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A experiência na ação: a práxis revolucionária

No documento Feminismos e democracia (páginas 95-99)

A montagem das mais de trinta entrevistas com as estudantes secundaristas em Lute como uma menina oferece um ângulo privilegiado para observar como o movimento secundarista de ocupação das escolas em São Paulo pôs em cena um processo de conscientização e emancipação que nos remete às concepções da filósofa e ativista polaco-alemã Rosa Luxemburgo sobre a práxis revolucionária. No início do século XX, em acerba polêmica com Lênin, que defendia a direção do movimento por uma vanguarda bem treinada e teoricamente preparada para liderar o movimento operário, Luxemburgo defendia a concepção de que a única maneira que as classes dominadas possuíam de emancipar-se passava pela experiência na ação, passível de modificar tanto as relações entre os homens, quanto a consciência

de seu papel histórico e potencial de transformação social e política. Para ela, era justamente no processo de mobilização e de luta contra a opressão que a classe trabalhadora adquiria de fato a compreensão necessária para transformar a sociedade, de modo que “organização, conscientização e combate não são fases distintas, mecanicamente separadas no tempo [...] mas apenas aspectos diversos de um único e mesmo processo” (LÖWY, 2011). Ou seja, a formação política deveria advir da experiência prática dos combates com os adversários e das formas coletivas encontradas para superar os obstáculos e organizar a luta pela emancipação.

Nas ocupações, essa conscientização inicia-se com a reação de diversas direções de escolas e sua recusa em reconhecer as estudantes como atores políticos e interlocutoras legítimas. A estudante de uma das escolas de Diadema, Evelyn Dias, relata que a diretora pulou o muro, depois que as estudantes trancaram o portão, ligou para a Secretaria de Ensino e alegou estar sendo vítima de cárcere privado, inclusive para mães e pais que estavam do lado de fora da escola (ALONSO; COLOMBINI, 2016:9’14). Em outra cena, após a entrada das estudantes em um estabelecimento de ensino, ouvimos distintamente a funcionária insistir: “Eu não quero conversar com vocês!”. Em seguida, a diretora, dirigindo-se às estudantes, diz: “Eu acho que todo o movimento no Brasil se perde, justamente por causa de pessoas desinformadas como vocês.” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:11’34) A indisposição para o diálogo das autoridades contrasta com o esforço das estudantes em explicar as razões de seu movimento, inclusive em páginas do Facebook, criadas especificamente com esse intuito5.

A Secretaria de Educação do estado, de forma emblemática, tratou a mobilização estudantil em termos de guerra. O site Jornalistas Livres divulgou o áudio da reunião de 29 de dezembro de 2015, reproduzido em parte no documentário, na qual o chefe de gabinete do Secretário de Educação, Fernando Padula, afirmava textualmente: “A ação política, nós vamos brigar, até o fim e vamos ganhar. E vamos tentar e vamos desmoralizar e desqualificar o movimento. Na guerra de guerrilha a gente tem de pegar os instrumentos 5. “[...] dentre as 219 escolas com ocupações mapeadas no levantamento do Centro de Mídia Independente de São Paulo, 50 (23%) preocuparam-se em elaborar uma página do Facebook

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para também guerrear.” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:25’29) A eloquência de suas assertivas é cristalina na demonstração da recusa radical do governo em abrir espaço às estudantes para participar da definição de políticas públicas das quais eram os maiores interessados.

Fernando Padula, no mesmo áudio, conclama a imprensa a somar forças no sentido do desmantelamento da mobilização estudantil: “Nessas questões de manipular tem uma estratégia, tem método. O que vocês precisam fazer é informar, fazer a guerra de informação, porque isso que desmobiliza o pessoal” (G1, 2015a).As estudantes entrevistadas no documentário identificam claramente o papel desempenhado pela grande imprensa ao longo do processo, evidenciando em diversas situações, o contraste entre os acontecimentos e a maneira pelo qual estavam sendo divulgados. Paula Nunes, da Escola Estadual Alves Cruz, descreve uma cena na qual foi agredida por um motorista descontente com a atividade de trancamento da via realizado pelas estudantes. Após levar um soco, sem ter sido socorrida por nenhum dos policiais que presenciaram o acontecimento, a estudante reagiu chutando o carro. Foi essa a cena, descontextualizada, que a imprensa elegeu para registrar e divulgar sobre o movimento (ALONSO; COLOMBINI, 2016:62’16). “A mídia está pegando os nossos fatos e distorcendo a favor deles, dos interesses deles”, afirma uma das ativistas (ALONSO; COLOMBINI, 2016:67’57). Outra descreve um policial concedendo uma entrevista a um jornalista, na qual argumentava que tiveram de usar de violência porque sua integridade estava sendo ameaçada pelas estudantes (ALONSO; COLOMBINI, 2016:68’11). O contraste evidente entre essa fala e a realidade de umas poucas estudantes sentadas, pacificamente protestando, diante de policiais armados, é uma eloquente peça apresentada pelo documentário sobre o papel da mídia hegemônica nos confrontos sociais.

