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A evolução do dever de lealdade e o caso Girmes

3 OS ELEMENTOS DO ABUSO DO DIREITO DE MINORIA

3.3 A JURISPRUDÊNCIA ALEMÃ

3.3.2 A evolução do dever de lealdade e o caso Girmes

A jurisprudência alemã cumpriu papel decisivo no processo de evolução do dever de lealdade no âmbito das sociedades200. Hoje é pacífico que o dever de lealdade deve ser observado tanto para os administradores201 como para os sócios, muito embora esse processo evolutivo não tenha sido desprovido de controvérsias.

No Direito alemão, a lealdade surgiu primeiro nas sociedades por pessoas, depois avançou sobre as sociedades de responsabilidade limitada (Gesellschaft mit beschränkter Haftung – GmbH) e por fim nas sociedades anônimas, sendo inicialmente aplicada apenas aos majoritários para depois ser estendida aos minoritários.202 Atualmente, é quase unânime que o dever de lealdade está

199 FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 766, nota 789.

200 Sobre os deveres de lealdade, ver OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Grupos de sociedades e deveres de lealdade: por um critério unitário de solução do "conflito do grupo". Coimbra: Almedina, 2012, especialmente p. 748 e ss; assim como FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017, especialmente p. 748 e ss. Sobre o processo evolutivo do dever de lealdade, ver MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. A lealdade no direito das sociedades. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 66, v. 3, p.

1033-1065, dez. 2006.

201 Sobre os deveres de lealdade do administrador, ver FRADA, Manuel A. Carneiro da. A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores. Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 67, v. I, jan. 2007.

202 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 89.

vinculado à condição de sócio (status socii), independentemente da concreta posição de poder que este assume na sociedade.203

Primeiro o dever de lealdade foi reconhecido no caso ITT (1975), segundo o qual o Tribunal Federal de Justiça alemão (Bundesgerichtshof – BGH) considerou que o sócio majoritário violou o dever de lealdade face a sociedade e aos sócios.

Essa sentença revelou-se importante porque pela primeira vez reconheceu a existência do direito de lealdade nas sociedades de capitais.204 O fundamento da sentença decorre da violação da obrigação de lealdade, que vincula o sócio como tal

“por força do seu poder de influência na esfera jurídica dos sócios minoritários.”205 Ao reconhecer que o dever de lealdade deve ser atendido pelo sócio como tal, a sentença acaba por abrir a possibilidade para o reconhecimento de abusos de minoria quando esta tenha um poder de influência na esfera jurídica dos demais sócios, ainda que não tenha sido esta a intenção do julgado.

A sentença Linotype (1988) estendeu o dever de lealdade dos sócios majoritários às sociedades anônimas, reconhecendo que estas podem adotar uma organização personalística, de tal forma que a lealdade deva ser aplicada em todos os tipos societários, com intensidades variadas a depender da estrutura da sociedade.206 Nesse sentido, poderia existir também nesse tipo societário uma

“ligação especial”, ainda que a decisão tenha afirmado que os pequenos acionistas não têm obrigação de observar o dever de lealdade.207

203 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 83.

204 Vale destacar, porém, a existência de uma sentença anterior, de 1953, envolvendo a exclusão de um sócio de uma GmbH por justa causa, ainda que não houvesse base legai ou estatutária para tal.

Nessa sentença, o BGH afirmou a possibilidade de inibição de voto por voto por de interesse, salientando que, ainda que se recusasse a aplicação do referido preceito, a inibição resultaria do princípio segundo o qual ninguém pode ser juiz em causa própria. (FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 750.).

205 Sobre o caso Linotype, ver OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Grupos de sociedades e deveres de lealdade: por um critério unitário de solução do "conflito do grupo". Coimbra: Almedina, 2012, p.

210; e FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 7521 e ss.

206 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 90; e OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Grupos de sociedades e deveres de lealdade: por um critério unitário de solução do "conflito do grupo". Coimbra: Almedina, 2012. p.

210.

