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Grupo 3: a relação eu outro e a surplus of vision

4. MIMESIS 3: A INTELIGIBILIDADE DO ESQUEMA NARRATIVO E O

4.3. ESQUEMATISMO E DESENVOLVIMENTO DO SELF

4.5.3. Grupo 3: a relação eu outro e a surplus of vision

Este grupo é composto pelas narrativas: 9, 19, 18, 25 e 31.

A partir da problematização da surplus of vision na construção da Ameaça, as narrativas deste grupo enfatizam o desenvolvimento da relação eu - outro no processo de configuração da experiência.

A problematização da relação eu - outro emerge nestas narrativas a partir do anúncio da ameaça, sem que qualquer relação de causalidade específica seja construída, sem que sejam fornecidas informações sobre as circunstâncias, ou interações envolvidas na construção da ameaça. Esta carência de informações, presente na instalação da Ameaça, que ocorre sem nenhuma densidade de informação, aparenta um aparecimento ex nihilo da ameaça no seio do relato.

- Construção da ameaça

A falta de densidade, identificada nestas narrativas, ocorre pela carência de fornecimento de informação sobre a Ameaça e termina por colocar, dentro da narrativa, o anúncio da ameaça numa posição em que não há o suprimento de uma surplus of vision.

O conceito de surplus of vision está relacionado com o da relação eu - outro na medida em que eu só forneço uma visão a mais (que o outro não possui) quando um outro, a quem falta a visão que eu tenho, é considerado. O relato narrativo é construído para suprir o outro com a visão excedente que decorre da minha posição única e distinta no diálogo. A minha enunciação no diálogo parte da minha posição única e distinta no tempo e espaço. Esta posição é identificada quando eu percebo a posição única e distinta do outro e partilho, a partir deste reconhecimento, o ponto de vista que a minha posição possibilita alcançar.

Nas narrativas deste grupo, identifica-se uma carência de surplus of vision na construção da ameaça. É desta forma que a relação eu - outro é problematizada. Ao abdicar de fornecer ao relato uma surplus of vision, a narração abdica também de construir os elementos

que fazem com que a experiência anunciada se diferenciem de qualquer outra; e assim, as peculiaridades da experiência única são perdidas.

Nos incidentes da Ameaça, o esquema narrativo resume a construção da ameaça ao marcador temporal e à ação que nomeia o incidente. Vejamos o exemplo da narrativa 18:

...depois reprovei, depois passei, depois parei alguns tempos (Participante 18). Nas

narrativas em que o incidente da Ameaça traz outros escassos elementos da estrutura da ação ou dos recursos de simbolização (narrativas 9, 25, 31), estes aparecem como ações ou sentimentos conseqüentes ou a posteriori da instalação da Ameaça, como no exemplo a seguir, da narrativa 9: Depois da 5ª série (marcador temporal) comecei a repetir (ação que nomeia o incidente) a primeira vez fiquei bastante triste (recurso simbólico).

A rigor, a Ameaça nestas narrativas não é construída, elas são anunciadas. Não há o relato do processo de instalação da ameaça. É como se, a respeito da construção da ameaça, não houvesse o que relatar, não houvesse um ponto de vista particular a ser acrescentado, como se a ameaça fizesse parte de um fluxo indistinto de acontecimentos, no qual não há peculiaridades ou distinção. A construção do cronotopos não pode mostrar, portanto, um perfil único do self se desenvolvendo em uma relação dialógica. Ao não distinguir o outro, o self não estabelece o diálogo, o espaço narrativo é comprimido, a ameaça não é construída, é apenas anunciada.

No que se referem ao Drama, as Discordâncias da Ameaça são anunciadas principalmente no Espaço Individual: ...depois passei, depois reprovei... (Participante 18). Quando elas se referem a outros espaços, aparecem como conseqüência da Ameaça e não como construção da mesma.

Ao estabelecer relações de causalidade, fornecer circunstâncias, motivos, interações, o processo narrativo constitui os Espaços de significação como lugares a partir dos quais as Concordâncias e Discordâncias são enunciadas. Quando estas informações não fazem parte do

relato, a falta das mesmas cala as vozes de onde partem a Concordância e a Discordância e, apesar de sua existência ser anunciada, o diálogo fica esvaziado. Ao substituir a causalidade pela casualidade, a narrativa torna indistinto o outro e também o próprio indivíduo que perde consistência por falta de individualidade. É como se o incidente da Ameaça fosse uma coisa que acontecesse no fluxo das ações Coletivas, sem causalidade, sem motivo, sem circunstâncias identificadas.

