o segundo, estava, literalmente, a descoberta da palavra e da significação. A boneca estava em pedaços, a experiência começava a ficar inteira, já que a síntese estética proporcionou um construto significativo relativo à experiência.

Essa síntese estética é apresentada por Valsiner (2000) como construindo uma qualidade afetiva nova com relação à experiência. Isso está de acordo com o relato de Helen Keller sobre os sentimentos de tristeza e arrependimento pela boneca após o seu encontro com a linguagem. Para Valsiner (2000), a experiência estética

...Une a imediaticidade e a distância do objeto de tal experiência em um novo todo afetivo, que pode ser visto destruindo a hierarquia e se tornando um campo no qual noções abstratas e eventos concretos são fundidos em um sentimento holístico (VALSINER, 2000, p. 51).

As qualidades da experiência estética relacionadas por Valsiner - a união da dupla perspectiva da experiência (imediaticidade e distância) e fusão de noções abstratas e eventos concretos convergindo para uma nova afetividade - se assemelha à composição dos elementos da estrutura semântica da ação e sua capacidade de suscitar afetos. No caso da história de Helen Keller, Freeman (1993) relaciona a descoberta desse novo afeto a uma localização narrativa de Helen na sua própria experiência. Segundo o pesquisador, é o advento da perspectiva estética que opera a convergência do sentimento de tristeza e arrependimento.

Assim, a linguagem identifica e depois transforma os elementos estruturais da ação em elementos da estrutura semântica da ação na narrativa. Partindo desse conhecimento, o autor compõe os elementos do mundo da ação na narrativa, transformando-os, pelo seu funcionamento conjunto, em uma síntese estética que proporciona a negociação dos significados da experiência recriada sobre a construção desse mundo da ação. Desta maneira, a narrativa se apóia na experiência e a recria na linguagem.

2.2.2. Os recursos simbólicos como descrição contextual: justificativas e