207 FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese

Essas sentenças foram importantes para o posterior reconhecimento do dever de lealdade entre as sociedades anônimas e os acionistas e dos acionistas entre si, embora não houvesse consenso se esse dever também se estendida ao sócio minoritário, o que só veio a se confirmar na sentença Girmes, de 1995.208 Essa sentença confirmou o entendimento de que o sócio está obrigado a observar o dever de lealdade independentemente do percentual de capital detido, tendo como ponto de partida dogmático o princípio da boa-fé, cuja eficácia deve variar de acordo com a

“ligação especial”209 entre os sócios.

No caso em análise, a sociedade Girmes estava prestes a falir quando foi apresentado um plano de recuperação, com o objetivo de impedir a iminente e inevitável falência da sociedade. O plano consistia numa redução de capital (em função de um futuro aumento) na proporção de 5:2 e precisava de uma maioria de ¾ para sua aprovação, que seria posteriormente aumentado. Um dos acionistas conseguiu convencer 25% do capital a votar contrariamente à proposta, exigindo uma redução de capital na proporção de 5:3. Essa exigência foi considerada irrealista, podendo-se mesmo suspeitar de uma tentativa de chantagem dos minoritários aos majoritários. O Tribunal alemão afirmou que os sócios minoritários, tal como os majoritários, estão vinculados ao dever de lealdade, não podendo causar danoso injustificáveis à sociedade, especialmente quando a proposta deliberativa apresentada for a única solução para salvar a sociedade.210

A decisão do Tribunal considerou o seguinte: a) do dever do acionista de colaborar com o projeto de recuperação da sociedade não se pode se inferir um dever de lealdade subsistente em relação à sociedade. Esta posição, face à decisão dos seus sócios não goza de uma tutela geral destinada à sua sobrevivência. Esses

(Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 752.

208 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 90-91; OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Grupos de sociedades e deveres de lealdade: por um critério unitário de solução do "conflito do grupo". Coimbra: Almedina, 2012. p. 212; FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios.

2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 753.

209 “Sonderverbindung” (FESTAS, David Fernandes de Oliveira. Das inibições de voto dos sócios por conflito de interesse com a sociedade nas sociedades anônimas e por quotas dos sócios. 2017. Tese (Doutoramento em Ciências Jurídico-Civis) – Faculdade de Direito, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017. p. 752.).

210 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 91 e ss. Ver também, a respeito deste julgado, PORTALE, Giuseppe B.

Minoranze di blocco e abuso del voto nell'esperienza europea: dalla tutela risarcitoria al gouvernement des juges? Europa e diritto privato, Milano, n. 1, p. 153-182, 1999.

estão em condições de pôr fim, sem qualquer justificação, substancial, ao escopo da sociedade (Gesellschaftszweck), resolvendo sua dissolução; b) o direito de deliberar a dissolução da sociedade é reservado, contudo, a uma determinada maioria legal ou estatutária, e enquanto essa decisão não tiver sido tomada com a maioria necessária, a sociedade e sua finalidade continuam a existir. Assim, uma minoria não pode constranger a sociedade à dissolução, tendo em conta o escopo da sociedade. Ela deve considerar o interesse da maioria, em conformidade com o princípio da proporcionalidade e da necessidade (unter dem der Vorbehalt VerhältnismäBigkeit und Erforderlichkett). No caso de sociedades que necessitam de restruturação, a consequência é que o direito de lealdade proíbe que o acionista individual impeça em seu próprio benefício a melhoria razoável pretendida pela maioria.211

Embora o Tribunal não tenha mencionado expressamente, a proibição do abuso de direito de voto por minoria reconhece a existência do dever de lealdade entre os sócios e a sociedade e entre os sócios, dever este que se tornou regra a partir do julgado do caso Girmes. Ana Perestrelo de Oliveira considera que a decisão impõe duas exigências para determinar um dever de voto: a) a urgente necessidade da medida (elemento objetivo) e b) a razoabilidade da exigência face aos interesses individuais do sócio (elemento subjetivo)212.

A decisão em comento fundamenta-se na ideia de ponderação de interesses entre o sócio e a sociedade, atendendo à regra de proporcionalidade. Dessa forma, ponderando-se os interesses em jogo e concluindo-se que a medida proposta é indispensável à sociedade, e em não havendo um prejuízo insuportável aos direitos individuais do minoritário, o princípio da lealdade vai atuar no sentido de impor um dever de voto ao minoritário.

