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“A NOSSA CHAMA ESTÁ ACESA”: GÊNERO E PRÁXIS REVOLUCIONÁRIA NA OCUPAÇÃO

No documento Feminismos e democracia (páginas 88-92)

DAS ESCOLAS EM SÃO PAULO

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Mariana Joffily Maurício Cardoso

De São Paulo para o mundo A rua é nossa Você tem sede do quê? Eu quero outra escola

(Ocupar e resistir, 2015) “Lutar como uma garota para mim agora é um sinônimo de força”. Essa é uma das falas que abre o documentário Lute como uma menina, produzido em 2016 e dirigido por Beatriz Alonso e Flávio Colombini, com imagens de Caio Castor. O filme, construído com cenas registradas pelas diretoras2 ou

cedidas pelas estudantes em um mês e meio de movimento, acompanha 12 escolas ocupadas e as manifestações de rua. Ele articula entrevistas com 33 meninas que participaram das ocupações com cenas do cotidiano escolar e dos enfrentamentos com a polícia e as autoridades civis. A ideia para a 1. Esse artigo foi desenvolvido a partir de uma fala preparada para a mesa Gênero e fe-

minismo na construção da democracia na América, nas III Jornadas do LEGH, 20 e 21 de

março de 2018, UFSC.

2. Por sugestão bem-vinda do editor Jair Zandoná, a quem agradecemos, considerando a temática do artigo, substituímos o genérico plural masculino pelo genérico plural femini- no. Com isso não queremos invisibilizar os meninos que participaram do movimento de ocupação das escolas, ou outros atores masculinos – posto que estão incluídos nesse plural genérico –, e sim dar destaque ao componente feminino.

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produção do audiovisual partiu de Beatriz Alonso, 24 anos, que se identificou com o que viu nas escolas paulistas: “A escola estava ocupada havia três dias. Fui aluna de escola pública e sei do que aquela moçada estava falando. Fiquei entusiasmada com a organização e encantada com a bravura das meninas. Numa sociedade em que há pouco espaço para as vozes femininas, até nos movimentos e na política, aquilo me tocou” (ALONSO apud SILVA, 2016).

O movimento, que surpreendeu por seu nível de mobilização e organização estudantis, foi uma resposta contundente ao plano de reorganização do ensino anunciado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, em 23 de setembro de 2015. Esse projeto, denunciado por diversas autoras por ter sido uma ação unilateral e antidemocrática, manejada como uma questão de caráter meramente técnico e burocrático (JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:4), representou um intento de precarização do ensino público, com vistas à sua privatização (CATINI; MELLO, 2016:1181). A proposta de “racionalização”, segundo moldes empresariais, do sistema educacional do estado alegadamente decorreu de uma diminuição da demanda por vagas no ensino público e tinha por meta a melhoria do ensino trazida pelo reagrupamento das escolas por ciclos. Contudo, teria por consequência o remanejamento de estudantes de 754 escolas, bem como o fechamento de 94 unidades educacionais3.

A reação estudantil foi inesperada, massiva e incisiva:

Os argumentos “pedagógicos” dados pela Secretaria de Educação não encontraram ressonância nenhuma entre os alunos que, a partir da sua própria experiência, tiravam conclusões bem diferentes. Diante da superlotação das salas e falta de infraestrutura nas escolas, a “reorganização” simplesmente não faz sentido algum enquanto política pública com fins de melhora da qualidade da educação; seria um contrassenso. (JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:8) Ficou evidente para as estudantes, como aparece nas falas iniciais de Lute

como uma menina, que o intuito da Secretaria consistia em diminuir postos

de trabalho e cortar despesas, (ALONSO; COLOMBINI, 2016:3’10). Com 3. Sobre o teor da reforma, suas justificativas e inconsistências e o processo de organização do movimento de ocupação das escolas ver Januário; Campos; Medeiros; Ribeiro, 2016.

início em novembro de 2015, o movimento incluiu a ocupação de mais de 200 escolas, cobrindo 60 municípios, na capital e no interior, manifestações públicas e atos de trancamento de ruas4.

