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2.3 A questão da norma

2.3.2 A face político-cultural

PINTO (1978, 1981), observando a grande polêmica gerada pelas diferenciações entre o PE e o PB, organizou uma coletânea de textos de diversos autores e épocas, a fim de demonstrar que as questões hoje discutidas afligiam até os mais profundos conhecedores da língua e seus mais importantes representantes.

A autora compilou textos de diversos autores com considerações sobre a Língua Portuguesa. O Volume I (1820/1920) faz menção ao Romantismo como um movimento de valorização do autenticamente nacional, a partir do qual começam os “ensaios” das primeiras manifestações acerca das diferenças lingüísticas entre o PB e o PE.

Dentre os autores românticos, sobressai José de Alencar, que indica como intencional o uso de determinadas variantes, em busca de uma língua mais nacional. O autor faz detalhado levantamento de alguns aspectos do PB, dentre eles a colocação pronominal.

É também matéria de escândalo a colocação dos pronomes pessoais que servem de complemento ao verbo, me te, lhe e se. Entendem que nós os brasileiros afrancesamos o discurso, fazendo em geral preceder o pronome, quando em português de bom cunho a regra é pospor o pronome. (1870, apud PINTO,

1978: 79)3

E, sobre isso, continua a manifestar-se:

Tal regra não passa de arbítrio que sem fundamento algum se arrogam certos gramáticos. Pelo mecanismo primitivo da

3 Nas citações selecionadas de PINTO (1978 e 1981), a primeira data, presente antes da indicação da

língua, como pela melhor lição dos bons escritores, a regra a respeito da colocação do pronome e de todas as partes da oração é a clareza e a elegância, eufonia e fidelidade na reprodução do pronome. (1870, apud PINTO, 1978: 79)

No período realista, a consciência dessas diferenças continua atuante. Machado de Assis (1873, apud PINTO, 1978:187), que não considera seus livros exemplos de “pureza lingüística”, afirma que o escritor, embora não precise “copiar” as modificações populares, deve estar atento a elas.

“Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século de quinhentos, é erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito a influência do povo é decisiva.”

No entanto, ainda se encontram opiniões bastante controvertidas a respeito do assunto, talvez pelo tratamento um tanto ou quanto empírico dado ao tema. Joaquim Nabuco (1875, apud PINTO, 1978) manifesta-se da seguinte forma: “...com o tempo,

com a influência lenta, mas poderosa, do meio exterior, há de se tornar cada vez mais sensível a divergência entre a nossa literatura e a de Portugal.” (p. 196) E ainda: “A raça portuguesa, entretanto, como raça pura, tem maior resistência e guarda assim melhor seu idioma; para essa unidade/uniformidade de língua escrita devemos tender.”

(p.197).

Silva Ramos (1921, apud PINTO, 1978: 445), no Colégio Pedro II, em discurso de paraninfo aos alunos que completaram o curso em 1918, diz o seguinte:

Que poderão, entretanto, fazer nossos mestres neste momento histórico da vida do português na nossa terra? Ir legitimando, pouco a pouco, com a autoridade das nossas gramáticas, as diferenciações que vão se operando entre nós, das quais a mais sensível é a das formas casuais dos pronomes pessoais regidos por verbos de significação transitiva e que nem sempre coincidem lá e cá: além da fatalidade fonética que origina

necessariamente a deslocação dos pronomes átonos na frase, o que tanto horripila o ouvido afeiçoado à modulação de além- mar.

Said Ali (1919, apud PINTO, 1978: 451-456) também compara o PB e o PE quanto à colocação dos pronomes. Segundo ele, o pronome átono “é pospositivo”: ou se encosta ao verbo, ou a outro vocábulo anterior. Cita Fernão Lopes, João de Barros e até Camões como modelos de ênclise. O autor classifica a relação com o verbo como uma construção usual dos complementos e que, quando deslocado, o faz por atração puramente fonética. Além disso, alega que a colocação pronominal no Brasil deve ser diferente da de Portugal, pois a pronúncia é diferente. E afirma que “QUE e SE são

considerados atratores”, Portugal e Brasil estão certos com relação à colocação

pronominal, por ser esse o uso geral” e que, na linguagem literária, a coincidência entre as duas línguas é o fato de não iniciarem período por pronome oblíquo.

No primeiro volume da obra de PINTO (1978), verifica-se que a questão da ordem dos clíticos é abordada por poucos, pois a maioria dos autores se prende a diferenças lexicais entre as duas variedades nacionais. Tem-se a impressão de que a consciência das diferenças lingüísticas começa pelo léxico para depois chegar à sintaxe. A que fatores se deveria a pouca referência ao uso dos clíticos por esses autores? Não haveria variação ou a variação ainda não tinha sido vista como fenômeno?

O volume II focaliza o período de 1920 a 1945. No texto selecionado de sua obra, Sousa da Silveira (1920, apud PINTO, 1981:15-29) trata das diferenças entre língua falada e escrita, dizendo que a escrita se conserva mais fiel ao Português Europeu, porém, ao comentar as diferenças entre o PE e o PB, não cita os clíticos.

João Ribeiro (apud PINTO, 1981: 32-43) observa a diferença na posição dos clíticos entre o PE e o PB de um ponto de vista bastante curioso. Observa que não pode afirmar que nossos intelectuais escrevam mal, “mas que escrevam indiferentemente,

com certa independência divina ou diabólica que não se compadece com os padrões lusitanos”. (1926, apud PINTO, 1981: 32)

E ainda:

O brasileiro diz comumente: - Me diga... me faça o favor...

