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3.3 Aplica¸c˜oes `a Composi¸c˜ao

4.2.9 A Evolu¸c˜ao ´e um Processo de Otimiza¸c˜ao?

Conforme apresentado na Se¸c˜ao 4.1, as teorias da evolu¸c˜ao propostas por Lamarck e por Darwin compartilham algumas no¸c˜oes. Ambos acreditam que as esp´ecies de seres vivos em estado natural n˜ao surgiram na forma em que s˜ao encontrados hoje em dia, mas sofreram modifica¸c˜oes gradativas em suas caracter´ısticas fenot´ıpicas, que foram transmitidas gera¸c˜ao ap´os gera¸c˜ao [70, 71]. Lamarck contraria a ideia de que “a natureza (ou seu Autor), ao criar os animais, previu todos os tipos poss´ıveis de circunstˆancias nas quais eles viveriam e deu a cada esp´ecie uma organiza¸c˜ao cons- tante, al´em da forma determinada e invari´avel de suas partes, for¸cando cada esp´ecie a viver nos lugares e nos climas onde s˜ao encontradas e a conservar os h´abitos conhe- cidos” [71]. Para Lamarck, a natureza teria criado, independente e sucessivamente, formas primitivas distintas atrav´es da “gera¸c˜ao espontˆanea” [71]. Come¸cando pelos “mais imperfeitos ou os mais simples” [71] e objetivando “terminar sua obra com os mais perfeitos” [71], ela teria complicado gradualmente a organiza¸c˜ao das esp´ecies, atrav´es das circunstˆancias que cada esp´ecie enfrentou ao se espalhar ao redor do planeta e dos h´abitos que foram adquiridos com o tempo [71]. A adapta¸c˜ao dos seres vivos `as condi¸c˜oes sempre mut´aveis do ambiente seria suscitada por uma for¸ca interna advinda da pr´opria vida [71]. Conquanto carregue tra¸cos teleol´ogicos, i.e., posicione a motiva¸c˜ao das altera¸c˜oes dos organismos em sua finalidade ´ultima — um estado de perfei¸c˜ao —, a vis˜ao de Lamarck ´e tamb´em materialista, porque ele

acredita que as adapta¸c˜oes dos seres vivos podem ser determinadas pelas intera¸c˜oes com o ambiente e a for¸ca do h´abito na lei do uso e do desuso [71].

Descreditado at´e 1859, o mecanismo de transmiss˜ao dos caracteres adquiridos logo se tornou a ´unica alternativa `a aleatoriedade subjacente ao processo de “ten- tativa e erro” da sele¸c˜ao natural [72]. Darwin prop˜oe uma ancestralidade comum a todos os seres vivos, libertando-se da ideia de Lamarck de gera¸c˜oes espontˆaneas ocorrendo em paralelo. O mecanismo da evolu¸c˜ao ´e explicado de forma convincente atrav´es da competi¸c˜ao entre os seres vivos11 e a no¸c˜ao da hereditariedade das carac-

ter´ısticas ´e consolidada com aux´ılio da gen´etica de Gregor Mendel [72]. Inumer´aveis foram as tentativas de interpretar e conciliar a teoria darwiniana com o pensamento teleol´ogico, atribuindo `a varia¸c˜ao a causa prim´aria e motor da evolu¸c˜ao [78]. Para Darwin, contudo, a varia¸c˜ao nas esp´ecies n˜ao apresenta um prop´osito de desenvol- vimento, i.e., uma nova caracter´ıstica n˜ao ´e gerada com a prospec¸c˜ao de seu uso futuro, e ´e a sele¸c˜ao natural que direciona o processo evolutivo [78]. Paralelamente, o valor da aptid˜ao de um indiv´ıduo com rela¸c˜ao `as condi¸c˜oes impostas pelo meio no qual est´a inserido n˜ao pode ser entendido como uma medida absoluta a priori, mas ´e determinado a posteriori, em fun¸c˜ao de seu sucesso reprodutivo [79]. Na teoria da evolu¸c˜ao de Darwin, a adapta¸c˜ao evolutiva ´e interpretada como sendo um processo de “especializa¸c˜ao constante” [78], que n˜ao implica “melhoria cont´ınua”, visto que, muitas vezes, o processo evolutivo “leva a becos sem sa´ıda fatais” [80]. Adicionando- se a isso o car´ater vari´avel das condi¸c˜oes do meio, a evolu¸c˜ao pode muitas vezes se traduzir em “um movimento irregular em zigue-zague” [80]. Assim, dificilmente se pode creditar qualquer tra¸co teleol´ogico ao processo evolutivo de Darwin.