O que acontece, então, é que a narrativa não enuncia as vozes constituintes do self único e distinto para aquela experiência específica de reprovação ou abandono. Ao apenas anunciar a ameaça, o agente a equaliza a qualquer outro evento ocorrido com qualquer outra pessoa. Não se distinguindo as vozes de onde vêm a Discordância da Ameaça, não se pode vislumbrar as diferenciações necessárias entre o eu e o outro.

- A recuperação da experiência

A problematização da relação eu - outro, instalada no anúncio da ameaça, direciona o relato da Recuperação da experiência nestas narrativas para a recomposição deste aspecto do diálogo que constitui o self. Consequentemente, nos incidentes da Recuperação, a ação é construída com mais densidade. A estrutura da ação passa a ser explorada: motivos, circunstâncias e desfechos aparecem no relato. Um sentido de relato e não apenas de anúncio volta a ser estabelecido na narrativa. Dessa forma, a Recuperação da experiência revela uma história única e distinta na qual vai emergindo uma percepção do outro na medida em que essas narrativas fornecem uma surplus of vision acerca da experiência. Assim, o agente passa a estar inserido numa narração e não apenas numa sentença.

Na narrativa 25, a surplus of vision oferece uma nova visão da experiência escolar trazida pelo amadurecimento pessoal: nesse período cresci mais um pouco no

amadurecimento e vi que o estudo é fundamental para a nossa vida

Na narrativa 31, a história individual engloba Concordâncias no Espaço Adjacente através da interação com a avó, que auxilia na construção de uma perspectiva individualizada de retorno à experiência para a qual concorrem atividades alternativas no decorrer da ameaça. Na estrutura da ação, esta situação aparece como circunstâncias, interação e recursos simbólicos:

...mais eu não parei, lia livros, minha vó fazia algumas atividades. Após este período voltei a estudar aí foi maravilhoso, pois gosto muito da vida escolar, bem, como eu me exercitava não senti muita dificuldade, pelo

contrário, foi até mais fácil do que pensava. Daí por

diante eu era considerada a melhor da sala, mas nunca pensei dessa maneira, pois eu era não, sou muito comunicativa, por conta disso, sempre fui chamada a

atenção. (Participante 31)

Na narrativa 19, a construção de uma perspectiva de distintividade envolve uma condição desfavorável no Espaço Adjacente, que encontrou na experiência escolar uma solução. Na estrutura da ação, esta condição aparece como motivo, meta e circunstância:

voltei porque senti necessidade a falta de pessoas diferentes, pois ficava em casa

só com a minha mãe. Precisava conhecer gentes novas (Participante 19).

Na narrativa 9, a emergência de uma surplus of vision é feita pela reconstrução da Ameaça, em forma de relato, através de um novo evento de Ameaça. Este evento ganha densidade na medida em que são apresentadas circunstâncias, motivos, desfecho, e uma relação de causalidade é construída:

Em seguida terminei o primeiro grau, no colégio estudei

da 5a a 8a e fui pra outra escola, mas era horrível os

professores não ensinava tinha dia que tinha aula outro não, era uma verdadeira bagunça, por isso acabei

desistindo (Participante 9).

Na narrativa 18, um aspecto da vida familiar do agente é intercalado à experiência escolar, fornecendo o tom de particularidade necessário à construção da surplus of vision:

Agora tenho um filho de 4 anos, ele é tudo para mim, só que dá um pouco de trabalho, mas é assim mesmo. Hoje eu estou com dificuldade nas aulas, não sei se é preocupação que tenho na minha vida, hoje sofro muito, me critica

Em todas as narrativas, descritas uma a uma para ressaltar a recuperação da distintividade do indivíduo, uma perspectiva do outro no diálogo é fornecida a partir da emergência de uma surplus of vision. Primeiramente, a Ameaça, ao ser apenas anunciada, problematiza a perspectiva do outro, ao passo que o detalhamento da Recuperação apresenta, no adensamento do relato, aspectos peculiares que constroem, o sentido de diálogo com o outro.

- Desfecho

Os Desfechos destas narrativas mantêm o compromisso com a provisão de uma surplus of vision, tanto nas narrativas que apresentam uma expectativa de futuro (narrativas 31, 9 e 19) quanto no caso das que não apresentam (narrativas 18 e 25).