Oferecendo uma entrada a esse universo a partir do olhar feminino, as narrativas de Lute como uma menina não se restringem à dimensão de gênero. Organizadas por temas, mantêm um percurso cronológico: dos diagnósticos iniciais sobre a reforma imposta pela Secretaria de Educação, às manifestações públicas e a articulação das primeiras ocupações. Então, passa-se às conquistas e dilemas do cotidiano das escolas ocupadas para finalizar com o balanço sobre o papel da luta na própria formação política das estudantes. Resulta, assim, uma tensão entre a fala das meninas e o ordenamento temático que costura a matéria fílmica, impondo um constante deslocamento de significados: ora, mais próximo à lógica das ocupações e seus enfrentamentos (com a direção das escolas, com mães e pais, com a polícia, com a imprensa, com a população contrária à mobilização), ora, aderindo ao olhar das cineastas que reiteram a importância das mulheres na constituição do movimento.

As falas diversas, porém convergentes das meninas, e as cenas de cartazes e faixas que compõem um texto paralelo, predominam sobre outros materiais e definem o eixo fundamental do filme: os episódios narrados são frequentemente acompanhados de cenas ilustrativas que registraram as ocupações no calor da hora, refletindo a adesão sem ressalvas das diretoras do documentário não apenas ao movimento, mas aos significados construídos por suas entrevistadas. Assim, por exemplo, quando uma estudante relembra a agressão policial, as imagens revelam a veracidade da agressão, graças aos inúmeros celulares que gravaram a cena. Além disso, não há voz over, as diretoras não aparecem em cena, há poucas inserções de imagens externas ao movimento das secundaristas, à exceção de algumas fotos de manchetes de artigos da imprensa e de uma cartela de texto ao final, informando que a Justiça proibiu o Governo do Estado a implementar a reforma em 2016. Entretanto, Beatriz Alonso e Flavio Colombini conferem forte caráter interpretativo à obra, pela escolha dos temas e pela montagem das entrevistas 4. Ver Mapa das escolas estaduais ocupadas em São Paulo. G1, 2015b.

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numa certa ordem e ritmo. Elas dirigem, ao longo do documentário algumas perguntas (ocultas, mas deduzidas), que estruturam a narrativa. Vê-se, assim, que as entrevistas foram construídas num diálogo constante entre as pessoas envolvidas, marcada por relatos espontâneos, elaborados no percurso da rememoração e estimulados por indagações das cineastas, cuja perspectiva não era apenas reunir narrativas sobre o movimento, mas definir um significado mais amplo sobre o caráter fortemente feminino das próprias ocupações. Por seus recortes e abordagens, as autoras conduzem a um olhar extremamente sensível sobre a atuação das estudantes nas ocupações e o protagonismo das adolescentes na construção de um movimento social novo e original, sem, contudo, desvalorizar o debate sobre educação e a crise da escola pública, ou sobre os diversos aspectos contidos na mobilização estudantil em São Paulo.

Outros dois documentários dedicados ao movimento de ocupação das escolas de São Paulo – Escolas em luta (CONSONNI; MARQUES; TAMBELLI, 2017) e Acabou a paz, isto aqui vai virar o Chile (PRONZATO, 2016) – tratam de pontos essenciais desse movimento, tais como as reações das estudantes diante da proposta de reorganização imposta de cima para baixo, a mobilização da resistência, a auto-organização das estudantes secundaristas, o cotidiano das ocupações, os apoios recebidos, os enfrentamentos com a polícia e outras autoridades do estado. Porém, Lute como uma menina agrega como elemento central um aspecto presente de maneira marginal nos outros dois filmes: o protagonismo feminino e a questão de gênero. Por isso elegemos essa obra, em particular as falas das meninas que participaram do movimento, como uma espécie de janela de acesso a essa recente experiência de rebelião estudantil, sem com isso desconsiderar o enquadramento que essa “janela” nos oferece acerca dos acontecimentos tratados. Nosso intuito é discutir três aspectos desse movimento: o protagonismo feminino e seus reflexos nas relações de gênero durante as ocupações, as novas experiências de sociabilidade e de cultura escolar, com destaque a seu caráter pedagógico e, por fim, a despeito da alegada inexperiência das ativistas, a influência de uma tradição revolucionária sobre o movimento secundarista paulista.

No documento Feminismos e democracia (páginas 88-92)