O combate não foi apenas midiático. Os enfrentamentos com a polícia paulista mostraram claramente a truculência das autoridades públicas e sua indisposição em escutar as reivindicações dos secundaristas, desvelando de forma brutal o caráter antidemocrático do governo do estado. Lilith Cristina descreve a invasão da Escola Estadual Maria José por policiais: “A gente estava em doze, eles estavam em cinquenta pessoas. Era muito

covarde, muito.” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:25’40).Outra ativista, após narrar a violência policial da qual ela e seus companheiros foram alvo, pergunta: “Eu não consigo entender: será que a gente é o inimigo deles [dos policiais]? Será que não é o próprio Estado o inimigo deles?” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:50’15) Três cenas emblemáticas da repressão às estudantes demonstram a iniquidade do tratamento do Estado em relação às ativistas. Em uma delas, bastante breve, Andreza Delgado, universitária, apoiadora do movimento, é jogada violentamente dentro de uma viatura por diversos policiais, quando se escuta de um fio de voz: “Eu tenho direitos!” (Alonso; COLOMBINI, 2016:52’22). Na sequência, ela relata uma série de ilegalidades: a falta de informações, os procedimentos não ortodoxos de qualificação, a ausência de policiais femininas para as revistas e agressões verbais de cunho fortemente racista e machista. A outra cena é verdadeiramente de guerra (ALONSO; COLOMBINI, 2016:52’32): policiais avançando em direção às estudantes, batendo seus cassetetes nos escudos, apontando armas contra as manifestantes e lançando bombas de gás lacrimogêneo. Enquanto era forçada a entrar em uma viatura, Camila Rodrigues, da Escola Estadual Fernão Dias, de cabeça erguida, gritava a plenos pulmões: “Que vergonha, que vergonha deve ser, oprimir o estudante, para ter o que comer!” Uma foto que capturou o momento, mostra a estudante dentro da viatura apontando para uma inscrição em seu peito: “lute” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:58’49). A terceira cena, também registrada em foto e narrada pela protagonista, foi a tentativa de um policial militar de arrancar a cadeira da escola que ela havia levado à manifestação. O amigo que foi ajudá-la, levou um soco de uma policial. E ela reagiu: “Meu Deus, o que é isso? Vocês estão batendo em adolescente que está lutando pela educação!”. Com a chegada de reforço policial, a ativista perde a disputa pela cadeira e grita ao agente, que ia jogar a cadeira no chão: “Não, a cadeira é da escola. Vai quebrar!”. O policial, descontrolado, lançou a cadeira assim mesmo. O comentário da estudante, após narrar a cena: “Eu que estava depredando o patrimônio público? Eu? Acho que não.” (ALONSO; COLOMBINI, 2016:59’)

Se os confrontos inevitáveis da luta social e política conscientizam sobre a natureza dos inimigos, para Rosa Luxemburgo, “a centelha da consciência

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e da vontade revolucionária se acende no combate, na ação de massas” (LÖWY, 2011). Essas concepções ressoam, como se promovessem uma dobra no tempo, em um insólito encontro histórico, no movimento de ocupação das escolas; em particular em uma bela passagem do documentário, na qual Renata Letícia, estudante da Escola Estadual João XXIII, tece a seguinte reflexão a respeito da incompreensão da população sobre a importância do movimento:

Pena que o trabalhador não entende, não entendeu que esse tipo de travamento de rua não é para atrapalhar. É para mostrar pro governador a insatisfação geral. A nossa esperança é que eles descessem dos carros e dos ônibus e viessem questionar a gente, mas não da forma que eles vêm, conservador. Eles vêm para falar, não para ouvir. A gente pode até argumentar, mas eles não querem ouvir. E isso entristece um pouco, mas não quer dizer que faz a luta morrer dentro de nós. A nossa chama está acesa, e com nosso fogo, a gente quer contagiar a palha deles, que se apagou ao longo do tempo. (ALONSO; COLOMBINI, 2016:64’29)

No documento Feminismos e democracia (páginas 95-99)