Quanto ao Desfecho prospectivo, pode ser sugerido que, mesmo a Ameaça não dispondo de uma surplus of vision, portanto, de traços distintivos de individualidade, ela apresenta a possibilidade da surplus of vision, que se concretiza, primeiramente, na Recuperação e, depois, no Desfecho. Essa possibilidade tem um caráter afetivo que se evidencia, na Ameaça, como tristeza pela reprovação, e no Desfecho, como felicidade pela possibilidade de aprovação na projeção do futuro e como lamento, pela reprovação no vestibular. Lamento esse que se transforma em felicidade pela aprovação na projeção para o futuro.

Na narrativa 9, o Desfecho, primeiramente, ressalta o fato da não reprovação durante o segundo grau: Onde hoje estou terminando o 2o grau sem repeti nenhuma serie

graças a Deus (Participante 9). Mas, quando a perspectiva de futuro é construída, o tema

aparece novamente como lamento: Só lamento não ter passado na segunda fase da

UFPE onde tentei Licenciatura pra matemática. Mas no próximo ano vou

vision com relação ao problema da reprovação, superando essa ausência no Tempo da Ameaça.

Retomemos o problema da reprovação, na mesma narrativa, no Tempo da Ameaça:

Depois da 5a serie, comecei a repetir a primeira vez, fiquei

bastante triste e no ano seguinte passei com a melhor nota na matéria que foi reprovado. Na sexta série também passei

com boas notas. Na 7a série voltei a repetir, e fiquei muito

triste. No ano posterior passei com muitas notas boas, que

legal fiquei feliz da vida (Participante 9).

Na Ameaça como no Desfecho, o problema da reprovação é seguido de uma ressonância afetiva que se revela no sentimento de tristeza (na Ameaça) e no lamento (no Desfecho). Tanto num como no outro caso, é relatado um sentimento de felicidade pela aprovação, no caso do Desfecho, como projeção do futuro.

Uma estrutura diferente é dada aos episódios de desistência na mesma narrativa, que, se não ressalta a falta de uma surplus of vision, também não carrega a carga afetiva que vem à tona no tratamento da reprovação.

Quanto ao Desfecho não prospectivo, exemplificado na narrativa 19, uma surplus of vision é fornecida pela retomada do tópico desenvolvido na Recuperação, que é expresso da seguinte forma: ...senti necessidade e falta de pessoas diferentes, pois ficava em

casa só com a minha mãe. Precisava conhecer gentes novas (Participante 19).

Nesta narrativa, o Desfecho apresenta o desenrolar da experiência a partir deste ponto.

Este é o ponto em que o relato volta a incluir uma concepção do outro pela introdução de uma surplus of vision. O Desfecho legitima esta surplus of vision ao referir-se exatamente a ela quando da conclusão do relato da experiência que é expresso da seguinte forma:

...nem terminou direito o ano letivo e eu já estou sintindo falta de todos que conheci aqui. Agora de todos os colégio que estudei o melhor foi o que estudo atualmente, os professores são legais e os Colegas de classe são

O problema expresso na Recuperação, de “conhecer pessoas” é, então, desenvolvido no Desfecho. A escola é mostrada como tendo atendido esta necessidade específica e peculiar do agente. Ao tratar do Desfecho como o desenvolvimento de uma condição peculiar ao agente: retomar a experiência escolar para - conhecer gente nova” - o relato ressalta o suprimento de uma surplus of vision que começou a ser definida na Recuperação e tem seu ponto culminante na finalização da narrativa que o Desfecho provê.

Ameaça Recuperação Desfecho

Instalação Anúncio da Ameaça/sem relação de causalidade

Adensamento do relato Mantém o adensamento Agência Fluxo indistinto/

peculiaridades perdidas

Detalhamento que toma várias formas

Duas formas:

1. perspectiva de futuro sem esta perspectiva. 2. Ambas retomam aspectos da Ameaça ou Recuperação para suprir o relato com surplus of vision

Diálogo Não provê surplus of vision/outro indistinto

Sentido de relato/suplus of vision/ outro percebido

Mantém uma surplus of vision/relação com o outro mantida

Drama Discordância Concordância Concordância

Marcadores lingüísticos Anúncio da Ameaça Mundo da ação Marcador Temporal e

Ação

Estrutura da ação explorada: motivos, circunstâncias, desfecho Estrutura cronotópica Espaço Individual Espaço Individual mais

Adjacente e Escolar

Espaço Individual e Escolar

Quadro 14. Resumo dos principais resultados do Grupo 3