É esse um modo de dizer de grande suavidade e doçura ao passo que o – “diga-me” – e o “faça-me” – são duros e imperativos.

O modo brasileiro é um pedido; o modo português é uma ordem. (1921, apud PINTO, 1981:34)

Monteiro Lobato (1924, apud PINTO, 1981: 66) expressa sua opinião através do conto “O colocador de pronomes”: “Os pronomes, ai! eram a tortura permanente do

professor Aldrovando. Doía-lhe como punhalada vê-los pré ou pospostos contra regras elementares do dizer castiço.”

Mário de Andrade (apud PINTO, 1981: 128-185) também opina a respeito dos “brasileirismos”, citando o artigo “Me parece que pra M. de A . ”, em que outro autor ironiza não só seu emprego de pronomes em início absoluto, mas também o uso de ele como complemento: “Encontrei ele doente”. Afirma que não usa sempre o pronome proclítico, mas “geralmente”. Mário de Andrade trata da próclise em início absoluto citando todos os pronomes – me, te, se, nos, vos e até o, a – e menciona, inclusive, a possibilidade de generalização desta “regra”. (1925, apud PINTO, 1981: 141-142).

Também Gilberto Freyre (1940, apud PINTO, 1981: 317) manifesta-se sobre a questão:

Na verdade, os que no Brasil desejamos não uma idiota “língua brasileira”, pomposamente oficializada com esse título para gozo de uma minoria cada vez mais reduzida e ridícula de lusófobos, porém uma língua escrita e ridícula de lusófobos, porém uma língua escrita mais aproximada daquela que falamos, agimos sob a necessidade de uma expressão mais livre e mais natural, que corresponde a um meio diverso do Português da Europa.

Tais discussões surgem da consciência da diferenciação entre o PB e o PE no que diz respeito à ordem dos clíticos, mas é preciso voltar ao passado para identificar essas diferenças.

O Português Clássico era predominantemente proclítico, apesar de a próclise não ocorrer em contexto inicial ou, em uma locução, ocorrer em relação ao verbo principal, nas locuções. Desta forma, o PB segue a tendência proclítica do Português Clássico, inovando, no entanto, com relação aos aspectos acima.

No PE moderno, observa-se o predomínio da ênclise, na fala e na escrita, o que demonstra os diferentes caminhos seguidos pelo PB e pelo PE. Discussões acerca desse tema, como se viu, remontam à época do Romantismo, quando, em busca de uma identidade nacional, o Brasil passou a assumir uma postura lingüística diversa da do PE.

PAGOTTO (1998) refere-se a esse período como um verdadeiro “paradoxo” em nossa história lingüística, uma vez que, nesse momento, o país, independente de sua metrópole, tentava afirmar sua identidade. No entanto, para tal, precisava mostrar maturidade, e uma das formas de mostrar isso era através da língua. De um lado, queria tornar-se independente politicamente; de outro, tentava imitar o modelo da língua falada pelos europeus.

O que ocorre é que, nesse momento, como foi dito acima, a língua em Portugal estava passando por modificações – estava deixando de se caracterizar pela ordem proclítica, para adotar a enclítica. Talvez a perda das vogais átonas finais justifique as mudanças ocorridas na preferência dos falantes pela ênclise, fato que passou a ser retratado na escrita.

Ainda segundo PAGOTTO, a partir do século XIX, com a codificação de uma nova norma culta, gerou-se uma discrepância entre o português falado e o escrito no Brasil, discrepância que tem disseminado grandes problemas na escolarização de nossos alunos, no que tange ao aprendizado da norma culta.

TEYSSIER, em História da Língua Portuguesa, ao comentar as diferenças entre o PB e o PE, chama a atenção para o fato de que, em alguns aspectos, quando se pensa que o PB teria se distanciado da norma culta lusitana, o que ocorre, na realidade, é que o PB está sendo mais conservador que o próprio PE.

De acordo com PAGOTTO, em Portugal, na passagem do século XVIII ao XIX, as variantes em mudança foram alçadas à condição de norma culta, ou seja, a expansão das mudanças no português falado ganhou novo status. Em outras palavras: o que era comum na fala lusitana, a ênclise, passou a ser considerado norma. Com isso, assim como em alguns outros aspectos, em relação à colocação pronominal, Portugal mostrou-se bastante inovador.

Já o Brasil, que no início do século XIX passou por um processo de independência (em 1808, a chegada da família real ao Brasil; em 1822, a proclamação da independência), queria negar os valores de sua antiga metrópole, mas, ao mesmo tempo, desejava tornar-se uma nação “branca e europeizada”4. Assume a norma culta de Portugal como modelo para a sua, mas mantém-se conservador em uma série de aspectos sintáticos e, principalmente, em relação à colocação pronominal, ostentando sua preferência pela próclise.

Diante do exposto, não há como negar a explícita diferença entre a norma falada e a escrita no Brasil, que só se mantém por conta de uma norma imposta, que não reflete a fala brasileira, ao contrário do que aconteceu com os portugueses.

Sem poder precisar em que momento se deu essa mudança, resta encarar o fato de que a norma culta estabelecida para o PE é reflexo das tendências verificadas na fala dos habitantes locais – apesar das diferenças que evidentemente acontecem entre as modalidades oral e escrita. A do PB, a despeito disso, continua garantindo o processo de exclusão social.

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