Nas palavras de Ernst Mayr, bi´ologo que fez grandes contribui¸c˜oes para a teoria sint´etica da evolu¸c˜ao: “Para clarificar, a sele¸c˜ao natural ´e um processo de otimiza¸c˜ao, mas n˜ao tem meta definida e, considerando o n´umero de restri¸c˜oes e a frequˆencia dos eventos aleat´orios, seria muito equivocado cham´a-la de teleol´ogica. Tampouco ´e qualquer melhoria por adapta¸c˜ao um processo teleol´ogico, porque a decis˜ao se dada mudan¸ca evolucion´aria se qualifica como uma contribui¸c˜ao `a adaptabilidade ´e estri- tamente post hoc” [80]. ´E preciso, portanto, tomar certo cuidado com a linguagem empregada ao abordar o tema. Quando se diz que “as girafas evolu´ıram alongando seus pesco¸cos para alcan¸car os ramos mais altos das ´arvores”, deve-se compreender t˜ao somente que os indiv´ıduos que apresentavam maior alcance obtiveram maior sucesso reprodutivo que os de menor alcance. A sele¸c˜ao natural n˜ao possui um “ob- jetivo de longo prazo” [80], embora pare¸ca quando analisada considerando-se uma s´erie de gera¸c˜oes passadas. O processo de evolu¸c˜ao deve ser pensado, ent˜ao, menos

11Darwin nunca abandonou completamente o lamarckismo, que est´a presente no pr´oprio “Ori-

gin of the Species”. Para ele, a lei de transmiss˜ao dos caracteres adquiridos admitia um papel secund´ario no processo de evolu¸c˜ao [78].

como um m´etodo de otimiza¸c˜ao e mais “em termos de uma estrat´egia de explora¸c˜ao e adapta¸c˜ao a uma paisagem de aptid˜ao complexa e variante no tempo” [81].

Em um problema de otimiza¸c˜ao global, objetiva-se encontrar o vetor–solu¸c˜ao x∗ = [x∗

1, . . . , x∗n] que, dentre um conjunto de solu¸c˜oes poss´ıveis, maximiza12 uma

fun¸c˜ao f (x), f : Rn−→ R. Ou seja, x´e tal que, para todo x no espa¸co de busca,

f (x∗)≥ f(x). Exceto em casos muito simples, n˜ao existe garantia de convergˆencia

dos algoritmos evolucion´arios para o m´aximo global da fun¸c˜ao e, assim como os m´etodos de busca local, esses algoritmos podem ficar presos em ´otimos locais [74]. Contudo, ao contr´ario de diversos tipos de algoritmos de otimiza¸c˜ao, os algoritmos evolucion´arios contam com um conjunto diverso de pontos candidatos `a solu¸c˜ao — sua popula¸c˜ao — e com uma fun¸c˜ao de densidade de probabilidade n˜ao uniforme para gera¸c˜ao de novos pontos, mantida atrav´es de seus operadores de recombina¸c˜ao e muta¸c˜ao. Essa caracter´ıstica dos algoritmos evolucion´arios permite “tatear” na su- perf´ıcie adaptativa em busca de um ´otimo global e tamb´em, eventualmente, escapar de ´otimos locais [74].

