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Intratemporalidade e a concepção de narrativa como uma tríplice

1. A BUSCA DE UMA METODOLOGIA: TEMPO E SIGNIFICADO NA

1.2. TEMPO E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADO NA NARRATIVA

1.2.4. Intratemporalidade e a concepção de narrativa como uma tríplice

Para responder como a configuração temporal da experiência constitui um processo de significação que compõe o tempo e o espaço da experiência em um cronotopos narrativo de forma que a imagem do agente da experiência em desenvolvimento seja relatada, recorremos à concepção de Ricoeur de que a relação entre tempo e narrativa se revela na tríplice mimesis que constitui o processo de narração.

Em Tempo e Narrativa, Ricoeur (1994) explora a relação entre tempo e narrativa a partir de dois pólos distintos da literatura filosófica, separados um do outro por séculos e por universos distintos. Ele explora a narrativa a partir da teoria da construção do enredo na Poética de Aristóteles e o tempo a partir da teoria do tempo nas Confissões de Santo Agostinho. Concebendo a narrativa como um processo temporal no qual a construção do enredo se apresenta como uma Concordância discordante, Ricoeur explora como as relações entre Concordância e discordâncias são compostas pelas idéias desses dois filósofos.

Ricoeur chega à conclusão de que “A análise agostiniana oferece, com efeito, uma representação do tempo na qual a discordância não cessa de desmentir o anseio de Concordância constitutiva do animus. A análise aristotélica, em compensação, estabelece a preponderância da concordância sobre a discordância na configuração do enredo”. (RICOEUR, 1994, p. 16)

Ricoeur encontra na concepção do tempo agostiniana como tríplice presente de um tempo que passa - não na exterioridade, mas na alma - um ponto de partida para explorar a natureza temporal da narrativa:

O achado inestimável de Santo Agostinho, reduzindo a extensão do tempo à distensão da alma, é o de ter ligado essa distensão à falha que não cessa de se insinuar no coração do tríplice presente: entre o presente do futuro, o presente do passado e o presente do presente. Assim, ele vê a discordância nascer e renascer da própria Concordância entre os desígnios da expectativa, da atenção e da memória (RICOEUR, 1994, p. 41).

Em Aristóteles, Ricoeur encontra o conceito de enredo como mimesis da experiência. Todavia o conceito de mimesis não é o de pura imitação: “... se continuamos a traduzir mimesis por imitação, deve-se entender totalmente o contrário do decalque de um real preexistente e falar de imitação criadora” (RICOEUR, 1994, p. 76).

Com os pontos de partida estabelecidos, Ricoeur se lança à tarefa de estabelecer as relações entre tempo e narrativa. Para esse autor, “O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça traços da experiência temporal.” (RICOEUR, 1994, p. 15) Esse é o círculo hermenêutico que Ricoeur se dispõe a explorar na referida obra.

Para explorá-lo, o pesquisador define o processo narrativo como uma tríplice mimesis gerida pelas tensões do tríplice presente. O tríplice presente como um tempo gerido pela tensão é explicitado na narrativa como uma composição das Concordâncias e discordâncias da experiência humana.

Para fortalecer os laços que unem o tríplice presente do tempo de Agostinho à tríplice mimesis baseada na obra Aristotélica, Ricoeur prescinde de fazer uma relação direta de um a um. Ele busca no conceito de intratemporalidade de Heidegger um ponto de apoio para identificar a atuação do tríplice presente ao longo do processo mimético que constitui o círculo hermenêutico posto em funcionamento na narração. O conceito de intratemporalidade

se refere à maneira cotidiana de o ser humano experimentar o tempo jogado entre as coisas que importam.

O argumento de Ricoeur de que o conceito de intratemporalidade partilha dos mesmos fundamentos temporais da narrativa fortalece a perspectiva de que a questão final da significação narrativa da experiência é a compreensão do ser humano existindo na esfera da cultura e do significado.

Heidegger está primeiramente interessado em entender o ser. É a busca da compreensão do ser que introduz o tempo na reflexão de Heidegger “... deve-se mostrar e esclarecer, de modo genuíno, o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação do ser”. (HEIDEGGER, 2000, p.45)

Na reflexão das relações entre o ser e o tempo, Heidegger inclui o conceito de presença (Dasein) porque “a presença é de tal modo que, sendo, realiza uma compreensão do ser”. (HEIDEGGER, 2000, p. 45) O caráter da presença como “o ente que sempre eu mesmo sou” (HEIDEGGER, 2000, p. 90) é ontologicamente constituído como ser-no-mundo. Ao identificar a presença como ser-no-mundo, Heidegger insere a necessidade de considerar também o espaço na compreensão temporal do ser. Usando a expressão ‘ser-em’ como a indicação do plano estrutural da existência, Heidegger detecta a relação intrínseca que a presença tem com o mundo, o que sugere a idéia de espaço: “o ser-em é, pois, a expressão formal e existencial do ser da presença que possui a constituição essencial de ser-no-mundo”. (HEIDEGGER, 2000, p. 92) Portanto, a constituição da presença como ser-no-mundo ressalta o aspecto de espacialidade da presença. Isto é expresso por Heidegger da seguinte forma: “A compreensão do ser-no-mundo como estrutura essencial da presença é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença. (HEIDEGGER, 2000, p. 94, destaque do autor)

