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A articulação do já conhecido com o ainda novo como drama

1. A BUSCA DE UMA METODOLOGIA: TEMPO E SIGNIFICADO NA

1.1. NARRATIVA E SIGNIFICADO DA EXPERIÊNCIA HUMANA

1.1.2. Narrativa e o estudo do significado em ciência psicológica

1.1.2.2. A articulação do já conhecido com o ainda novo como drama

A introdução de novos significados, diferentes daquilo que já era conhecido, carrega a concepção de drama. Se significar uma experiência implica introduzir seus aspectos de novidade no âmbito do sistema de significados, essa introdução traz sempre um risco inerente. Esse risco é o da discrepância entre a expectativa gerada pela regulação cultural para a experiência e aquilo que foi vivido e significado. Há, portanto, um embate da regulação cultural com os desejos e crenças pessoais, na presença de circunstâncias, imprevistos e todas as vicissitudes passíveis de acontecer ao longo de uma experiência. A narrativa é sempre uma tentativa de negociar esta discrepância na arena simbólica da construção de significados.

A necessidade de significar uma experiência decorre do fato de que cada experiência narrada, em níveis e graus diferentes, relata transgressões às prescrições canônicas do curso da experiência. Por isso, toda experiência narrada apresenta uma negociação entre os aspectos que corroboram a prescrição cultural, que são concordantes com as versões reguladoras do curso da experiência prevalentes na cultura, e os aspectos discordantes, que violam as prescrições canônicas do curso da experiência. Bruner (2001) expõe da seguinte forma esta tensão sutil:

Agora, o único requisito imposto para contar uma história de vida (mesmo quando apenas convidado para fazê-lo por um psicólogo) é que alguém diga algo ‘interessante’ – que é dizer uma história que seja imediatamente reconhecidamente canônica e reconhecidamente não canônica. O que faz

com que algo seja ‘interessante’ é invariavelmente uma ‘teoria’ ou ‘história’ que corra contra a expectativa ou produza um resultado contra a expectativa. (BRUNER, 2001, p. 30)

Bruner (1997a) identifica como um dos elementos desta transgressão uma tensão entre o que ele chama de estados de mundo e estados intencionais. Segundo ele, esta tensão também alimenta o processo de narração da experiência humana. De qualquer forma, surge a concepção de que, ao significar a experiência, a narrativa compõe seus aspectos oponentes. O fato de que a narrativa significa não apenas os aspectos concordantes mas também as vicissitudes do fazer e do sofrer humanos, também contribui para que Ricoeur (1994) defina a construção do enredo como uma operação concordante discordante.

Assim, a tarefa de significação da experiência empreendida na narrativa como um recurso de um sistema cultural para localizar a experiência nos sistemas simbólicos de uma sociedade requer, pelo menos, dois olhares. Num primeiro olhar, são identificados dois sentidos para a realização desta tarefa.

Num primeiro sentido, a significação da experiência ocorre a partir da existência de um sistema de significação. Há um senso de passado, de como o desenvolvimento ‘até então’, o já conhecido constitui o presente. O já conhecido não se refere apenas às conquistas do pensamento humano, como a todas as dimensões humanas que acontecem sob a mediação simbólica. É esta amplitude do já conhecido que Turner capta ao se referir à concepção de Dilthey acerca das experiências formativas:

Dilthey viu tais experiências como uma estrutura temporal ou processual. ...Além disso, elas envolveram, na sua estruturação, a cada momento, não apenas a estruturação do pensamento, mas todo o repertório vital humano de pensamento, vontade, desejo e sentimento, interpenetrando-se sutil e variavelmente em muitos níveis. (TURNER, 1986, p. 35)

Num segundo sentido, a significação da experiência adquire um senso de composição do futuro, é uma heurística de como o presente modela o ‘por vir’ sinalizado na significação do ainda novo. A integração da experiência ao sistema de significados o reconstrói, possibilitando um constante desenvolvimento deste sistema. Isto é possível por causa da

interpenetração entre o todo cultural da vida humana e as experiências particulares, como nos adverte o próprio Turner: “O significado surge quando nós tentamos colocar o que a cultura e a linguagem têm cristalizado do passado, junto com o que sentimos, desejamos e pensamos acerca de nosso ponto de vista presente.” (1986, p. 33).

Nesse sentido, os significados da experiência humana, ao se integrarem aos sistemas de significados, passam a exercer um papel normativo e gerenciador em relação às experiências futuras (ROSALDO, 1986; BRUNER, E. 1986a, 1986b). É possível que se possa aplicar aos significados, no âmbito da cultura, o que Bruner afirmou acerca das teorias do desenvolvimento:

As teorias sobre o desenvolvimento, uma vez aceitas na cultura predominante, deixam de operar simplesmente como descrições da natureza humana e de seu crescimento. Por sua natureza, como representações culturais aceitas, elas, ao contrário, conferem uma realidade social aos processos que buscam explicar e, até certo ponto, aos ‘fatos’ que elas citaram em seu apoio (1997b, p. 140).

