• Nenhum resultado encontrado

2.3 A questão da norma

2.3.1 A face lingüístico-social

Tendo em vista a variedade de usos e a distância entre o que propõem as gramáticas brasileiras e o que efetivamente se usa, o tema da colocação pronominal enseja, sem dúvida, o debate sobre a determinação do que seria uma norma lingüística.

Vale observar, em princípio, o que, efetivamente, constitui norma. De acordo com LUCCHESI (2002: 65),a noção de norma tem duas “facetas”: normal seria tudo aquilo que é habitual, costumeiro, tradicional numa comunidade; e, normativo, o sistema ideal de valores que, não raro, é imposto em uma comunidade. Sendo assim, propõe duas classes de norma: a

objetiva, relativa aos padrões observáveis na atividade lingüística de um grupo determinado; e

a subjetiva, referente a um sistema de valores que norteia o julgamento subjetivo do desempenho lingüístico dos falantes em uma comunidade.

Acrescente-se a essas noções duas outras: a de norma padrão, que consistiria no conjunto de regras e formas contidas nas gramáticas normativas e por elas prescritas; e a de

norma culta, que congregaria as formas efetivamente depreendidas da fala dos segmentos de

mais alto nível de escolaridade.

Segundo ROSENBLAT (1967), esse conjunto de valores subjetivos, profundamente determinado por fatores sociais, culturais e ideológicos, que é a norma, está intimamente relacionado às tendências e aos padrões de comportamento lingüístico que se observam numa comunidade, o que também é norma.

Em outras palavras, norma é tudo aquilo que tradicionalmente se diz ou se disse em uma comunidade. Segundo o autor, o erro se dá em relação à norma e não ao sistema. É um

juízo de valor, aplicado por questões que não são lingüísticas, mas de “certa ressonância

moral”.

Aqui, deve-se observar que, segundo COSERIU (apud CUNHA, 1985), o sistema é uma entidade abstrata, um conjunto de funções distintivas, de estruturas em oposição; pode ser entendido também como um conjunto de possibilidades que indicam “os caminhos

abertos e os caminhos fechados do sistema” de expressão de uma comunidade. Desta forma,

o aluno, ao optar pela próclise ou ênclise, não fere o sistema, pois as duas possibilidades estão previstas nesta entidade. O aluno pode ou não seguir a norma, que é entendida como o conjunto de estruturas presentes no sistema e realizadas sob formas socialmente determinadas e mais ou menos constantes.

A noção de erro, ainda segundo ROSENBLAT (1967), vem da noção de aquisição da linguagem. A língua se adquire também por aprendizagem, e toda aprendizagem é, por natureza, imperfeita ou incompleta. “A sociedade não pode deixar a língua em paz” (p.121); a convivência e a colaboração de setores sociais diversos trazem, inevitavelmente, um nivelamento. E o problema lingüístico e cultural é nivelamento “por baixo” ou “por cima”. Desta forma, entende-se que o problema não é exatamente o que se fala, mas sim quem fala. Segundo o autor, “que privilégios teriam os cultos para ditar normas e condenar as formas

de expressão dos demais e por que sua norma deveria ser superior às outras?” (p.122)

ROSENBLAT (1967) chega a questionar o uso de termos como correto e

incorreto. Na luta contra a correção, chegou-se a rechaçar violentamente toda a

prescrição, toda a intervenção correcionista da língua, observando-se que não haveria critérios para determinar o que seria bom ou mau em termos lingüísticos. Segundo esse ponto de vista, a fala de cada um seria legítima e irreprovável como a de qualquer

suposta autoridade e toda intromissão seria danosa. Além disso, a prescrição de correto ou incorreto aumenta a divisão entre classe superior e inferior, justamente quando é necessário manter cada vez mais a unidade. Não haveria nenhum problema em substituir os controvertidos termos “correto” x “incorreto” por termos como “aceitável” x “inaceitável” ou “admissível” x “inadmissível”, entre outros; no entanto, haveria o perigo de se impregnar esses termos com uma carga mais violenta e desqualificadora do que a existente nos dois primeiros.

Não é por acaso, a língua, por natureza, uma instituição social? A sociedade mantém- se, constitutivamente, por um amplo sistema de usos ou hábitos de vigência coletiva. A partir daí, entende-se que a polarização sociolingüística é fruto de um preconceito atrelado à não aceitação da variabilidade, uma vez que esta não é concebida como geradora de diversidade, mas, sim, de erro.

ROSENBLAT (1967) afirma, ainda, que a escola tem uma missão nacional. A imprensa, o rádio e a televisão se dirigem a todos os habitantes do país. O livro “aspira” a repassar as fronteiras nacionais e, então, a “grande ilusão” de que essa norma será mantida pelas gerações futuras continua viva. Por isso, a norma não pode ser rígida, automática, monolítica. Deve ser flexível, harmoniosa, mutante.

De acordo com LUCCHESI (2002):

A vulgarização do ensino público e o fenômeno dos meios de comunicação de massa, nas últimas décadas, acabaram por consolidar uma tendência à variação na norma culta, que, assim, se afasta cada vez mais do padrão normativo, o qual, em consonância com o projeto de exclusão social das elites brasileiras, continua a reproduzir os modelos europeus, alterando apenas sua fundamentação retórica. (cf. PAGOTTO;1998 e GUIMARÃES; 1996)

LUCCHESI (2002) afirma, citando PAGOTTO (1998), que é exatamente na tentativa de estabelecimento de um padrão lingüístico nacional que se revela o paradoxo projeto político das elites brasileiras, dando continuidade à exclusão de uma grande parcela da população enquanto uma pequena minoria assume a liderança do processo.

Em toda sociedade, entrecruzam-se um critério intralingüístico de correção e um critério extralingüístico ou social, fato que pode ser verificado através da utopia escolar em atingir a norma padrão citada pelo autor– uma abstração –, enquanto seus falantes buscam a

norma culta, a concretização.

As contradições da realidade social refletem-se no plano das normas lingüísticas. Ao mesmo tempo em que se observa, no plano objetivo dos padrões coletivos de comportamento verbal, uma tendência ao nivelamento das duas normas lingüísticas, o estigma ainda recai sobre as variantes características da norma popular.

CASTRO (2002: 13) afirma que o lingüista deve se conscientizar de seu papel na sociedade. Segundo ele, se os lingüistas cumprissem seu papel fundamental na fixação da norma, haveria mais respeito pelos fenômenos de variação e pelos atos de fala reais e verificáveis. O autor comenta que a norma portuguesa dotada de maior vitalidade e capacidade de fazer adeptos é a transmitida pelos jornais, rádio e televisão. A escola tem, nesse ponto, seu papel diminuído, pois ainda não teria se recuperado dos dois choques sucessivos que teria enfrentado: a ilusão de que as aulas de língua poderiam ser aulas de lingüística; e a “tonteria” de que o ensino deveria privilegiar o lúdico e o imaginativo.

O preconceito lingüístico reflete a discriminação econômica e a ideologia da exclusão social. Assim, pode-se remeter a GAGNÉ (1983),que, diante de tal discussão, concluique se deve chegar a uma unidade na escrita e a uma unidade na fala, desenvolvendo, assim, o

plurilingüismo e propondo uma atualização da norma padrão com base nos padrões reais de uso, condição necessária para a verdadeira democratização do ensino de língua.

Documentos relacionados