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O feminismo contemporâneo na historiografia recente no Brasil

No documento Feminismos e democracia (páginas 135-138)

A partir dessas interpretações sobre o(s) feminismo(s), pensamos em procurar o que estudiosas que têm trabalhado e escrito sobre esse movimento social contemporâneo pensam sobre essa noção de conflito social, de como o feminismo abala estruturas sociais e transforma relações sociais, instituições, culturas e crenças. Abordamos aqui apenas algumas das obras sobre a temática, esforço que deve ser expandido em outra oportunidade. Trata-se de uma história do presente, de uma história que está sendo aos poucos construída e reinterpretada, numa espécie de feminismo acadêmico na busca por incluir as mulheres como protagonistas em uma história que quase sempre as excluiu. Como diz Margareth Rago (1995/1996:15-18):

E o feminismo? Por que a história e a memória do feminismo? Certamente, o feminismo coloca o dedo nesta ferida, mostrando que as mulheres foram e ainda têm sido esquecidas não só em suas reivindicações, em suas lutas, em seus direitos, mas em suas ações. Suprimidas da História, foram alocadas na figura da passividade, do silêncio, da sombra na esfera desvalorizada do privado. O feminismo aponta para a crítica da grande narrativa da História, mostrando as malhas de poder que sustentam as redes discursivas universalizantes. O feminismo denuncia e critica. Logo, deve ser pensado e lembrado. Se formos olhar os livros de história do Brasil, com raríssimas exceções, quase nunca se referem ao feminismo como movimento social importante no contexto do período da Ditadura iniciada em 1964 e que se estende até 1985. Há, porém, uma historiografia feminista que analisa especificamente os movimentos de mulheres, as questões de gênero e sexualidades, e o próprio movimento feminista neste período. É deste conjunto de obras que estamos tratando aqui.

Um dos primeiros livros a apresentar uma proposta de “história do feminismo brasileiro”, que incluísse o feminismo dos anos 1960, 70 e 80, foi o livro de Maria Amélia de Almeida Teles, Breve História do Feminismo

no Brasil, publicado significativamente na Coleção “Tudo é História” da

Editora Brasiliense15. Para essa autora, que também foi entrevistada em nossa

pesquisa, pois é uma conhecida militante feminista:

Em seu significado mais amplo, o feminismo é um movimento político, questiona as relações de poder, a opressão e a exploração de grupos de pessoas sobre outras. Contrapõe-se radicalmente ao poder patriarcal. Propõe uma transformação social, econômica, política e ideológica da sociedade. (TELES, 1999 [1993]:10)16

Ou seja, mesmo que ela não utilize a palavra “conflito”, para Maria Amélia, o feminismo é um movimento de transformação radical da sociedade, o que interpretamos que implica uma “contraposição radical” ao poder patriarcal. No livro, a autora coloca na história do feminismo as rebeldias de mulheres desde o Brasil Colônia, as lutas pelo voto, a luta de resistência à ditadura, contra a carestia, os grupos e jornais feministas que se organizaram nos anos 1970 e 80. Para ela, não havia, aparentemente, naquele momento, uma distinção fundamental entre movimento de mulheres e feminismo, como aliás é uma das características do feminismo latino-americano, segundo Sonia Alvarez (1998).

Uma outra síntese foi empreendida por Céli Regina Pinto, historiadora e cientista política, professora da UFRGS, em seu Uma história do feminismo

no Brasil (2003). Essa autora estabelece dois momentos fundamentais para

o feminismo, o momento de busca pela cidadania, de finais do século XIX 15. Segundo informações disponíveis na Wikipédia (disponível em https://pt.wikipedia. org/wiki/Cole%C3%A7%C3%A3o_Tudo_%C3%A9_Hist%C3%B3ria Acesso em: 08 set. 2019), “A coleção Tudo É História é uma série de livros de formato de bolso lançada e editada pela Editora Brasiliense desde a década de 1980. Desde então, formou-se um farto acervo de obras sobre História Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea, do Brasil (Colônia, Império e República) e da América, além de pré-História, escritas por importantes histo- riadores brasileiros.” No sítio da editora (disponível em http://www.editorabrasiliense.com. br/cat-colecao-tudo-historia.php Acesso em: 08 set. 2019) estão disponíveis 80 títulos da coleção, inclusive Breve história do feminismo no Brasil de Maria Amélia de Almeida Teles. 16. Este livro foi reeditado, junto com outros ensaios em 2017.

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a 1932, com a conquista do voto feminino, e um segundo momento que se inicia em plena ditadura militar. Céli Pinto chama atenção especialmente para esse “segundo momento”, narrando de forma sintética, mas de maneira articulada, as conquistas e as transformações de um movimento que vem da ditadura e que aos poucos ganha espaço institucional através de ONGs, da luta por espaço político junto aos governos e na Constituinte de 1988. Apesar de seu conteúdo transformador, essa narrativa de institucionalização parece levar a uma visão deste feminismo como algo que vai perdendo seu caráter de conflito social, bem como seu potencial revolucionário.

Ana Alice Alcântara Costa, em texto publicado em 2009, percebe a trajetória do feminismo brasileiro durante o regime militar calcada em seu “enfrentamento com o autoritarismo de um Estado repressor bem como o conservadorismo e sectarismo das organizações vinculadas a um pensamento de esquerda” (COSTA, 2009). Quer dizer, em sua percepção, o conflito não apenas estava presente, como era múltiplo e envolvia não só o inimigo óbvio, direto, que seria o Estado, como também as próprias organizações de luta contra a Ditadura nas quais as militantes feministas estavam também engajadas. Assim, a autora tenta, de certa maneira, resgatar esse caráter revolucionário do feminismo. Ana Alice Costa, cientista política, era professora na UFBA e uma das coordenadoras e fundadoras do NEIM, Núcleo de Estudos e Informação Mulher, em Salvador/BA.

Em “Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970- 1978)”, Joana Maria Pedro mostra como a própria historiografia sobre o feminismo brasileiro está inserida em conflitos e disputas:

Há uma narrativa de ‘origem’ do ressurgimento do feminismo no Brasil, na década de 1970, que prevalece até os dias atuais. Essa narrativa foi resultado de disputas de poder entre diversos grupos feministas, e entre estes e os diversos personagens envolvidos na luta contra a ditadura militar, instalada no país entre 1964 e 1985. Essa luta envolvia, para uns, as dicotomias entre “lutas gerais e lutas específicas”, de um lado, e entre “verdadeiramente feministas e não-feministas”, de outro. A forma como foram definidas essas datas reflete interpretações oriundas de diferentes lugares. Fala de poderes e conflitos. (PEDRO, 2006:250)

A própria noção de “renascimento” do movimento feminista, implica, por um lado, uma continuidade com relação a um feminismo sufragista anterior a um momento de “esfriamento” do movimento, que seria o momento após a conquista do voto, e, por outro, essa ruptura ou “congelamento” das lutas feministas, pode ser também bastante controversa. Estudos recentes mostram a atuação de feministas brasileiras após 1932 e antes de 1975, e também a atuação política de mulheres (não necessariamente feministas) que existiu durante todo este período. Estas são questões que não poderemos explorar aqui, mas que lançamos para o debate.

No documento Feminismos e democracia (páginas 135-138)