Um segundo olhar, no entanto, reveste estes dois sentidos de uma tensão concordante/discordante que alimenta a composição dramática da narrativa na medida em que o curso do desenvolvimento não é dado a priori, mas comporta as vicissitudes do ser e do fazer humanos. Porque o desenvolvimento não é dado a priori, a narrativa se apresenta como uma ferramenta de significação que dá conta de compor, no drama concordante discordante, os aspectos acidentais, inesperados, fortuitos, e indesejados deste desenvolvimento. (LEWIS,1997)

Vygotsky afirmou que “a contradição é característica essencial da forma e do material artísticos” (VYGOTSKY, 1971, p. 217). Essa contradição, traduzida como uma composição concordante/discordante, refere-se à qualidade dramática da narrativa de organizar, em um fio temporal, os aspectos concordantes e discordantes da experiência de forma que, através desta organização, a experiência possa ser significada. Dito de outra maneira: a natureza temporal da narrativa comporta um olhar a partir do sistema de significados em que se enfatiza a

composição do já conhecido com o ainda novo. No entanto, essa mesma ênfase aparece como um drama que tenciona experiência ao considerar a realidade do fazer e do sofrer humanos. Tal tensão é exposta quando as prescrições canônicas não coincidem com os desejos e crenças pessoais, ou quando fatos e circunstâncias inesperadas e, por vezes, adversas, alteram o curso canônico da experiência.

O momento presente da significação narrativa da experiência, ou seja, os apontamentos para uma agenda possibilitada e organizada pela hermenêutica vigente são, portanto, uma interpretação do drama envolvido no ser, no fazer e também no sofrer humanos. Concebendo o princípio narrativo da significação como parte do mesmo impulso à significação que envolve a arte, podemos afirmar da narrativa o que Vygotsky afirmou da arte: “A arte é a organização de nosso comportamento futuro. Ela é um requerimento que nunca deve ser preenchido, mas que nos força a lutar além de nossas vidas em direção a tudo que está adiante dela”. (VYGOTSKY, 1971, p. 253)

Já vimos anteriormente os conceitos de distanciamento e reflexão participativa apresentados por Valsiner (2000, 2001) como recurso da mediação simbólica para a significação da experiência Esses conceitos foram utilizados no entendimento do papel da narrativa no processo de significação da experiência. A despeito de possíveis diferenças teórico-metodológicas, os laços entre a narrativa e os conceitos de distanciamento e reflexão participativa podem ser estreitados ainda mais com a aproximação entre o trabalho narrativo de articulação entre o já conhecido e o ainda novo e o conceito de dramatismo genético apresentado por Valsiner (2000).

Valsiner (2000) se refere ao conceito de dramatismo genético introduzido por Kaplan (citado em VALSINER, 2000) como uma ferramenta para captar os fenômenos psicológicos humanos em seus contextos sócio-culturais. Para ele, a noção de dramatismo se refere à

“idealização do real (actual) junto com a realização do ideal” (VALSINER, 2000, p. 58, destaque do autor).

Primeiro, Valsiner estabelece a ligação entre dramatismo e experiência humana. Esta ligação é expressa com as seguintes palavras:

Em geral, cada situação da vida humana pode ser um solo fértil para a construção do dramatismo genético. Sua universalidade é garantida pela prontidão dos seres humanos para brincar, fantasiar e se envolver em atividades de risco. As próprias pessoas criam tais dramatismos, e os seus ‘outros sociais’ alimentam a expectativa de que isto aconteça (VALSINER, 2000, pp. 58-59).

Esse vínculo, percebido entre o dramatismo e as situações da experiência humana, resulta na concepção deste como um recurso do distanciamento e da participação reflexiva para a emergência do novo: “... Através da dramatização, as capacidades semióticas do se distanciar e do refletir acerca de uma situação de uma nova maneiras se tornam possíveis”. (VALSINER, 2000, p. 59)

Duas outras características do conceito de dramatismo genético o aproximam da forma narrativa de significar a experiência: as suas qualidades temporais -“Considerando a ação simbólica construtiva e criativa, todos os episódios do dramatismo se desenrolam no tempo” (VALSINER, 2000, p. 58) - e sua construção ao mesmo tempo pessoal e coletiva: “Muitas de tais construções são direcionadas pela orientação cultural-coletiva voltadas para tais construções” (VALSINER, 2000, p. 59). É a qualidade da significação narrativa de ser uma construção pessoal e coletiva que abordaremos no próximo item.