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Cronotopos narrativo: The Bildungsroman entendido como

1. A BUSCA DE UMA METODOLOGIA: TEMPO E SIGNIFICADO NA

1.2. TEMPO E CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADO NA NARRATIVA

1.2.3. Cronotopos narrativo: The Bildungsroman entendido como

A idéia de cronotopos em Bakhtin se insere no estudo histórico do surgimento do romance de formação. Bakhtin presta especial atenção a um tipo especial de romance de formação, que ele chama de Bildungsroman em sentido estrito. Para Bakhtin, Bildungsroman, em sentido estrito, se refere ao romance de formação no qual o herói se desenvolve enquanto o mundo ao seu redor se desenvolve. Há uma relação entre as mudanças ocorridas no mundo e as mudanças que o herói experimenta, resultando no que Bakhtin chama de completude do tempo. Por completude do tempo Bakhtin, entende uma conectividade visceral entre passado, presente e futuro. Morson e Emerson (1990) interpretam o conceito de completude do tempo

como um tempo “no qual ações e eventos, a cada momento, respondem a circunstâncias específicas nas quais eles têm lugar, e criam novas circunstâncias, que provêem limites e oportunidades para a ação futura”. (MORSON & EMERSON, 1990, p.414) Na completude do tempo, portanto, circunstâncias e herói são irreversivelmente modificados de maneira que a direção futura de ambos é constituída por essas transformações.

Para identificar o tipo de romance identificado como Bildungsroman, Bakhtin (2000) segue a linha da evolução histórica do romance. Ele a segue desde o romance de viagem na Antiguidade Grega até o romance de formação estrito senso, exemplificado pelos trabalhos de Goethe e Dostoevsky. O fio condutor que leva esse pesquisador através dessa linha é o papel constitutivo do tempo-espaço, do cronotopos, para a descrição narrativa do desenvolvimento do herói.

Começando com o romance de viagem, Bakhtin (2000) identifica o herói desse tipo de narrativa como um personagem carente de traços particulares, como um ponto móvel no espaço, regido pelo tempo de aventura. Nesse tipo de romance, Bakhtin vê

Uma concepção puramente espacial e estática da diversidade do mundo. O mundo apresenta-se como uma justaposição espacial de diferenças e contrastes... Neste tipo de romance, as categorias temporais são pouquíssimo acentuadas. O tempo por si só carece de sentido consubstancial e também de cor histórica. O próprio tempo biográfico não é representado. ...Apenas o tempo da aventura é elaborado (BAKHTIN, 2000, p. 224).

O segundo tipo de romance identificado por Bakhtin é o romance de provas. Nele, o herói é submetido a todo tipo de provas: de lealdade, de virtudes, de santidade, de façanhas, etc. Embora o herói já apareça mais elaborado, a relação tempo-espaço ainda não permite que o desenvolvimento do herói seja relatado. Como as provas geralmente se concentram num momento que não pertence ao ciclo histórico da vida do herói, o tempo no romance de provas tende a ser um tempo fabuloso, desprovido de traços de historicidade.

Nos romances deste tipo, o mundo é apenas o teatro das lutas e das provas do herói. Os acontecimentos, as peripécias são a pedra de toque do herói; este é sempre dado como uma imagem concluída, e possui desde o início suas qualidades que, ao longo de todo o romance, só são verificadas e postas à

prova. ...No romance de provas estamos diante de uma fase de elaboração posterior, mais detalhada do tempo de aventura (separado da história e biografia). ...Também aqui, falta localização histórica, em outras palavras, o tempo não se relaciona consubstancialmente com uma determinada época histórica, com seus acontecimentos e com suas condições históricas próprias. ...Diferentemente do romance de viagem, o romance de provas se concentra no herói. O mundo que o rodeia, e as personagens secundárias, na maioria dos casos, servem de pano de fundo, de cenário (BAKHTIN, 2000, p. 228). O terceiro tipo de romance que Bakhtin identifica é o romance biográfico. Nessa narrativa, o enredo não se baseia em “desvios em relação ao curso típico e normal de uma vida, mas em momentos típicos e fundamentais de qualquer vida humana”. (BAKHTIN, 2000, p. 230) No entanto, também no romance biográfico a imagem do herói carece de uma evolução: “A vida do herói se modifica, se elabora, evolui, ao passo que o herói permanece inalterado”. (BAKHTIN, 2000, p.232)