Assim, a espacialidade é introduzida na interpretação temporal do ser, ainda que o tempo constitua o eixo da reflexão. Heidegger define essa necessidade do entendimento do tempo na interpretação do ser da seguinte forma

... O tempo é o ponto de partida do qual a presença sempre compreende e interpreta implicitamente o ser. ...Para que isso se evidencie, torna-se necessária uma explicação originária do tempo enquanto horizonte da

compreensão do ser a partir da temporalidade, como ser na presença, que se perfaz no movimento de compreensão do ser (HEIDEGGER, 2000, p. 45,

destaque do autor).

A compreensão do ser a partir da presença do ser-no-mundo levanta, então, o conceito de temporalidade como o sentido existencial do tempo. Nessa reflexão, Heidegger concebe a intratemporalidade como o terceiro plano na organização hierárquica do tempo humano.

Ricoeur entende que “é sobre o pedestal da intratemporalidade que se edificarão conjuntamente as configurações narrativas”. (RICOEUR, 1994, p. 101) Ele apresenta duas razões principais para essa aproximação entre narrativa e intratemporalidade. Em primeiro lugar, a intratemporalidade é definida pela característica do cuidado (Sorge), que consiste na condição humana de ser lançado entre as coisas. Essa condição tende a tornar a descrição da temporalidade dependente das coisas com as quais o ser humano se importa, ou é inquietado por elas. Em segundo lugar, intratemporalidade, ou ser-no-tempo, é, antes de tudo, contar com o tempo. Essa segunda razão é especialmente assistida pela linguagem, pois, na medida em que experimentamos o tempo lançado entre as coisas e que e contamos com ele para existir entre estas coisas,

Deve ser possível dar uma descrição existencial deste contar com,... . Aqui expressões tais como “ter tempo de...”, “demorar o tempo de...”, “perder seu tempo” etc. São altamente reveladoras. Dá-se o mesmo com a trama gramatical dos tempos verbais e a trama muito diversificada dos advérbios de tempo: então, após, mais tarde, mais cedo, depois, até que, enquanto que, durante, todas as vezes que, agora que, etc. Todas essas expressões, de uma extrema sutileza e de uma diferenciação fina, orientam em direção ao caráter datável e público da intratemporalidade (RICOEUR, 1994, p. 99).

Essas características da intratemporalidade - de ser a base da existência do ser humano, lançado entre as coisas e ser mediada pela linguagem ordinária do dia-a-dia -,

primeiramente a previnem de uma pura seqüencialidade cronológica, depois a constituem com um conteúdo específico: as coisas entre as quais somos lançados, ou seja, as coisas do nosso cuidado, aquelas que importam; o que resulta na sua espacialização.

Essa vinculação da intratemporalidade com as coisas da existência humana que importam, por um lado, e sua conseqüente organização na linguagem ordinária, por outro, a credenciam a se apresentar como o pedestal a que se refere Ricoeur sobre o qual se edifica o tríplice processo mimético da experiência que é a narrativa.

A narrativa, então, se apresenta como um discurso que organiza, num todo temporal a existência dos seres humanos, compondo, num enredo, as coisas que importam. Esse é o sentido primário da mimesis da experiência realizada na narrativa.

Queremos finalizar pelo o raciocínio que aproxima a intratemporalidade da narrativa por onde o começamos. É a preocupação com o ser e com a existência humana que leva Heidegger a verificar o sentido do tempo humano. É, finalmente, essa preocupação que aproxima a intratemporalidade do processo narrativo; o que se quer é a compreensão do ser humano e das condições da existência e do desenvolvimento humano. Essa compreensão envolve o fundamento da intratemporalidade, que é de ser um tempo espacializado e sua transposição para o discurso narrativo na forma de uma composição tempo-espaço, ou seja, um cronotopos narrativo. Assim, chegamos a um ponto em que a idéia de cronotopos e a de intratemporalidade se encontram: um self que se desenvolve no tempo jogado entre as coisas que importam.

A metodologia deste trabalho, que, na verdade, se constitui numa proposta metodológica, apresentada a seguir, é a de detalhar, na análise de narrativas, a tripla face do processo de significação da experiência humana instaurado sobre o pedestal da intratemporalidade como fundamento do cronotopos narrativo.

1.3. TRÍPLICE MIMESIS NAS NARRATIVAS ESCRITAS POR ESTUDANTES DA