Teorema dos Schemata

John Henry Holland, pioneiro dos algoritmos gen´eticos, tentou formalizar o pro- cesso de evolu¸c˜ao em seu livro “Adaptation in Natural and Artificial Systems” [82]. Conhecido como “Teorema do Schema”, esse trabalho possui muitas falhas e foi pos- teriormente criticado e expandido por Holland e outros pesquisadores [74]. Fornece, contudo, um parecer do funcionamento dos GAs [74].

Holland desenvolve o teorema dos schemata sobre um GA “canˆonico”, i.e., de representa¸c˜ao genot´ıpica bin´aria e generacional, com muta¸c˜ao simples, crossover de um ponto e sele¸c˜ao de pais proporcional `a aptid˜ao. Um schema H ´e um hiperplano no espa¸co de busca, representado com os d´ıgitos bin´arios e tamb´em com # — “tanto faz”13 [74]. Assim, o schema H = 1#0## ´e o hiperplano que cont´em todos os

indiv´ıduos cujos genes da primeira e terceira posi¸c˜oes cont´em os alelos “1” e “0”, respectivamente. Os indiv´ıduos de uma popula¸c˜ao s˜ao entendidos como “instˆancias” de um ou mais schemata aos quais podem ser associados [74]. No exemplo anterior, h´a 23diferentes instˆancias para o schema H. Sob essa ´otica, o processo de otimiza¸c˜ao

´e entendido como a busca por um schema sem s´ımbolos de “tanto faz” e com a maior aptid˜ao poss´ıvel [74].

Definindo [74]:

• o(H) como a ordem do schema H, i.e., o n´umero de posi¸c˜oes definidas no schema,

12Para problemas de minimiza¸c˜ao, o racioc´ınio ´e an´alogo. 13Em inglˆes, “don’t care”.

• d(H) como o comprimento de defini¸c˜ao do schema H, i.e., a distˆancia entre as posi¸c˜oes definidas em cada extremidade do schema,

• f(H, t) como a aptid˜ao m´edia do schema H, i.e., a m´edia dos valores de aptid˜ao das diferentes instˆancias de H, na gera¸c˜ao t,

• <f(t)> como a aptid˜ao m´edia da popula¸c˜ao na gera¸c˜ao t • e l como o comprimento dos gen´otipos,

Holland calcula a probabilidade de destrui¸c˜ao de instˆancias de um schema H pe- los operadores de varia¸c˜ao. Para a recombina¸c˜ao, essa probabilidade ´e fun¸c˜ao do comprimento do gen´otipo e do comprimento de defini¸c˜ao do schema, podendo ser definida por:

Pcd(H) = d(H)

l− 1. (4.6)

Similarmente, a destrui¸c˜ao do schema como resultado de muta¸c˜ao ´e dada por: Pmd(H) = 1 − (1 − pm)o(H). (4.7)

Al´em disso, Holland determina a probabilidade de o schema H ser selecionado para reprodu¸c˜ao na gera¸c˜ao t14. Se nesse momento a propor¸c˜ao de instˆancias do schema

H na popula¸c˜ao ´e m(H, t), ent˜ao ´e poss´ıvel mostrar que, na gera¸c˜ao seguinte [74]:

m(H, t + 1) ≥ m(H, t) f (H, t) < f (t) >  1  pc d(H) l− 1  (1− pmo(H)). (4.8)

A Equa¸c˜ao 4.8 ´e o resultado fundamental do teorema, e sua interpreta¸c˜ao ´e que a propor¸c˜ao de instˆancias na popula¸c˜ao aumenta com o passar das gera¸c˜oes para schemata com aptid˜ao “acima da m´edia” de forma que:

f (H, t) < f (t) >  1−  pc d(H) l− 1  (1− pmo(H)) > 1. (4.9)

4.3

Aplica¸c˜oes `a Composi¸c˜ao

O problema da composi¸c˜ao pode ser tratado com o aux´ılio dos algoritmos evolu- cion´arios, cuja interpreta¸c˜ao no contexto musical possui interessantes implica¸c˜oes. Segundo nota Nierhaus, a caracter´ıstica de gera¸c˜ao e avalia¸c˜ao cont´ınua dessa classe de algoritmos se assemelha ao pr´oprio conceito de composi¸c˜ao musical [7]. Nas aplica¸c˜oes musicais, os operadores de varia¸c˜ao podem assumir novas e diferentes formas, conforme j´a mencionado neste cap´ıtulo, mas o elemento fundamental em