O tempo envolvido neste tipo de romance é o tempo biográfico. “Diferentemente do tempo da aventura e do tempo fabuloso, é com um realismo absoluto que todos os elementos se relacionam com o processo geral da vida, sendo este processo circunscrito, não reproduzível e não reversível”. (BAKHTIN, 2000, p.232) Dessa forma, o mundo já não é apenas um pano de fundo para as peripécias do herói. No entanto, este ainda não é o tempo histórico porque os traços do herói permanecem inalterados: “Os acontecimentos não modelam o homem, mas seu destino” (BAKHTIN, 2000, p.233).

Por fim, Bakhtin identifica no romance de formação um tipo de romance no qual A imagem do herói já não é mais uma unidade estática, mas, pelo contrário, uma unidade dinâmica. Nesta fórmula de romance, o herói e seu caráter se tornam uma grandeza variável. As mudanças por que passa o herói adquirem importância para o enredo romanesco que será, por conseguinte, repensado e reestruturado. O tempo se introduz no interior do homem, impregna-lhe toda a imagem, modificando a importância substancial de seu destino e de sua vida (BAKHTIN, 2000, p.237, destaques do autor).

A partir dessa constatação, Bakhtin detecta a necessidade de determinar os tipos de romances a partir da formação do ser humano retratado no romance. Dessa forma, Bakhtin separa os romances nos quais o ser humano é visto como uma grandeza constante daqueles

nos quais o ser humano é visto em desenvolvimento por causa da presença de um tempo histórico real que se introduz no interior do ser humano descrito.

Bakhtin identifica cinco classes de romance de acordo com o princípio da introdução do tempo histórico real no ser humano. Para ele, o tipo mais importante é o quinto no qual a “evolução do homem é indissolúvel da evolução histórica” (BAKHTIN, 2000, p. 239) do mundo a sua volta. Esse é o Bildungsroman entendido no sentido estrito.

É assim que o estudo do romance se transforma, em Bakhtin, no estudo do desenvolvimento do ser humano no romance. Ou, dito em outras palavras: Bakhtin começa com o estudo do romance e termina com uma proposta de estudo do desenvolvimento do self no discurso narrativo, no qual o espaço e o tempo narrativo assumem um papel central.

Dentre as proposições que o trabalho de Bakhtin estabelece no sentido de relacionar a emergência do herói numa conjunção de tempo e espaço, queremos ressaltar especialmente duas.

A primeira, mais referida nos estudos do desenvolvimento do self, refere-se à classificação que Bakhtin apresenta dos tipos de romance baseado no relato do desenvolvimento do herói a partir da composição cronotópica de uma obra. Sobre essa proposição já discorremos anteriormente.

Queremos defender, no entanto, que há outro sentido a ser explorado na proposição de Bakhtin acerca das capacidades cronotópicas de capacitar a narrativa ao relato do desenvolvimento do herói no tempo histórico real. Esse sentido é o de que, além de poder ser detectado em determinadas narrativas, a capacidade cronotópica de captar o desenvolvimento do herói pode ser vista como uma metodologia de abordagem do texto narrativo. Ou seja, a qualidade cronotópica pode ser localizada no olhar do pesquisador. Dessa forma, o cronotopos narrativo deixa de ser apenas uma característica a ser detectada no dado analisado

e é redimensionado como uma ferramenta metodológica para análise de dados narrativos. Para entender melhor essa perspectiva metodológica, voltemos a Bakhtin.

