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O acúmulo dos movimentos sociais

No documento Feminismos e democracia (páginas 99-102)

Lute como uma menina capta com competência um elemento distintivo do

movimento de ocupação das escolas paulistas: a criação de um microcosmos social de experimentação e concretização de uma série de princípios que norteavam os atores. Entre eles, a autogestão, a horizontalidade, a igualdade de gênero, a democracia direta na tomada de decisões. Do ponto de vista de sua filiação histórica, esse modelo organizativo remete às estratégias dos movimentos de ocupação, como forte reação à onda neoliberal. Nesse registro, encontram-se a mobilização do Exército Zapatista de Libertação Nacional no México nos anos 1990, ou iniciativas como o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos, ou do Movimiento de los Indignados na Espanha, nos anos 2010 (ROMANCINI; CASTILHO, 2017:98, PIOLLI; PEREIRA; MESKO, 2016:26). Janice Sousa (2004), em texto bastante anterior ao fenômeno de ocupação das escolas, identificava as seguintes características desses movimentos: uso de tecnologia para mobilização, comunicação e coordenação; recusa à

violência, porém defesa diante das ações repressivas da polícia; organização de atividades culturais em diálogo com a comunidade; projeto global com atuação local; recurso a ações diretas; horizontalidade na tomada de decisões; autonomia de organização; o anticapitalismo. A diversidade constitui outro ponto em comum: “A ideia central é criar um movimento que envolva a todos e permita um coletivo que seja a expressão e o resultado de uma conjunção de

interesses diversos, uma exigência dos protestos contemporâneos.”(SOUSA, 2004:459-650, grifos da autora)6 E complementa:

Dentro dessa perspectiva organizativa sem fixidez, esses jovens vinculam o presente à sociedade que querem para o futuro. Na organização das ações de protesto, procuram expressar o mundo que estão pretendendo criar no futuro, dentro do princípio de que os objetivos e modos de organizar um movimento não devem ser diferentes, têm que ser totalmente relacionados. O ânimo da participação parece recompor nestes limites o valor de uso da política, num presente que se revoluciona como um cotidiano rebelde, não repetitivo e com perspectivas. (SOUSA, 2004:561)

No documentário, a clareza sobre o significado do projeto de reforma imposto pelo alto, possivelmente sedimentada ao longo do próprio movimento de resistência, contrasta com a inexperiência organizativa. Rafaela Boani, estudante da Escola Estadual Diadema, relata o despreparo das colegas (ALONSO; COLOMBINI, 2016:4’02): “Não sabia o que levar porque... Como ia para a rua? Era tipo pesquisar no Google, como fazer uma manifestação?”. Lute como uma menina, como seus congêneres, insiste na autonomia do movimento em relação a partidos e outras entidades políticas e na crítica à representação política, mecanismo cada vez mais esvaziado nas democracias formais. Porém, confluem em apontar a influência da Revolta dos Pinguins, movimento secundarista de grandes proporções ocorrido no Chile em 2006 e 2011, contra a privatização do sistema educacional 6. Para Sousa, esses movimentos antissistêmicos, por sua vez, inspiraram-se no “projeto político libertário” de 1968, que questionavam o papel das vanguardas e preconizavam uma revolução que ultrapassasse o âmbito do político para realizar-se também nas esferas dos costumes, da cultura e das relações pessoais (SOUSA, 2004:456).

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promovido pelo governo Pinochet nos anos 1970. Esse aspecto transnacional do movimento secundarista merece pesquisas mais aprofundadas, sobretudo em sua dimensão latino-americana. Há um dado material muito concreto na inspiração de um movimento ao outro: a cartilha Como ocupar um

colégio?, composta por trechos traduzidos pelo coletivo O Mal Educado

a partir do material escrito por membros da seção argentina da Frente de Estudantes Libertários, em 2012, baseados em sua própria luta, assim como no movimento chileno (JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:12). A experiência chilena foi clara e repetidamente referenciada na palavra de ordem “Acabou a paz! Isso daqui vai virar o Chile!”.

As grandes ondas de mobilização estudantil coincidiram, no plano temporal, com a chamada “onda rosa” latino-americana, inaugurada pelo governo de Hugo Chávez, na Venezuela, em 1988, e seguida por diversos presidentes de esquerda na região7, sendo três delas mulheres, que

contribuíram para a abertura do debate público a questões relacionadas à justiça social e distribuição de renda, por um lado, e, por outro, favoreceram um maior intercâmbio comercial e político entre os países latino-americanos. No âmbito nacional, podemos apontar para um fenômeno ainda mais recente, que teria tido grande importância na mobilização secundarista: as jornadas de junho de 2013, em sua vertente inicial, relacionada à luta contra o aumento das tarifas de ônibus, liderada pelo Movimento do Passe Livre (MPL). Algumas autoras indicam conexões significativas, como formas de mobilização, em especial de ações diretas, modos de organização horizontais e autônomos, comunicação pelas redes sociais, a experiência de manifestação juvenil e a atuação e circulação de ativistas em coletivos como o MPL e O mal-educado (PIOLLI; PEREIRA; MESKO, 2016:6, JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:20 e seguintes). Outra referência ainda mais recente e muito significativa teria sido a participação de estudantes nos protestos das professoras, organizados pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), entre março e junho de 7. Entre os quais Néstor e Cristina Kirchner, na Argentina; Evo Morales, na Bolívia; Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, no Brasil; Ricardo Lagos e Michelle Bachelet, no Chile; Rafael Correa, no Equador; Manuel Zelaya, em Honduras; Fernando Lugo, no Paraguai; Ollanta Humala no Peru; Tabaré Vázquez e José Pepe Mujica, no Uruguai.

2015, por aumento salarial, mas também pela melhoria das condições de ensino (JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:24).

Assim, apesar de sua novidade, as estudantes paulistas provêm de toda uma linhagem de movimentos sociais que permitiram um acúmulo de experiências de luta. Ademais, os repertórios utilizados incluem uma série de estratégias tradicionais como manifestações de rua, uso de faixas e cartazes, composições de músicas próprias do movimento e mesmo palavras de ordem clássicas como o “Não passarão!”.

A autonomia organizativa e a recusa em aceitar lideranças externas ao movimento não impediram uma série de apoios que foram cruciais para seu êxito. Mães, pais, professoras, comunidade e entidades estudantis e sindicais forneceram alimentos e apoio logístico. A imprensa alternativa acompanhou o passo a passo do movimento, garantindo uma cobertura que, se não impediu a violência policial, ao menos a registrou em diversas situações, possivelmente contribuindo para contê-la. Artistas e professoras responderam ao chamado das estudantes para desenvolver atividades nas escolas, ou realizar shows e oficinas. O Ministério Público e a Defensoria Pública de São Paulo entraram com uma ação civil pública contra o projeto do governo do Estado de “reorganização” escolar (JANUÁRIO; CAMPOS; MEDEIROS; RIBEIRO, 2016:19).

No documento Feminismos e democracia (páginas 99-102)