14Porque o m´etodo de sele¸c˜ao de sobreviventes ´e generacional, a sele¸c˜ao para reprodu¸c˜ao ´e a

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um algoritmo evolucion´ario continua sendo a fun¸c˜ao de aptid˜ao. ´E essa fun¸c˜ao que carrega a informa¸c˜ao subjetiva do que se define como “boa m´usica” ou, eventu- almente, como um estilo espec´ıfico de composi¸c˜ao. Para enfrentar o problema da composi¸c˜ao com algoritmos evolucion´arios de forma “n˜ao supervisionada” por um ser humano, ´e necess´ario definir uma codifica¸c˜ao da est´etica, do processo criativo de um compositor [76]. As abordagens evolucion´arias em composi¸c˜ao algor´ıtmica po- dem ser distinguidas em trˆes grupos, considerando, principalmente, o uso que fazem da fun¸c˜ao de aptid˜ao:

1. M´etodos autom´aticos; 2. M´etodos interativos; 3. M´etodos sem aptid˜ao.

Nos m´etodos autom´aticos, as composi¸c˜oes musicais s˜ao usualmente analisadas com rela¸c˜ao `a sua similaridade com alguma pe¸ca (e.g., medida em desvios de pitch) ou ainda por meio de regras definidas por alguma teoria musicol´ogica e que assumem a forma de restri¸c˜oes ou penaliza¸c˜oes da fun¸c˜ao de aptid˜ao [76]. M´etodos heur´ısticos tamb´em s˜ao est˜ao inclu´ıdos nesse grupo. Nesses m´etodos, a avalia¸c˜ao ´e realizada tomando por base propriedades funcionais e est´eticas das composi¸c˜oes, tipicamente caracter´ısticas mel´odicas e harmˆonicas [11], e o valor de aptid˜ao de uma composi¸c˜ao ´e ou uma soma ponderada das caracter´ısticas extra´ıdas ou um vetor num´erico que se deseja otimizar, nas abordagens multiobjetivo [11].

Uma alternativa ao estabelecimento formal de uma fun¸c˜ao de aptid˜ao que codi- fique a est´etica musical, dada a dificuldade dessa tarefa, ´e a utiliza¸c˜ao de m´etodos interativos, i.e., com avaliadores humanos [11]. Um problema comum a esse grupo de m´etodos, contudo, ´e conhecido como “gargalo de aptid˜ao” (“fitness bottleneck ” [7]) e decorre do grande n´umero de avalia¸c˜oes da fun¸c˜ao aptid˜ao que s˜ao necess´arias em cada gera¸c˜ao. O crit´erio de avalia¸c˜ao do usu´ario pode variar no tempo ou mesmo ser influenciado pelos sintomas do cansa¸co [11]. Algumas solu¸c˜oes foram propostas para atacar essa dificuldade, por exemplo [7, 11]:

• manter pequenos o tamanho da popula¸c˜ao e o n´umero de gera¸c˜oes;

• utilizar avalia¸c˜oes em diferentes est´agios, alternando o uso de avalia¸c˜oes al- gor´ıtmicas e subjetivas;

• diminuir o n´umero de avalia¸c˜oes humanas de aptid˜ao, tomando como referˆencia de um grande grupo de indiv´ıduos o centroide mais pr´oximo, que foi determi- nado por uma t´ecnica de clusteriza¸c˜ao;

• usar redes neurais artificiais treinadas para substituir as preferˆencias do usu´ario.

Essa ´ultima solu¸c˜ao indicaria um retorno aos m´etodos autom´aticos.

Finalmente, nos m´etodos sem aptid˜ao n˜ao h´a press˜ao seletiva, e a aplica¸c˜ao dos operadores de varia¸c˜ao geralmente ´e determinada por um usu´ario [7].