Ao construir a sua argumentação como uma linha histórica a partir dos critérios de tempo e espaço, Bakhtin compõe uma narrativa, uma obra literária que versa sobre o desenvolvimento do romance. Essa é a história que ele tem para contar e a conta usando o tempo histórico real que vai da Grécia antiga até a Idade Contemporânea Ocidental. Nessa história há, primeiramente, um protagonista, – a imagem do herói. O desenrolar da história que Bakhtin conta mostra essa imagem em desenvolvimento junto com as mudanças do tempo-espaço que ele detecta. Assim, o herói imutável do tempo de aventura do romance de viagem se desenvolve até se transformar no herói em desenvolvimento no tempo histórico do romance de formação, do Bildungsroman em sentido estrito. Através de sucessivas mudanças nas relações entre o cronotopos e o herói, Bakhtin chega a um desfecho no qual

A formação do homem efetua-se no tempo histórico real, necessário, com seu futuro, com seu caráter profundamente cronotópico. Nos quatros tipos anteriormente mencionados, a formação do homem se operava contra o pano de fundo imóvel de um mundo já concluído e, no essencial, totalmente estável. Mesmo quando ocorriam mudanças, estas eram secundárias e não atingiam os fundamentos do mundo (BAKHTIN, 2000, p. 239).

Dessa forma, Bakhtin se coloca como um narrador que usa uma perspectiva cronotópica de narração para descrever o desenvolvimento do herói de acordo com as transformações ocorridas no tempo-espaço da narração.

Tendo isso em vista, gostaríamos de sugerir que Bakhtin desenvolveu um método cronotópico para abordar o desenvolvimento do herói nos romances. Parece que esse pesquisador não apenas demonstra o surgimento do cronotopos como fenômeno literário, mas o faz a partir de uma perspectiva cronotópica.

Outro fato reforça essa visão de cronotopos como método de análise em Bakhtin. É a sobreposição do relato do desenvolvimento do escritor de romances ao relato do desenvolvimento. No estudo de Bakhtin, não apenas o desenvolvimento do herói é percebido:

o pesquisador estende sua observação ao desenvolvimento do escritor de romances, transformando-o também em personagem de sua narrativa. Dessa forma, Bakhtin descreve o desenvolvimento do escritor enquanto personagem de sua narrativa. O desenvolvimento do escritor de romances tem seu ponto culminante na análise que Bakhtin faz da vida e da obra de Goethe. É precisamente a perspectiva cronotópica usada como método de análise que lhe permite alcançar “a surpreendente aptidão de Goethe para ver o tempo no espaço”. (BAKHTIN, 2000, p. 249)

Bakhtin olha para o trabalho de Goethe com os mesmos olhos que ele percebe na descrição que Goethe faz de seus heróis: uma visão processual que os capacita, tanto a Goethe quanto a Bakhtin, a captar o desenvolvimento do herói num tempo histórico. É assim que Goethe é transformado no herói da narrativa de Bakhtin: desenvolvendo-se ao longo do tempo.

Assim, na sua análise do romance de formação, Bakhtin explora o surgimento de um determinado tipo de autor. Começando com os tempos da Antiguidade Grega, nos quais o autor de romances descreve um herói estável num “tempo de aventura”, Bakhtin vai através dos tempos históricos até o tempo no qual um autor está apto a construir o romance de transformação.

Em suma, a contribuição que o estudo do romance de formação em Bakhtin traz para a análise narrativa em psicologia se refere não apenas à identificação de cronotopos em narrativas. Argumentamos que essa contribuição diz respeito também ao desenvolvimento de um método cronotópico de análise de dados narrativos. O cronotopos visto como método possibilita identificar a construção do tempo-espaço narrativo como elemento estruturador da imagem do agente da ação e seu desenvolvimento no relato.

Para aprofundar a compreensão do processo pelo qual o cronotopos narrativo constrói a imagem do herói em desenvolvimento, recorremos ao estudo de Ricoeur sobre a relação entre tempo e narrativa.