Ana Perestrelo de Oliveira coloca em causa a questão da segurança jurídica na atuação do sócio ante a ausência de uma regra que o obrigue a votar em certo sentido, defendendo, para tanto, que a atuação do sócio deve confluir para o que seria “evidente” ao sócio médio.213 Assim, no caso de aumento de capital como

211 Ver PORTALE, Giuseppe B. Minoranze di blocco e abuso del voto nell'esperienza europea: dalla tutela risarcitoria al gouvernement des juges? Europa e diritto privato, Milano, n. 1, p. 153-182, 1999. p. 168.

212 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 138-139.

213 OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017.

(Manuais Universitários). p. 140.

medida para permitir a sobrevivência da sociedade, o dever de lealdade imporia um comportamento positivo ao sócio.

Não se discorda totalmente da posição da referida autora sobre o tema, mas entende-se que nem sempre o sócio será obrigado a “salvar a sociedade”, votando pelo aumento de capital. Se assim fosse, todo minoritário que votasse contra a deliberação de dissolução de sociedade estaria atuando de forma desleal, o que não se pode aceitar.

Assim, entende-se que o sócio estará dispensado de votar de acordo com a proposta deliberativa, desde que apresente uma justificação material (Sachliche Rechfertigung) para seu voto, à luz dos princípios da necessidade e proporcionalidade, conforme apresentados na decisão do BGH. Para além da sobrevivência da sociedade, deve-se observar, por exemplo, se o projeto proposto é adequado para atingir a finalidade pretendida. Se o sócio demonstrar que o projeto não é sério e carece de viabilidade, seu voto não pode ser caracterizado como desleal.

Note-se que a aplicação do princípio da necessidade e da proporcionalidade representa nada mais nada menos que a ponderação de interesse do sócio e da sociedade num caso concreto.214 Na verdade, quando se analisa um conflito de interesses em que se utilizem conceitos indeterminados como boa-fé, interesse social ou igualdade, há sempre um critério de ponderação de interesses a ser feito, a fim de buscar um justo equilíbrio entre os interesses dos diversos atores. Assim, a ponderação desses interesses tem como objetivo garantir tratamento igualitário às partes dentro de um sistema no qual a desigualdade, calculada em função da participação capitalística, é a regra. Daí a dificuldade de se chegar a um consenso sobre a medida a ser adotada.

Em razão das variadas situações possíveis dentro da sociedade, as

“situações limites”215 em que se deve exigir um voto positivo devem ser compreendidas para além dos casos de dissolução da sociedade, embora nestes casos a violação da lealdade seja mais evidente. A necessidade de justificação

214 Contra está Ana Perestrelo de Oliveira, para quem o interesse social não serve de fundamento do controle material das deliberações dos sócios. (OLIVEIRA, Ana Perestrelo de. Manual de governo das sociedades. Coimbra: Almedina, 2017. (Manuais Universitários). p.143.).

215 “A declaração do abuso de minoria constitui um “instrumento corretor” de situações limites.”

(FONSECA, Taveira da; TRIUNFANTE, Armando Manuel, Deliberações Abusivas; Deliberações Ofensiva dos Bons Costumes; Ónus de Afirmação, Anotação ao Ac. do STJ de 3 de Fevereiro de 2000. Revista do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, [Porto], n. 18, p. 60-70, [2000]. p. 69.).

material que tenha a lealdade como referência será sempre útil na resolução do conflito entre maiorias e minorias, razão pela qual o contraditório deverá – especialmente nos casos de abuso de minoria – ser observado. Assim, não se discorda que as deliberações estão sujeitas a um controle material que tenha como objetivo harmonizá-las com o dever de lealdade nas hipóteses de conflito de interesses, aplicáveis tanto para as deliberações abusivas da maioria e da minoria, devendo o sacrifício de um grupo ou outro ser analisado sob a ótica da necessidade e da proporcionalidade, evitando o prejuízo arbitrário dos sócios.216